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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.21 n.2 Brasília jun. 2012
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742012000200004
ARTIGO ORIGINAL
Avaliação do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Esquistossomose em dois municípios do estado da Bahia, Brasil*
Evaluation of the Schistosomiasis Epidemiologic Surveillance System in two municipalities of the state of Bahia, Brazil
Maria José Rodrigues de MenezesI; Eduardo Hage CarmoII; Isabella SamicoIII
ISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil
IIInstituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, Brasil
IIIInstituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, Recife-PE, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: avaliar o Sistema de Vigilância Epidemiológica (SVE) da esquistossomose nos municípios de Antônio Cardoso e Catu, estado da Bahia, Brasil.
MÉTODOS: avaliação realizada em 2004, contemplou os determinantes contextuais para a implementação da intervenção, estrutura e processo do SVE da esquistossomose, utilizando, como estratégia de pesquisa, o estudo de caso; para coleta dos dados, foram empregados os roteiros para avaliação de sistemas de vigilância dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos da América, além de questionários para análise do contexto, estrutura e processo.
RESULTADOS: os resultados indicam um SVE fragmentado, individualizado e não priorizado pelos gestores locais.
CONCLUSÃO: é necessário um trabalho integrado entre os funcionários da Vigilância Epidemiológica e outros setores da Saúde, especialmente a Atenção Básica, de retroalimentação do SVE e reestruturação do Programa de Vigilância e Controle da Esquistossomose.
Palavras-chave: Esquistossomose; Esquistossomose Mansoni; Descentralização; Vigilância Epidemiológica; Avaliação de Programas e Projetos de Saúde.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to evaluate the Schistosomiasis Epidemiologic Surveillance System (SESS) in the municipalities of Antônio Cardoso and Catu, state of Bahia, Brazil.
METHODS: evaluation carried out in 2004, considered the contextual determinants for the implementation of the intervention, structure and process of the SESS; it was adopted the research strategy of case study; for data collection, it was used the US Atlanta-based Centers for Disease Control and Prevention Guidelines for Evaluating Surveillance Systems, and questionnaires to analyse context, structure and process.
RESULTS: the study results indicate an SESS fragmented, individualized, and not prioritized by local managers.
CONCLUSION: it is necessary an integrate work between Epidemiologic Surveillance professionals and other Health sectors, specially Primary Health Care, as well asfeedback of generated information by the SESS and restructuring of the Schistosomiasis Surveillance and Control Program.
Key words: Schistosomiasis; Schistosomiasis Mansoni; Decentralization; Epidemiologic Surveillance; Program Evaluation.
Introdução
A esquistossomose mansoni ainda é um sério problema de Saúde Pública, sobretudo nos países em desenvolvimento. Estimou-se que em 2004, cerca de 200 milhões de pessoas residentes em áreas de risco de transmissão da esquistossomose estavam infectadas por Schistosoma mansoni, parasita encontrado em 54 países da África, Ásia e América do Sul. Nas Américas, registra-se área endêmica na Venezuela, nas ilhas do Caribe e no Brasil.1-3 Ainda em 2004, aproximadamente 25 milhões de pessoas, vivendo em zonas rurais e agricultáveis ou em áreas periféricas de algumas cidades brasileiras de 19 unidades da Federação, estavam expostas ao risco de contrair a doença, e pelo menos 2,5 milhões se encontravam infectadas.4
No Brasil, o controle da esquistossomose tem se desenvolvido mediante diferentes programas estatais de intervenção. Um primeiro resultado desse processo, o conhecimento da vasta extensão territorial esquistossomótica, é apresentado entre as conclusões do primeiro inquérito nacional de prevalência da doença (1950-1953), realizado por Pellon e Teixeira5,6 em 11 Unidades Federadas, quando foi instituída a Campanha Nacional Contra a Esquistossomose. Atualmente, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) inclui, entre suas atividades, a coordenação nacional do Programa de Vigilância e Controle da Esquistossomose (PCE).
Em 1999, foi oficializada a descentralização das ações de vigilância e controle de doenças da esfera federal para as instâncias municipais, por meio de Portaria Ministerial que regulamentou as competências sobre o tema para a União, Estados, Municípios e Distrito Federal.7,8 Assim, consolidou-se o processo de descentralização dessas ações no País e estruturaram-se sistemas de vigilância com bases municipais, ademais da incorporação dos programas de controle de doenças transmitidas por vetores, hospedeiros e reservatórios - entre os quais o PCE -, financiados pelo repasse de recursos fundo a fundo.
A partir do conhecimento da extensão das áreas endêmicas para esquistossomose no Brasil e o destaque, pela instituição estatal, de sua importância como problema de Saúde Pública, vasta literatura tem sido produzida sobre a doença e medidas de controle, entre outros aspectos. Pouco se conhece, entretanto, sobre o sistema de vigilância, especialmente nos municípios e localidades onde o problema está situado. Santana e colaboradores referem que a avaliação dos programas de Saúde Pública tem-se mostrado um procedimento indispensável para o desencadeamento das políticas públicas.9
Os critérios para avaliação de um sistema de vigilância tem sido debatidos por vários pesquisadores, em distintas instituições especializadas, demonstrando a importância do problema sob vigilância, os elementos da organização e a avaliação dos diversos atributos do sistema em análise.10
Os municípios de Antônio Cardoso e Catu situam-se em áreas endêmicas para esquistossomose do Estado da Bahia. Resultados dos primeiros inquéritos parasitológicos realizados pelo Programa de Controle de Esquistossomose indicam para Antônio Cardoso-BA e Catu-BA percentuais de positividade de 31,0% (1983) e 23,0% (1990), respectivamente.
O presente estudo teve por objetivo avaliar o Sistema de Vigilância Epidemiológica (SVE) da esquistossomose nos Municípios de Antônio Cardoso-BA e Catu-BA.
Métodos
Trata-se de uma pesquisa avaliativa de análise de implantação de um programa de ação, em seu primeiro componente, qual seja, os determinantes contextuais da implantação da intervenção, da estrutura e do processo da Vigilância Epidemiológica (VE) da esquistossomose utilizando como estratégia de pesquisa o estudo de caso.11,12 Foi considerado 'caso' cada um dos municípios selecionados pelo estudo, Antônio Cardoso-BA e Catu-BA, avaliados para o período de abril a outubro de 2004.
À época do estudo, o estado da Bahia contava então 13.440.544 habitantes e 417 municípios,13 dos quais 251 eram endêmicos para esquistossomose, e 10.001.348 baianos viviam em áreas de risco para infecção. A estrutura administrativa da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB) estava dividida em 31 Diretorias Regionais de Saúde (Dires), contava com as ações desenvolvidas pelo programa desde 197614 e dispunha de farta documentação nos níveis estadual e municipal a partir do ano de 1979.
Na seleção dos municípios, foram consideradas as seguintes características: a) pertencer à área endêmica para esquistossomose, conforme os critérios das diretrizes técnicas vigentes; b) ter realizado, pelo PCE municipal, ao menos três inquéritos ou censos coproscópicos recentes; c) pertencer a distintas Dires; e d) permitir facilidade de acesso. Também levou-se em consideração o interesse da gestão do PCE/SESAB na avaliação desses dois municípios, pela razão de haverem mantido as mesmas equipes de trabalho após a descentralização.
O município de Antônio Cardoso-BA se localiza na mesorregião Centro-Norte baiana, à margem esquerda do rio Paraguaçu, possui uma área geográfica de 293,1km2 e população residente de 11.620 habitantes segundo o censo demográfico de 2000: apenas 19,9% residiam na zona urbana enquanto 80,1% viviam na zona rural. Antônio Cardoso-BA estava habilitado na Gestão Plena de Atenção Básica, possuía um centro e quatro postos de saúde. Para a atenção primária nessas unidades de saúde, o município dispunha de duas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF); e como destino de referência para sua assistência de média e alta complexidade, contava com a cidade de Feira de Santana-BA, distante 31km.13-15 O Programa de Vigilância e Controle da Esquistossomose desenvolve ações no Município há 25 anos, inicialmente conduzidas pelas esferas federal e estadual até 1999, ano quando o PCE foi descentralizado para a gestão municipal.
O município de Catu-BA está situado na região Nordeste do estado da Bahia, na bacia hidrográfica do rio Pojuca. Possui uma área geográfica de 520km2 e, na conclusão do censo demográfico de 2000, apresentava uma população de 46.731 habitantes: 80,9% na zona urbana e 19,1% na zona rural. Desde 1988, o município estava habilitado na Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde e contava com 15 ESF. Na assistência ambulatorial e hospitalar de média complexidade, possuía um Ambulatório de Especialidades, um Centro Ortopédico, um Laboratório Municipal e um Serviço Municipal de Fisioterapia, além do Hospital Municipal de Catu.13,14,16 O PCE desenvolve ações no município desde 1990, inicialmente conduzidas pelas esferas federal e estadual até 1999, quando o PCE foi descentralizado para a gestão municipal.
O estudo constituiu-se da análise e descrição dos componentes de estrutura e de processo da VE da doença, segundo os preceitos da avaliação de qualidade em saúde preconizados por Donabedian17 e roteiros para avaliação dos sistemas de vigilância epidemiológica.18
Foram utilizados os dados do censo demográfico realizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano 2000,13 dos Cadernos de Saúde dos Municípios disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus)/Ministério da Saúde, dos Planos Municipais de Saúde dos dois municípios, dos manuscritos consolidados dos inquéritos coproscópicos do PCE realizados também nos dois municípios, e do Sistema de Informação do Programa de Controle da Esquistossomose (SISPCE).19
Para o levantamento dos dados referentes ao contexto do SVE nas duas localidades, foram aplicados questionários com perguntas semiestruturadas, adaptadas para avaliação do sistema de vigilância da esquistossomose, a partir de instrumento construído por Felisberto e colaboradores20 Para a elucidação de contexto, optou-se por: a) variáveis demográficas; b) variáveis relacionadas à gestão; e c) algumas variáveis epidemiológicas.
Nas entrevistas, foram utilizados os roteiros para avaliação de sistemas de vigilância recomendados pelos Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos da América (CDC/EUA), questionários específicos de análise de contexto, estrutura e processo, e atributos qualitativos e quantitativos próprios de um sistema de vigilância. Além da metodologia de avaliação proposta pelo CDC/EUA, também se fez necessária a avaliação normativa - componentes de estrutura e de processo - e aspectos da pesquisa avaliativa, qual seja, a análise dos determinantes contextuais do grau de implantação de programas como um dos três componentes que "apóia a análise de implantação de programas." 17-20
E como parâmetros da avaliação, foram empregados os modelos de questionários aplicados por Moliner e colaboradores,21 adaptados para o SVE da esquistossomose.
No que se refere à avaliação da estrutura - sujeito e objeto -, foram atribuídos os seguintes valores de pontuação-qualificação:
a) sujeito: 0 a 6 (indefinido); 7 a 9 (pouco definido); 10 a 13 (bem definido) - Valor máximo, 13 pontos.
b) objeto: 0 a 2 (indefinido); 3 a 4 (pouco definido); 5 a 6 (bem definido) - Valor máximo, 6 pontos.
O conjunto estrutura teve pontuação e qualificação atribuídas: 0 a 10 (mal definida); 11 a 13 (indefinida); 14 a 19 (adequada) - Pontuação máxima, 19 pontos.
Para avaliação do processo, cada atributo recebeu pontuação-qualificação, a saber:
a) simplicidade: 0 a 6 (ruim); 7 a 10 (regular); 11 a 12 (bom).
b) a aceitabilidade, a flexibilidade e a estabilidade foram avaliadas e qualificadas segundo a mesma escala: 0 a 1 (ruim); 2 (regular); 3 (bom).
c) sensibilidade: 0 a 2 (ruim); 3 a 5 (regular); 6 a 8 (bom).
d) valor preditivo positivo - VPP: 0 a 2 (ruim); 3 (regular); 4 (bom).
e) oportunidade: 0 a 8 (ruim); 9 a 13 (regular); 14 a 16 (bom).
f) capacidade de auto-resposta: 0 a 10 (ruim); 11 a 17 (regular); 18 a 20 (bom).
g) representatividade: 0 a 14 (ruim); 15 a 22 (regular); 23 a 28 (bom).
O conjunto processo também teve pontuação e qualificação atribuídas: 0 a 32 (funcionamento ruim); 33 a 65 (funcionamento regular); 66 a 97 (funcionamento bom) - Pontuação máxima, a partir de 97.
Esses instrumentos possibilitaram a obtenção de evidências do desempenho do SVE quanto aos atributos de qualidade (simplicidade; flexibilidade; aceitabilidade), quantidade (sensibilidade; valor preditivo positivo; oportunidade; representatividade), estabilidade e utilidade.
Entre os modelos utilizados pelos autores e adaptados para este estudo, foram adotados e agregados aos questionários alguns componentes da abordagem qualitativa de tipo exploratória, em que se procurou apreender e compreender a percepção dos sujeitos envolvidos no processo da Vigilância Epidemiológica da esquistossomose nos Municípios estudados.
Do enfoque da avaliação em saúde preconizado por Donabedian,17 estrutura, processo e resultado, foram utilizados os dois primeiros:
- A avaliação da estrutura agregou a média da pontuação dos questionários respondidos, entendendo por sujeito a percepção dos entrevistados quanto à organização dos recursos humanos (quem participa dos inquéritos, atendimento aos portadores de S. mansoni, laboratório, e educação em saúde), executores das atividades de vigilância no contexto da Atenção Básica; e por objeto, a população sobre a qual são desenvolvidas as atividades de vigilância da esquistossomose.
- A avaliação do processo evidenciou a análise dos atributos básicos do sistema de vigilância preconizados pelo CDC/EUA, complementados pelos parâmetros 'estabilidade' e 'capacidade de auto-resposta' (ou competência do sistema em propor e estimular ações para o controle do evento detectado), utilizados por Moliner e colaboradores.21
Também foram aplicados questionários com os gestores e profissionais que participavam diretamente das atividades do SVE, tanto no nível regional, na sede das duas Diretorias Regionais de Saúde - Dires -, quanto no nível de responsabilidade das unidades básicas de saúde e postos de saúde com ESF. As questões levaram em consideração os elementos gerais da estrutura e do processo (atributos de um sistema de vigilância), aferidos mediante pontuação para cada atributo avaliado.
Foram entrevistados sete integrantes das gestões estadual, regional (Dires) e municipal, mais 21 participantes da execução da Vigilância Epidemiológica nos dois Municípios: oito em Antônio Cardoso-BA; e 13 em Catu-BA. Também foram analisados os Planos Municipais de Saúde 2002-2005, sob as gestões vigente à época da pesquisa, e os Relatórios de Gestão 2003, para ambos os municípios. Na interpretação dos resultados, também foi considerada a impressão sentida das discussões e as observações sobre os setores e serviços onde eram desenvolvidas as principais atividades da Vigilância Epidemiológica.
Dos entrevistados no município de Antônio Cardoso-BA, oito profissionais eram integrantes da gestão, coordenação e execução do SVE. Dos servidores da execução da Vigilância Epidemiológica, três eram agentes de endemias, dois médicos, dois enfermeiros (um da coordenação da VE e outra da ESF) e uma auxiliar de enfermagem responsável pela VE do Centro de Saúde Municipal.
No município de Catu-BA, foram entrevistados o secretário municipal de saúde, os diretores da VE e da Vigilância Sanitária, dois agentes de endemias, um laboratorista, o digitador dos dados dos programas de doenças endêmicas, quatro médicos e enfermeiras das ESF. Foram visitadas 13 unidades de saúde com ESF e destas, quatro estavam sem médico ou enfermeiro. Foram realizadas entrevistas em nove unidades de saúde: seis da zona urbana e três da zona rural. Em algumas dessas unidades, foi necessário retornar duas vezes para coleta das informações. Das 15 unidades com ESF, duas na zona rural deixaram de ser visitadas devido à distância e exiguidade do tempo disponível.
As entrevistas tiveram seu conteúdo analisado em quatro etapas: ordenação; classificação; transcrição; e tabulação final dos dados. Também foram colhidas informações por meio de visitas, observação da rotina dos serviços e discussão com os profissionais integrantes do SVE da esquistossomose da SESAB, das Dires, e com os gestores da Saúde nos municípios.
Cada entrevistado assinou um 'Termo de Consentimento Livre e Esclarecido', documento que assegura o anonimato e sigilo sobre as declarações prestadas, de acordo com a Portaria no 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS)/MS. O estudo recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca - ENSP/ Fundação Instituto Oswaldo Cruz - Fiocruz/Rio de Janeiro-RJ, conforme Parecer no 63/04, de 01/09/04.
Resultados
As equipes do SVE da esquistossomose de Antônio Cardoso-BA pontuaram a estrutura como adequada, a despeito de o PCE municipal atuar com dificuldades há mais de 25 anos. Dificuldades como a desarticulação entre as equipes de endemias e de Saúde da Família, pouca visibilidade da doença por parte do gestor municipal e acomodação da população diante do relevante problema de Saúde Pública que a doença representa.
A dimensão da esquistossomose no Município foi enfatizada na fala de um membro da gestão do SVE municipal:
"a esquistossomose é uma doença que as pessoas, não digo que se acostumam, mas convivem considerando como normal. O próprio gestor passa a achar que é natural, porque quando ocorre um caso de meningite, leishmaniose ou tuberculose numa localidade, o fato chama a atenção... quando cheguei aqui, o pessoal de saúde não ia a campo vacinar, fazer busca ativa de doentes, pois não tinha transporte, achava que não era necessário. O gestor municipal não tem visão da gravidade da doença... não percebe!"
A questão do saneamento ficou evidenciada pela dificuldade do município em ter acesso às fontes de recursos, principalmente no final da gestão. Ainda foi referido que não houve mudança dos componentes da gestão no período 2002-2004, e que as duas equipes de Saúde da Família dos postos e centros de saúde cobriam 100,0% da Atenção Básica municipal.
O Sujeito (organização dos recursos humanos e materiais necessários para o desenvolvimento das atividades da vigilância) está 'bem definido', embora deva ser observado que esta pontuação encontra-se no limite inferior da qualificação.
O Objeto (a população sob vigilância) foi caracterizado como 'bem definido'.
A somatória desses valores teve a pontuação válida de 15,4% e a classificação de uma estrutura adequada (Tabela 1).
Dos nove atributos avaliados, um foi qualificado como 'bom' e sete como 'regulares'. Observa-se que a sensibilidade ficou no limite inferior do escore e o VPP teve pontuação 'ruim'. A mesma interpretação é válida para a sensibilidade do SVE.
O processo, cujo escore agrega a soma das médias de todos os atributos, foi pontuado como de bom funcionamento (Tabela 2) embora a maioria dos entrevistados tenha referido (i) falta de divulgação do trabalho executado pelo PCE, (ii) carência de análise e disseminação de informação para os próprios participantes do SVE, instituições e população do município, assim como (iii) necessidade de atualização dos profissionais da rede básica de saúde e das equipes de endemias.
Em Catu-BA, o componente gerencial não se encontrava institucionalizado na rotina do planejamento como as demais Secretarias Municipais de Infraestrutura, Transporte e Educação, na utilização da informação sobre esquistossomose existente na esfera municipal. As atividades anuais eram programadas baseadas nos dados dos inquéritos coproscópicos de anos anteriores. Esses inquéritos eram realizados pelos Agentes de Endemias da Dires sediada no município de Alagoinhas-BA, que operavam como supervisores do PCE e da equipe dos agentes de endemias do município, sem o envolvimento de outros profissionais presentes e atuantes naquele cenário.
A estrutura do SVE foi pontuada como mal definida principalmente no que se refere a organização, estrutura física e de pessoal, além da inexistência de integração do PCE com as demais ações da Atenção Básica (Tabela 1).
O Sujeito (organização dos recursos humanos e materiais necessários para o desenvolvimento das atividades da vigilância) foi classificado como 'indefinido'.
O Objeto (a população sob vigilância) foi assinalado como 'pouco definido'.
Na somatória desses valores, a pontuação válida de 9,3 caracteriza uma estrutura mal definida.
Dos nove atributos, sete tiveram qualificação 'regular' e dois deles, oportunidade e capacidade de auto-resposta, receberam classificação 'ruim'. O resultado do escore atribuído à oportunidade está diretamente ligado à capacidade de auto-resposta: ambos os atributos obtiveram qualificação 'ruim' (Tabela 2). A oportunidade foi referida como 'limitada', por dispor somente de uma intervenção - a medicação -, fato este acentuado pela falta de disseminação da informação no nível local.
Entre os atributos do SVE, a aceitabilidade do sistema de VE da esquistossomose foi manifestada seja pelos profissionais que operam o SVE em sua gerência estadual, regional e local, seja pelas equipes das regionais e dos servidores das diversas áreas que entendiam a gravidade da esquistossomose como problema de Saúde Pública e identificavam a necessidade de maior participação das entidades públicas afins.
Sobre a representatividade, o SVE não tem possibilidade de identificar todos os grupos e subgrupos populacionais em que ocorrem casos, segundo pessoa, tempo e lugar. Os casos assintomáticos dificilmente são detectados pela rede de atenção à saúde, enquanto os inquéritos tampouco cobrem a totalidade da população, inclusive aquela residente em áreas de risco de transmissão.
A oportunidade está ligada ao fluxo da informação e sua capacidade de provocar respostas imediatas. Como medida oportuna, a VE da esquistossomose conta apenas com o tratamento dos portadores de S. mansoni.
Os atributos sensibilidade e valor preditivo positivo, importantes para a efetividade do sistema, tiveram escores inferiores.
Quanto à flexibilidade, ainda não havia ocorrido qualquer mudança ou adaptação à realidade dos municípios: por exemplo, a identificação de casos em outras fontes de notificação, como o atendimento espontâneo na Atenção Básica e na rede hospitalar (identificação de formas graves), e especialmente de estratégias diferenciadas para áreas de baixa prevalência ou com focos delimitados.
A utilidade, como atributo que pode responder a muitos questionamentos sobre o SVE e o próprio PCE, era pouco referida e empregada no planejamento das ações de vigilância e controle da doença, tanto na esfera estadual quanto local.
Discussão
Os depoimentos sobre a gestão da Saúde e a direção do SVE nos municípios referiram-se ao pouco envolvimento da população representada nos Conselhos Municipais de Saúde, principalmente quanto à esquistossomose, o mais vultoso agravo à saúde local. Isso se deve à falta de motivação das pessoas pela participação popular na busca e resolução de questões que escapam à governabilidade dos profissionais de saúde, principalmente em municípios pequenos e com pouca participação na economia do Estado.21
Foi ponto marcante, nas citações das entrevistas, a desarticulação entre as equipes de endemias e de ESF, em todo o processo de trabalho. A falta de articulação entre os profissionais possui raízes mais profundas, envolve divisão do trabalho e do espaço, competição do saber e dos recursos, carência de um esforço conjugado das instâncias estadual, regionais (Dires) e de cada gestor municipal no sentido de integrar os profissionais de saúde e seus processos de trabalho, instituições e outras entidades que atuam no contexto do município.
Costa & Pinto,22 em artigo que trata da atenção ambulatorial e a experiência da descentralização no Brasil, referem que:
"para a maioria dos programas de saúde, implantados ou implementados de modo descentralizado, a dependência para um bom resultado das decisões do gestor local torna-se uma variável decisiva. Esse fato ocorreu com os programas de ampliação da cobertura na Atenção Básica desenvolvidos no país a partir da década de 1990, sendo exemplo o Programa de Saúde da Família (PSF). A qualidade do desempenho do sistema de saúde brasileiro está diretamente associada ao processo decisório municipal e estadual."
O SVE da esquistossomose no município de Antônio Cardoso-BA dependia, em grande parte, do reforço dos agentes de endemias da sede da Dires em Feira de Santana-BA para as atividades de busca ativa. A Secretaria Municipal de Saúde não possuía estruturas física e de pessoal adequadas para responder à demanda de exames coproscópicos e de outras patologias oriundas de sua área de atuação.
Na avaliação dos atributos do SVE da esquistossomose em Antônio Cardoso-BA, a estrutura foi considerada adequada. O resultado pode ser atribuído à visão geral que os entrevistados têm do SVE da esquistossomose, ainda que, nas questões específicas, tenha-se constatado a carência de estrutura física e de pessoal de suporte às atividades de laboratório, tanto do PCE como da Atenção Básica. A avaliação do processo obteve pontuação classificada como boa, embora, os participantes do SVE tenham indicado problemas de ordem gerencial e operacional que afetam o bom desempenho do processo de trabalho. Esses aspectos também são referidos por Costa & Pinto.22
De forma geral, na avaliação dos atributos que expressam o desenvolvimento do processo, as maiores dificuldades para mensurá-los estão refletidas na sensibilidade e no valor preditivo positivo - VPP.21 Na análise da qualificação obtida em Antônio Cardoso-BA, a sensibilidade regular e o VPP ruim estão no limite inferior do escore, o que expressa as próprias características da esquistossomose: curso silencioso e dificuldade de predição dos casos. Para a detecção de casos, tem sido realizada busca ativa dos portadores mediante a positividade no exame coproscópico. A rotina dos serviços de saúde não conta com outro meio de diagnóstico senão o parasitológico de fezes e não têm outra estratégia para a triagem dos portadores de S. mansoni.
Ainda que a avaliação do processo tenha obtido pontuação classificada como boa, em virtude, principalmente, da avaliação positiva da representatividade, atributo de peso acentuado nessa avaliação, foram identificados vários problemas referidos pelos participantes do SVE. Na somatória das pontuações atribuídas à utilidade do processo, o sistema de VE da esquistossomose no município de Antônio Cardoso-BA obteve qualificação aceitável, apesar das dificuldades referidas e descritas na qualificação de todos os atributos.
O SVE do município de Catu-BA apresenta uma avaliação de estrutura mal definida, caracterizada por um sujeito indefinido e um objeto pouco definido. Essa qualificação sintetiza a percepção dos entrevistados, traduzida pelos escores relativos a organização e definição do SVE, objetivos do sistema, fluxo da informação, estruturas física e de pessoal, e população coberta pelo sistema de vigilância da esquistossomose.
Na avaliação do processo do SVE de Catu-BA, os escores regulares e ruins conferidos a oportunidade, capacidade de auto-resposta e valor preditivo positivo podem ter essa qualificação atribuída, em parte, à falta de divulgação das informações sobre a doença para a população, impedindo a ação oportuna e eficiente do SVE e dificultando o estabelecimento de parcerias. Se para doenças que possuem como principal estratégia a busca ativa de casos para reduzir a transmissão, o julgamento desses atributos fica limitado,21 no caso da esquistossomose, a avaliação fica comprometida devido a seu caráter crônico e insidioso, com a existência de infectados assintomáticos.
A somatória dos escores atribuídos à utilidade do processo qualificou o sistema de vigilância da esquistossomose em Catu-BA como aceitável, em função da disposição e do entendimento que os profissionais demonstraram diante do trabalho, apesar dos entraves apontados pelos entrevistados: falta de retroalimentação do sistema; falta de análise, utilização e divulgação dos dados para as instituições e população geral; e falta de discussão sobre a esquistossomose e as atividades do PCE, enquanto intervenção de alcance no enfrentamento do problema.
Os depoimentos dos participantes da VE da esquistossomose entrevistados nos dois municípios situaram o lapso ocorrido na capacitação e adaptação do pessoal cedido pela Funasa para o Estado. Não houve preocupação dos gestores federal e estadual com o processo de trabalho vivido por essas pessoas oriundas de cultura institucional diferente. Houve, sim, uma adaptação onde cada equipe preservou seu saber e seu espaço, sem uma visão integrada do SVE da esquistossomose e de outros agravos.
O sistema de vigilância da esquistossomose era percebido pelos participantes do SVE municipal de forma fragmentada. Embora fossem eles seus executores, não visualizavam a vigilância da esquistossomose em toda sua abrangência. Essa evidência também foi observada em estudos sobre a vigilância epidemiológica realizados por Cerqueira e colaboradores na Bahia23 e por Takahashi & Oliveira em São Paulo.24 Esses autores identificaram que, para atender o atual conceito de VE, cujo principal fundamento se encontra na análise da situação de saúde, seus determinantes e condicionantes, e sua finalidade na indicação e execução das ações de prevenção e controle de agravos, faz-se necessário extrapolar a prática voltada às doenças de notificação compulsória ou àqueles agravos-alvo do clamor público. Para tanto, é necessária a capacitação e a articulação entre seus componentes e outros setores da sociedade, com vistas a alcançar o verdadeiro objetivo da Vigilância em Saúde. A organização do SVE da esquistossomose como um subsistema do Sistema de Vigilância Epidemiológica nos municípios analisados depende da reorganização desse sistema maior.
Em relação aos questionários aplicados ao contexto, estrutura e processo, trabalhos dessa natureza, que envolvem questões subjetivas, estão sujeitos a vieses de percepção dos entrevistados, decorrentes de sua formação profissional, tempo dedicado e experiência em Saúde Pública, relações pessoais, profissionais e culturais. Esses problemas, contudo, não comprometem um estudo de análise inicial do SVE da esquistossomose no cenário local após a descentralização das ações de vigilância e controle de doenças por parte da esfera federal.
Na vigilância e controle da esquistossomose, os avanços alcançados após a descentralização todavia são incipientes e não repercutem no aprimoramento das ações e em melhorias para a população. Não há um modelo desenvolvido que possa se adequar à realidade local. Os municípios-objeto do estudo realizam a VE da esquistossomose dentro de suas possibilidades e limitações, reproduzem procedimentos sem qualquer análise ou questionamento dos resultados para a população, dos objetivos propostos e dos alcançados, não levam em conta a mudança do perfil das localidades trabalhadas há uma ou duas décadas, tampouco consideram o próprio contexto onde as atividades são desenvolvidas. Nessa conjuntura, a ação das Dires como facilitadoras dos processos não é evidenciada, o papel gerencial é sufocado pelo peso da burocracia e automatização das ações e, assim, não se valoriza os dados produzidos, uma fonte rica de informações de cunho epidemiológico e operacional para o enfrentamento da doença.
Inconsistências de dados existem, dificuldades operacionais também, mas nada que impeça uma revisão e reorganização, um novo pacto e divisão de responsabilidades dos gestores, técnicos e agentes responsáveis pela vigilância da esquistossomose nos municípios de Antônio Cardoso-BA e Catu-BA.
Agradecimentos
Aos técnicos da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, Aécio Meireles Dantas S. Filho e Edgar Lessa Crusoé.
Aos técnicos e agentes de combate às endemias do Programa de Vigilância e Controle da Esquistossomose - PCE - de Salvador-BA e da 2a e 3a Diretorias Regionais de Saúde - Dires de Feira de Santana-BA e de Alagoinhas-BA.
Aos gestores, agentes de combate às endemias e profissionais da Estratégia Saúde da Família - ESF - e aos servidores das Secretarias Municipais de Saúde de Antônio Cardoso-BA e Catu-BA.
E aos coordenadores e técnicos da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Brasília-DF, pelo acesso aos documentos e apoio, essenciais para a realização desta pesquisa.
Contribuição dos autores
Menezes MJR participou de todas as etapas da pesquisa, da elaboração do artigo e de sua revisão final.
Carmo EH e Samico I participaram da concepção e orientação da pesquisa, revisão crítica e final do artigo.
Referências
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Endereço para correspondência:
SQS 216, Bloco K, Apto. 402,
Brasília-DF, Brasil.
CEP: 70295-110
E-mail: mariarmenezes@gmail.com
Recebido em 11/03/2011
Aprovado em 17/06/2012
*Artigo elaborado a partir da dissertação de Mestrado Profissional em Vigilância em Saúde apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Instituto Oswaldo Cruz/Rio de Janeiro-RJ, Brasil, em 2005.