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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.2 Brasília jun. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000200007 

RESUMO

 

PRÊMIO DE INCENTIVO AO DESENVOLVIMENTO E À APLICAÇÃO DA EPIDEMIOLOGIA NO SUS 1º LUGAR DOUTORADO

 

Avaliação da qualidade do rastreamento de HIV/aids e sífilis na assistência pré-natal

 

 

Bruno Gil de Carvalho Lima; Maria da Conceição Nascimento Costa; Maria Inês Costa Dourado (Orientadoras)

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, Brasil

 

 


Introdução

A assistência pré-natal (APN) é um dos pilares do cuidado à saúde materno-infantil, cuja relevância para a redução da morbimortalidade materna e neonatal já se encontra estabelecida. Inúmeras evidências indicam que o adequado acompanhamento antenatal é um importante fator de diminuição da incidência de baixo peso ao nascer, prematuridade e óbito perinatal. Para atingir seus propósitos, é necessário que a assistência oferecida cumpra requisitos mínimos. Tradicionalmente, o número de consultas e a época de início do acompanhamento têm sido os indicadores mais comumente empregados na avaliação da APN. Embora seja imprescindível garantir a realização das consultas pré-natais em número e precocidade recomendados, é também necessário que elas sejam de boa qualidade no que diz respeito ao conteúdo, aspecto que tem sido negligenciado. Constatam-se oportunidades e obstáculos diversos para o acesso aos serviços de saúde, a depender do nível de renda. Essas desigualdades, que não se restringem aos desfechos em saúde, influenciam o processo de prestação do cuidado, cuja qualidade técnica é inferior para parcelas menos abastadas da população. A definição do que seja uma assistência pré-natal de qualidade encontra obstáculos na natureza múltipla da própria APN, constituída de diversas ações a serem oferecidas em momentos oportunos, ao longo da gestação: algumas universalmente; outras, voltadas a grupos identificados como de risco aumentado.

Índices de utilização do pré-natal têm sido propostos, embora a avaliação em saúde possa ter uma abrangência mais ampla que a simples medida do uso dos serviços. São pontos passíveis de análise avaliativa as conexões entre objetivos, recursos, serviços-bens-atividades, efeitos e contexto, reconhecendo-se os atores sociais atuantes no processo de prestação do serviço de saúde. No Brasil, são muitas as pesquisas que caracterizam a assistência pré-natal em termos de precocidade de início e total de visitas; menos freqüentes são as investigações que consideram a realização de medidas semiológicas intra e interconsultas. Das ações a serem realizadas entre consultas, o rastreamento de infecções verticalmente transmissíveis é uma das intervenções com possibilidade de maior impacto sobre a saúde perinatal: à identificação da doença, pode-se seguir o tratamento eficaz visando à cura materna ou prevenção da infecção fetal. A questão das desigualdades sociais em saúde é um dos temas centrais em debate no campo da saúde coletiva. Embora, no Brasil, o Sistema Único de Saúde, o SUS, disponibilize os testes para o rastreamento do HIV e da sífilis entre toda a população, reconhece-se que o acesso aos serviços de saúde envolve uma multiplicidade de fatores: geográficos, custos e adequação entre os serviços e as necessidades, entre outros que caracterizam a acessibilidade, além do papel do usuário e de seu círculo de relações sociais.

 

Objetivos

I. Descrever aspectos relativos à utilização da APN em uma amostra de gestantes em unidades de saúde da rede própria e credenciadas ao SUS, verificando a existência de relação entre a distribuição das características analisadas e renda.

II. Avaliar a qualidade técnica da APN prestada a uma amostra de gestantes do Município de Salvador, Estado da Bahia (BA), elaborando critérios de adequação relativos ao rastreamento da infecção por HIV e T. pallidum.

III. Verificar a existência de associação entre o nível socioeconômico de gestantes usuárias do SUS e a realização do rastreamento pré-natal de HIV e T. pallidum.

 

Metodologia

Foi realizado um estudo de corte transversal em população constituída de gestantes assistidas por serviços de pré-natal em Salvador-BA, que tiveram seu parto realizado entre outubro de 2005 e setembro de 2006, em todos os hospitais e maternidades do SUS no Município. O tamanho amostral de 1.138 pacientes foi definido pelo aplicativo Epi Info. A distribuição da amostra, por partilha proporcional entre as unidades, baseou-se em informações da Secretaria Municipal de Saúde sobre o número de partos realizados em 2002.

A coleta de dados ocorria nos dias úteis, consecutivamente, sendo elegíveis todas as puérperas que se encontrassem nos leitos reservados à assistência pós-parto, independentemente da idade gestacional. Os dados foram obtidos mediante entrevista e levantamento no cartão de pré-natal, laudos de exames e outros registros, como cartões de vacinação e de agendamento de consultas. As informações foram anotadas em questionários individuais, preenchidos na presença da paciente. A equipe de coleta, composta de estudantes de enfermagem previamente treinadas, explicava a cada uma delas os objetivos da pesquisa, garantindo o anonimato e a impessoalidade das informações fornecidas e solicitando, em seguida, a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e aprovado em abril de 2005. Foram estudadas variáveis como idade, grau de instrução, estado civil, renda, posição no domicílio, história obstétrica, oportunidade da gestação, uso de contraceptivo ao engravidar, local de realização do pré-natal, datas da última menstruação e da primeira consulta, número total de consultas, realização de exames de rastreamento da infecção por HIV e sífilis. Foi realizado um painel Delphi com o propósito de definir critérios para classificação da APN como 'Adequada', 'Parcialmente adequada' ou 'Inadequada' no que diz respeito às condutas dirigidas ao diagnóstico da infecção por HIV e T. pallidum com base nos protocolos do Ministério da Saúde. Esses critérios foram adaptados às possibilidades das redes ambulatorial e laboratorial de Salvador-BA, aplicados a cada um dos casos e comparados à avaliação por um índice de utilização e pelo Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN). Para atender ao terceiro objetivo, foram utilizados como indicadores o rastreamento pré-natal do HIV e da sífilis (proporção de gestantes que fizeram ao menos um teste diagnóstico), nível socioeconômico, oportunidade da gestação, paridade, proporção de gestantes que iniciaram a APN no 1o trimestre, escolaridade, cor, financiamento do pré-natal, susceptibilidade percebida, severidade percebida e benefícios percebidos. Foram utilizados modelos de regressão logística multinomial incondicional tipo backward, considerando-se um grupo de possíveis covariáveis sociais e outro de crenças de saúde. Avaliou-se presença de interação (teste da razão de verossimilhança com α<5%) e de confundimento (diferença maior que 10% entre a medida de associação bruta e a ajustada).

 

Resultados

Do total de puérperas, quase 1/5 eram adolescentes, a maioria casada ou em união estável, e 90,1% eram pardas ou negras. Mais da metade delas completou o ensino fundamental, 50% eram primíparas, apenas 30% tinham programado a gestação e 1/3 estavam em uso de contraceptivo ao engravidar. A metade não tinha fonte de renda e, para 2/3 delas, o chefe da família era o cônjuge. Entre as 490 pacientes com ganhos, a mediana da renda foi de R$350,00. Informaram terem sido assistidas em unidade de atendimento gratuito 87% das pacientes. Quase 36% não tiveram suas mamas examinadas e 34,6% não foram submetidas a exame dos genitais. A maioria afirmou que tinha oportunidade para tirar dúvidas com o profissional assistente (84,4%), que ele explicava os resultados dos exames (85,9%) e a importância do Cartão da Gestante (72,3%); e que foram questionadas sobre antecedentes de doenças sexualmente transmissíveis (DST), vida sexual, uso de drogas e hemotransfusões (67,8%). Relataram alta do pré-natal antes do parto 39,7% das puérperas. Por fim, 84,7% ficaram muito satisfeitas/satisfeitas com a assistência. Quase 1/3 das puérperas havia realizado mais de seis consultas; e pouco mais da metade iniciou a APN no 1o trimestre. A maioria não conseguiu realizar os testes de rastreamento da infecção pelo HIV e sífilis até 14 semanas. Somente 11,2% fizeram mais de um VDRL. As pacientes de famílias com menor renda tenderam a realizar menor número de consultas pré-natais, iniciar o pré-natal mais tardiamente, fazer os exames de rastreamento da infecção por HIV e sífilis com maior idade gestacional e realizar menor número de VDRL (Venereal Disease Research Laboratory). Mais da metade recebeu assistência pré-natal inadequada pelo índice APNCU (Adequacy of Prenatal Care Utilization); e somente 11,3% tiveram sua APN adequada ou adequada superior. A aplicação dos critérios de número de consultas e precocidade de início do PHPN resultou em distribuição mais favorável, com 44,9% tendo a assistência avaliada como adequada e 26% como inadequada. Ao avaliar a APN pelas condutas de rastreamento das infecções estudadas, a assistência foi considerada inadequada para 72,7 e 9,2% das puérperas, respectivamente, para o HIV e a sífilis; e 26,9 e 88% das puérperas, nessa mesma ordem, foram triadas de forma parcialmente adequada, para ambas as infecções. O modelo saturado para o rastreamento do HIV alcançou -2LogL de 173,214. O chunk test dos termos de interação entre a variável independente principal e as covariáveis indicou ausência de modificação de efeito. A avaliação de confundimento indicou que apenas escolaridade e precocidade de início da APN eram confundidoras da associação entre renda e rastreamento do HIV. O modelo final estimou odds ratio de 1,19 (0,98;1,44). Para a associação entre teste para o T. pallidum e renda, o modelo saturado apresentou -2LogL de 102,0, com chunk test dos termos-produto apontando não-interação. A análise de confundimento excluiu todas as covariáveis, resultando em modelo final reduzido com odds ratio de 1,25 (0,96;1,63).

 

Conclusões, recomendações e impacto potencial dos resultados em Saúde Pública

A elevada cobertura da APN observada em Salvador-BA representa um achado bastante positivo, coerente com a tendência recente de diminuição da proporção de gestantes sem qualquer consulta pré-natal no Município, que chegou a 9,5% em 2004. Embora a maioria das gestações tenha ocorrido em mulheres com relacionamentos estáveis, é digno de nota que 2/3 delas não foram planejadas para aquele momento, enquanto 33% resultaram de falha contraceptiva. Essa condição de não-oportunidade da gravidez pode ser um fator a contribuir para a realização de um pré-natal de menor qualidade, uma vez que a iniciativa da gestante, ao buscar o ambulatório e seguir as recomendações do profissional, é necessária à consecução das ações de saúde incluídas nos protocolos. Constatou-se que o sistema de saúde ainda tem uma lacuna a preencher quanto ao volume de consultas necessárias, já que 2/3 das pacientes não alcançaram mais de seis. Tampouco quase a metade das usuárias iniciou o 1o acompanhamento no 1o trimestre, o que significa que começaram a APN quando uma janela de oportunidades já se fechara, diminuindo o acesso a condutas com impacto sobre a saúde. Mulheres com melhor nível de renda tiveram maior chance de iniciar precocemente a APN, realizar maior número de consultas e fazer os exames de rastreamento do HIV e da sífilis ainda no 1o trimestre, conforme recomendado. Portanto, exatamente a parcela da população com maior risco decorrente de fatores sociais adversos tem acesso a uma APN de menor qualidade. Os achados da presente investigação permitem concluir que a baixa reprodutibilidade da avaliação entre o acesso e a qualidade técnica da APN referenda o fato de o início precoce e o número adequado de consultas serem fatores que possibilitam mas não garantem uma boa assistência. Gestantes cujo acompanhamento foi bem classificado, de acordo com o APNCU e o PHPN, receberam avaliações ruins quanto ao rastreamento das duas infecções verticalmente transmissíveis. Caso outros estudos confirmem a associação entre rastreamento deficiente do HIV e sífilis e baixa renda, será necessário reorganizar o processo de APN, diminuindo os obstáculos às parcelas menos favorecidas da população, para que acessem os serviços disponíveis e recebam assistência de boa qualidade, efetiva na redução da morbimortalidade materna e perinatal. As equipes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF) podem assumir o papel de atores privilegiados dessa remodelação. A estrutura básica da APN vem sendo discutida pela Organização Mundial da Saúde, embora também seja preciso atualizar as técnicas de abordagem avaliativa dirigidas a essa ação de saúde, municiando os gestores dos sistemas de saúde com informações que lhes permitam organizar melhor a rede. Objetivos assumidos pelo Brasil quanto à redução da mortalidade materna ou à erradicação da sífilis congênita poderão ser beneficiados por intervenções voltadas à inclusão de grupos sociais e seu acesso aos benefícios e vantagens de uma assistência à saúde de boa qualidade.