SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número1Morbimortalidade relacionada ao trabalho no estado do Amazonas, Brasil, 2000-2011Visita domiciliar: validação de um instrumento para registro e acompanhamento dos indivíduos e das famílias índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.23 n.1 Brasília mar. 2014

 

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742014000100015

ARTIGO ORIGINAL

 

Saúde bucal em indivíduos com hanseníase no município de Sobral, Ceará*

 

Oral health in leprosy patients, Sobral, Ceará state, Brazil

 

 

Adriano de Aguiar FilgueiraI; Márcio Anderson Cardozo ParesqueII; Sandra Maria Flor CarneiroIII; Ana Karine Macedo TeixeiraI

ICurso de Odontologia, Universidade Federal do Ceará, Sobral-CE, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Saúde da Família, Universidade Federal do Ceará, Sobral-CE, Brasil
IIIGerência da Vigilância Epidemiológica, Secretaria Municipal de Saúde, Sobral-CE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: avaliar a condição de saúde bucal de pacientes com hanseníase no município de Sobral, estado do Ceará, Brasil.
MÉTODOS: estudo transversal, contemplando levantamento epidemiológico da saúde bucal e entrevista com 65 pacientes portadores de hanseníase; as variáveis pesquisadas foram (i) condições de saúde bucal, (ii) dados socioeconômicos, (iii) utilização de serviços odontológicos e (iv) percepção da relação entre doença e saúde bucal.
RESULTADOS: a maioria dos pacientes (n=47) possuía baixa escolaridade e não foi orientada a procurar o serviço odontológico no momento do diagnóstico da doença (n=44); 10 responderam sentir alguma dificuldade na escovação bucal, devida à dormência nos membros superiores; verificou-se associação significativa entre episódios reacionais e sangramento gengival (p=0,010), classificação operatória (p=0,001) e procura do serviço odontológico (p=0,001).
CONCLUSÃO: o acompanhamento odontológico dos pacientes com hanseníase é importante para reduzir os focos de infecção da doença.

Palavras-chave: Hanseníase; Saúde Bucal; Acesso aos Serviços de Saúde; Epidemiologia.


ABSTRACT

OBJECTIVE: assess the oral health status of leprosy patients in Sobral-CE.
METHODS: cross-sectional study. An epidemiological oral health survey and interview were conducted with 65 leprosy patients. Oral health, socioeconomic data, use of dental services and perception of the relationship between oral health and disease were analyzed.
RESULTS: the majority had low education (n=47) and were not instructed to see a dentist when they were diagnosed (n=44). Ten respondents experienced some difficulty brushing their teeth, because of numbness in the upper limbs. A statistically significant relationship between reactive episodes and gingival bleeding (p=0.010), operational classification (p=0.001) and demand for dental services (p=0.001) was observed.
CONCLUSION: it is importantfor leprosy patients to have dental follow-up in order to reduce sources of infection with this disease.

Key words: Leprosy; Oral Health; Health Services Accessibility; Epidemiology.


 

 

Introdução

A hanseníase, uma doença crônica dermatoneurológica de notificação compulsória em todo o território nacional, proveniente de infecção produzida pelo Mycobacterium leprae, apresenta alta infectividade e baixa patogenicidade.1 É considerada uma doença estigmatizada historicamente, revestida de preconceitos que interferem na dignidade do paciente.2

Aproximadamente 80% dos casos de hanseníase são encontrados em sete países: Brasil, Índia, Indonésia, Madagascar, Myanmar, Nepal e Nigéria.3 Em 2010, o Brasil contribuiu com cerca de 15% do total de casos registrados em 118 países, sendo aquele com maior proporção - 92,4% - dos casos registrados no continente americano. De fato, o país tem mantido, nas últimas décadas, a situação mais desfavorável da hanseníase na América, além de reunir o segundo maior número de casos novos da doença no mundo.4

Os sintomas da hanseníase podem se apresentar como lesão(ões) e/ou área(s) de pele com alteração de sensibilidade, como o acometimento de nervos periféricos.1 As vias aéreas superiores são a porta de entrada mais importante para o bacilo e a fonte principal para a eliminação bacilar na hanseníase. A mucosa bucal parece ser o segundo principal sítio de infecção e transmissão da M. leprae, com fundamental papel na transmissão da hanseníase de adultos para crianças.3 As lesões hansênicas, geralmente, constituem alterações de sensibilidade na pele, embora essas alterações possam ocorrer também na cavidade bucal. Além disso, complicações locais como úlceras e perfurações nasopalatinas, eventualmente, possam-se estabelecer em decorrência das reações hansênicas. Nos casos extremos, o comprometimento da úvula leva à destruição completa da estrutura.5

Reações hansênicas são alterações do sistema imunológico, exteriorizadas como manifestações agudas e subagudas, mais frequentes nos casos multibacilares. Elas são caracterizadas por períodos de inflamação aguda no curso de uma doença crônica, capazes de afetar os nervos.6 Infecções, distúrbios hormonais e motivações emocionais são apontados como fatores desencadeantes dessas reações.7 As infecções odontológicas também podem estar relacionadas a episódios de reações hansênicas. Nos casos mais graves de hanseníase, é frequente o aparecimento de lesões bucais, sendo pouco comuns na forma paucibacilar. Para o tipo multibacilar, é descrita predisposição a cárie, gengivite e periodontite com perda do osso alveolar e, conseqüentemente, perda dental, iniciada pela crista óssea interincisal da maxila.8

Segundo Cortela e colaboradores,9 poucos estudos abordaram a participação do cirurgião-dentista na atenção aos pacientes de hanseníase com lesões patológicas na cavidade bucal e condições odontológicas precárias.9

O município de Sobral-CE, localizado na região noroeste do estado do Ceará, apresenta elevadas taxas de detecção de hanseníase, sendo classificado, de acordo com os parâmetros da portaria do Ministério da Saúde MS/GM no 3125, de 7 de outubro de 2010, como hiperendêmico: taxas de detecção superiores a 40 para cada 100 mil habitantes.10,11 Apesar de apresentar sua rede de Atenção Primária estruturada, o município carece de um protocolo de atendimento odontológico para pacientes com hanseníase, bem como pesquisas que investiguem a associação entre saúde bucal e hanseníase na localidade.

O objetivo deste estudo foi avaliar a condição de saúde bucal dos pacientes com hanseníase no município de Sobral-CE e investigar a associação entre problemas odontológicos e reações hansênicas, no período de 2011 e 2012.

 

Métodos

Trata-se de estudo transversal, conduzido na zona urbana da cidade de Sobral, Ceará, localizada a 235 km da capital do estado, Fortaleza-CE, e com população estimada em 190.724 habitantes para o ano de 2011. Os indicadores do município apontam índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0.699 e produto interno bruto (PIB) per capita de R$ 8.688,00. Sobral-CE conta com 12 indústrias extrativas e 355 indústrias de transformação.12

A população estudada correspondeu aos pacientes diagnosticados com hanseníase no período de janeiro de 2011 a junho de 2012, totalizando 119 casos novos não recidivantes e residentes na sede do município, identificados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

Foram incluídos na pesquisa os pacientes que não apresentaram recidiva da doença e os que moravam na sede do município, pois haveria a possibilidade dos recidivantes terem sido avaliados e tratados por uma equipe de Saúde Bucal em tratamento anterior da doença. Os pacientes dos distritos não foram incluídos no estudo, em função da dificuldade de deslocamento deles e dos pesquisadores.

A coleta de dados ocorreu nas unidades básicas de saúde (UBS). Foi agendado um dia específico para os pacientes comparecerem à UBS e participarem da pesquisa. Para os que não compareceram, realizou-se o exame no próprio domicílio. Utilizou-se como critério de busca dos pacientes a realização de três visitas domiciliares, em horário diurno.

O levantamento epidemiológico em saúde bucal seguiu a metodologia preconizada pelo projeto Saúde Bucal Brasil (SB Brasil).13 Investigou-se a cárie dentária a partir do índice CPO-D (número de dentes cariados, perdidos e restaurados), doença periodontal a partir do índice CPI (índice periodontal comunitário, no qual é avaliado o sangramento gengival, presença de cálculo e bolsa periodontal) e PIP (indicativo de perda de inserção periodontal), edentulismo (índice de uso e necessidade de prótese dental) e presença de lesões bucais. Para o exame odontológico, utilizou-se espelho bucal plano e sonda periodontal especialmente recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ambos esterilizados, sendo o procedimento realizado sob luz natural e com examinador e paciente sentados.

Além do exame clínico, foi realizada uma entrevista com base em um roteiro estruturado, quando foram coletadas as seguintes informações:

a) dados socioeconômicos

- idade - 10 a 19 anos; 20 a 59 anos, 60 anos ou mais -;

- sexo;

- escolaridade - analfabeto; 1 a 4 anos de estudo; 5 a 8 anos de estudo; mais de 8 anos de estudo -;

- renda familiar - 0 a 1 salário mínimo; 1 a 2 salários mínimos; mais de 2 salários mínimos -; e

- emprego - sim ou não -;

b) uso dos serviços odontológicos - recebeu orientação para procurar o serviço odontológico; ida ao dentista; tratamento concluído -;

c) percepção do paciente em relação à doença - se a doença traz algum prejuízo à saúde bucal e a dificuldade de higienizar a boca -;

d) presença de reação hansênica - edemas, nódulos subcutâneos dolorosos, dores articulares, neurites -;1 e

e) classificação operacional - paucibacilar ou multibacilar.

O exame clínico foi realizado por um único examinador, devidamente capacitado e calibrado de acordo com o preconizado pelo SB Brasil. A calibração ocorreu pela técnica de consenso e pela concordância entre o examinador-pesquisador e um examinador-padrão, a partir do cálculo de Kappa, que variou entre 0,81 e 0,86.

As variáveis foram expressas na forma de frequências absolutas. Para verificar a existência de associação entre as condições de saúde bucal, utilização do serviço e classificação operacional (variáveis independentes) e a presença de reação hansênica (variável dependente), utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson (x2) e o teste exato de Fisher. Nas análises, foi considerado o nível de significância de 5%. As informações obtidas foram analisadas pelo programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) em sua versão 16.0 para Windows.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (CEP/UFC -processo no 193.391, de novembro de 2012). Todos os pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, concordando em participar da pesquisa.

 

Resultados

Do total de pacientes (119), excluiu-se 4 que foram a óbito, 16 que não mais residiam em Sobral e 14 não encontrados porque os endereços não correspondiam àqueles registrados no sistema de informações. Além disso, 20 pacientes não compareceram às UBS no dia marcado e tampouco foram encontrados nas residências após busca ativa. Afinal, foram examinados 65 pacientes.

Na Tabela 1, são representados os dados socioeconômicos, o uso dos serviços odontológicos e a percepção dos pacientes em relação à doença. Foi encontrada uma leve predominância do sexo feminino. A maioria (n=47) declarou possuir 8 anos de estudo, receber menos de 2 salários mínimos (n=48) e não estar empregada (n=41).

 

 

A maior parte dos entrevistados havia utilizado serviços odontológicos antes do diagnóstico da doença (n=40). Contudo, 44 referiram não teriam sido orientados a procurar por serviço odontológico após o diagnóstico da hanseníase. Apenas 15 pacientes recorreram a esse serviço durante o tratamento da doença, e menos da metade deles (n=7) concluiu o tratamento odontológico.

Parcela expressiva dos avaliados (n=42) indicou inexistência de relação entre saúde bucal e hanseníase, ou não soube responder à questão. Dez pacientes relataram possuir algum tipo de dificuldade de higienização da cavidade oral devida à dormência nos membros superiores.

Na Tabela 2, consta a média do índice CPO-D e seus componentes segundo a faixa etária. Verificou-se aumento do índice com a idade: enquanto o CPO-D foi de 3,09 na faixa etária de 10 a 19 anos, alcançou 26,82 para aqueles com idade maior ou igual a 60 anos. Na faixa etária menor, o componente 'dente cariado' foi o que prevaleceu, enquanto nas demais, predominou o componente 'dente perdido'.

 

 

A Tabela 3 apresenta os resultados relacionados à condição do periodonto. Em todas as faixas etárias, encontrou-se elevado índice de sangramento gengival à sondagem. Na faixa etária superior a 60 anos, todos que puderam ser examinados possuíam cálculo. A presença de bolsa periodontal foi encontrada em 11 dos pacientes na faixa dos 20 aos 59 anos e em 5 dos pacientes com 60 ou mais anos de idade.

 

 

O uso e a necessidade de prótese dental dos pacientes examinados nesta pesquisa são apresentados na Tabela 4. Dos 27 que faziam uso de prótese superior, 20 apresentaram próteses totais. Quanto à prótese inferior, 13 faziam uso desse tipo de prótese, 6 deles com prótese total. Observou-se que 19 pessoas necessitavam de algum tipo de prótese superior e 36 de prótese inferior. O tipo de prótese dental mais necessitado foi a prótese fixa ou removível, para substituição de mais de um espaço protético.

 

 

As reações hansênicas foram relatadas por 16 pacientes. Verificou-se associação entre a ocorrência dessas reações e as seguintes variáveis: presença de pelo menos um dente cariado; necessidade de exodontia; sangramento gengival; cálculo dentário; bolsa periodontal; perda de inserção; lesão; classificação operatória; e última vez quando procurou um cirurgião-dentista (Tabela 5). Verificou-se associação estatisticamente significativa entre presença de reação hansênica e sangramento gengival. Dos pacientes com algum tipo de reação, 9 apresentaram sangramento gengival à sondagem (p=0,010). A classificação operacional também apresentou significância estatística em relação à presença de reação hansênica: apenas um indivíduo não era multibacilar (p≤0,001). A relação entre reação hansênica e a última vez que o paciente com hanseníase procurou um serviço odontológico também apresentou associação estatística: a procura pelo serviço odontológico durante o tratamento da doença foi mais frequente entre aqueles que apresentaram reação hansênica (p=0,001).

 

 

As lesões orais foram encontradas em 9 dos pacientes examinados, distribuídas da seguinte forma: 6 lesões nodulares, 2 petéquias e 1 úlcera. O palato duro foi a principal área a apresentar lesões (6 das 9 lesões encontradas).

 

Discussão

A maioria dos pacientes de hanseníase observados não recebeu orientações para procurar o serviço odontológico no momento do diagnóstico da doença. Os participantes referiram sentir alguma dificuldade de escovação bucal, devida à dormência nos membros superiores. Verificou-se associação significativa entre episódios reacionais e sangramento gengival, classificação operatória e procura por serviço odontológico.

Os indivíduos acometidos pela hanseníase e objeto do presente estudo apresentavam baixa renda e escolaridade. De forma similar, outra pesquisa concluiu que 65% dos indivíduos com hanseníase apresentavam menos de 8 anos de estudo e 89% contavam com uma renda pessoal de até 2 salários mínimos.14 Estudos15-16 confirmaram a associação entre o baixo grau de escolaridade e a capacidade de autoavaliação da saúde bucal e necessidade de tratamento dos pacientes: quanto maior a escolaridade, melhor a percepção de sua saúde bucal e da necessidade do tratamento odontológico. No estudo de Almeida e colaboradores,14 82% dos entrevistados relataram não ver qualquer relação entre hanseníase e prejuízos à cavidade bucal, ou não souberam responder à pergunta. Trata-se de uma proporção bastante superior à encontrada neste estudo.

Alguns pacientes apresentaram dificuldades de higienização da cavidade oral, achado semelhante ao de estudo desenvolvido por Almeida e colaboradores.14 Outros autores17 afirmam que os episódios reacionais da doença tornam mais difícil a execução ou manutenção dos hábitos de higiene corporal, incluindo a higiene bucal. Além disso, algumas das sequelas da doença em casos mais avançados, como mãos dormentes e em garra, e amputações de dedos, podem interferir diretamente na saúde bucal, ao tornarem procedimentos de higienização, como a escovação dos dentes, mais difíceis de realizar.

Grande parte dos entrevistados afirmou não ter sido orientada a procurar o serviço odontológico, relatando sua última consulta ao dentista como anterior ao diagnóstico da hanseníase. Pode-se verificar que a maioria dos pacientes acometidos pela doença não passam pelo serviço odontológico durante o tratamento, configurando uma falha na atenção a sua saúde. Muitos estudos apontam que a mucosa bucal pode ser fonte de contaminação e transmissão da doença, por apresentar lesões, além de o aparecimento de reações hansênicas ser passível de relação com a presença de infecções odontológicas.3,9,14

Entre os pacientes que procuraram o serviço odontológico, poucos concluíram o tratamento durante o período de medicação para a hanseníase. Nos adultos em geral, algumas doenças sistêmicas e/ou infecto-contagiosas constituem prioridades na organização da atenção à saúde bucal, como é o caso da hanseníase. Se for objeto de diagnóstico da doença, o usuário do serviço odontológico deverá ser encaminhado para avaliação médica, e logo para uma atuação integrada e acompanhamento conjunto pela equipe de saúde.18

Os dados sobre cárie dentária, uso e necessidade de prótese dental em portadores de hanseníase apresentaram semelhanças com os resultados encontrados para a população geral no SB Brasil 2010. O estudo verificou um aumento do índice CPO-D à medida que aumentava a idade, com elevada perda dentária na população idosa.19 Outros estudos também encontraram precárias condições de saúde bucal em portadores de hanseníase.20,21

Em relação à condição do periodonto, observou-se diferenças nos achados deste estudo quando comparados àqueles indicados pelo SB Brasil para a população geral. Enquanto a presença de cálculo foi o grau da doença que mais acometeu a população brasileira - de 24 a 64,1% -, independentemente da faixa etária, o sangramento gengival foi o mais prevalente entre os pacientes de hanseníase deste estudo, acometendo todos os idosos examinados.19

Em outra pesquisa, dedicada ao acompanhamento de pacientes com hanseníase durante três anos, encontrou-se uma relação estatisticamente significativa entre doença periodontal e surto reacional hansênico,22 o que reforça o resultado encontrado por este trabalho. Entretanto, outro estudo, ao avaliar 100 pacientes com hanseníase, não encontrou evidência de que a enfermidade seja determinante para a ocorrência de doença periodontal.9

A associação encontrada entre classificação operacional e presença de reação hansênica corrobora os resultados encontrados por diversos estudos, os quais afirmaram serem os pacientes multibacilares - por constituírem um grupo sob um estado mais grave da doença - os mais propícios a apresentar esse tipo de reação.23-27

A maioria dos pacientes que apresentou episódios reacionais procurou o serviço odontológico durante o tratamento da hanseníase, enquanto grande parte dos que não apresentaram reações, estiveram pela última vez no consultório odontológico antes do diagnóstico da doença. Esta constatação pode ser explicada pelo fato de a procura pelo cirurgião-dentista ocorrer, geralmente, quando da presença de algum problema bucal. Segundo dados do SB Brasil 2010, em todas as faixas etárias, o motivo mais citado da última consulta odontológica foi a busca por tratamento.19 Provavelmente, pacientes com hanseníase que procuram o serviço odontológico possuem algum processo infeccioso que os torna mais vulneráveis ao aparecimento de algum tipo de reação hansênica. Certamente, aqueles que procuram o cirurgião-dentista antes do início do tratamento da doença podem reduzir ou eliminar eventuais focos de infecções que apresentem na cavidade oral, diminuindo a probabilidade de apresentarem reações hansênicas associadas a problemas bucais.

Estudo sobre 63 pacientes com hanseníase, desenvolvido durante 14 meses, verificou que a maioria desses pacientes com reação hansênica buscou o dentista durante o tratamento; porém, seus autores não encontraram associação estatisticamente significativa entre uso de serviço odontológico e presença de reação hansênica.28

A prevalência de lesões orais nos participantes do presente estudo aproxima-se da encontrada por Scheepers e colaboradores, que foi de 19,8%.24 Estudos diversos identificaram prevalências bastante variadas, entre 6,6 e 58,0%.22,23,25,26 Um deles registrou alguns tipos de alterações que não foram consideradas na presente pesquisa, como língua fissurada e pigmentações raciais, o que pode ter contribuído para o aumento da prevalência de lesões orais.26

De acordo com a OMS, as regiões mais afetadas em cavidade oral de pacientes com hanseníase são: palato duro, palato mole, rebordo alveolar da maxila e mucosa jugal.29 Tais dados corroboram os levantados por este estudo. Não obstante, um terceiro estudo obteve resultados diferentes para regiões orais mais acometidas por lesões: palato mole, língua, lábios, úvula, tonsilas e palato duro.3

A faixa de temperatura ideal para a atividade metabólica do bacilo de Hansen encontra-se entre os 26 e os 33oC. Como a temperatura do palato duro e mole varia de 32,1 a 33,5oC e a papila incisiva refere uma temperatura média aproximada de 27,4oC, esses são locais cuja temperatura favorece a infecção. Tendo em vista que o M. leprae também tem afinidade por nervos, outro fator a favorecer o acometimento do palato duro é a possibilidade de o bacilo migrar da cavidade nasal para a porção anterior do palato, através do nervo nasopalatino.6

Algumas das lesões, encontradas nesse estudo, tinham sugestões de diagnóstico clínico, como estomatite protética e hiperplasia fibrosa. Outras não dispunham de diagnóstico claro, sendo possível que, a partir de exame histopatológico, viessem a apresentar alguma relação com a hanseníase.

Este estudo apresentou algumas limitações. Uma delas foi a presença de reação hansênica autorreferida pelo paciente embora não verificada no prontuário, configurando um possível viés de informação: o paciente poderia não saber ou não se lembrar de ter apresentado alguma reação. Ademais, nem todos os fatores capazes de desencadear as reações hansênicas foram analisados, a exemplo de outros focos de infecção, distúrbios emocionais e problemas comportamentais. O grande número de pacientes desdentados também pode ter mascarado a ausência de algumas associações.

A elevada proporção de perdas deve ser destacada como mais uma limitação. É possível que os pacientes não encontrados sejam justamente aqueles com piores condições de saúde bucal e em estágios mais avançados da doença. Partindo-se dessa suposição, é possível que as prevalências de condições de saúde bucal ruins tenham sido subestimadas.

A condição socioeconômica dos pacientes também pode ter interferido no entendimento equivocado - da maior parte dos participantes - sobre a inexistência de associação entre hanseníase e saúde bucal.

Ficou evidenciado que as pessoas acometidas com hanseníase apresentaram precárias condições de saúde bucal, o que aponta a necessidade de cuidado integral a esses pacientes. Nesse sentido, é fundamental fortalecer a atuação interdisciplinar na Atenção Básica, incluindo equipes de Saúde Bucal capacitadas a identificar meios alternativos para realização da higiene bucal, reduzindo focos de infecções predisponentes para reações hansênicas, além de contribuir com o diagnóstico da doença.8 Deve-se buscar uma maior resolutividade das ações da Saúde Bucal, maior redução de danos, além de um cuidado integral e a garantia de acesso aos serviços odontológicos para pacientes com hanseníase, melhorando sua qualidade de vida.

Conclui-se que as pessoas acometidas pela hanseníase no município de Sobral, Ceará, no período estudado, apresentaram precárias condições de saúde bucal e não têm recebido cuidados odontológicos durante o tratamento. Entre os problemas bucais pesquisados, apenas o sangramento gengival esteve associado ao aparecimento de episódios reacionais da hanseníase.

Portanto, é fundamental que os profissionais envolvidos no atendimento e tratamento de casos de hanseníase, encaminhem esses pacientes para o atendimento odontológico quando necessário, com o objetivo de melhorar suas condições de saúde bucal, reduzir os focos de infecção e garantir-lhes um cuidado integral.

 

Contribuições dos autores

Todos os autores participaram do delineamento metodológico do estudo.

Filgueira AA, Carneiro SMF e Teixeira AKM contribuíram na coleta dos dados.

Filgueira AA, Paresque MAC e Teixeira AKM participaram da análise dos dados, redação e revisão do manuscrito.

Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os aspectos do trabalho, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

 

Referências

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. 8. ed. rev. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. (Série B. Textos Básicos de Saúde).

2. Nations MK, Lira GV, Catrib AMF. Stigma, deforming metaphors and patients' moral experience of multibacillary leprosy in Sobral, Ceará State, Brazil. Cad Saude Publica. 2009 Jun;25(6):1215-24.

3. Taheri JB, Mortazavi H, Moshfeghi M, Bakhshi M, Bakhtiari S, Azari-Marhabi S, et al. Oral-facial manifestations of 100 leprosy patients. Med Oral Patol Oral Cir Bucal. 2011 Sep;1(17):728-32.

4. World Health Organization. Wkly Epidemiol Rec. 2011 Sep;36(86):389-400.

5. Costa MRSN. Considerações sobre o envolvimento da cavidade bucal na hanseníase. Hansen Int. 2008;33(1):41-4.

6. Belo Horizonte (MG). Secretaria do Estado de Belo Horizonte. Como reconhecer e tratar reações hansênicas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais; 2007.

7. The International Federation of Anti-Leprosy Associations. Como reconhecer e tratar reações hansênicas. Londres; 2002.

8. Belmonte PCR, Virmond MCL, Tonello AS, Belmonte GC, Monti JFC. Características da doença periodontal em hanseníase. Bol Epidemiol Paulista. São Paulo. 2007 ago;4(44):1-28.

9. Cortela DCB, Ignotti E. Lesões visíveis na hanseníase: o papel do cirurgião-dentista na suspeita de casos novos. Rev Bras Epidemiol. 2008 dez;11(4):619-32.

10. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 3.125 de 7 de outubro de 2010. Aprova as diretrizes para vigilância, atenção e controle da hanseníase. Diário Oficial da União, Brasília, p. 56, 15 de out. 2010. Seção 1.

11. Sobral (CE). Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde do Município de Sobral; 2012.

12. Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia. Estimativas da população residente nos municípios brasileiros com data de referência em 1o de julho de 2011 [Internet]. [citado 2012 nov 21]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2011/tab_Municipios_TCU.pdf

13. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Área Técnica de Saúde Bucal. Projeto SB2000: condições de saúde bucal da população brasileira no ano 2000: manual do examinador. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.

14. Almeida JRS, Alencar CH, Barbosa JC, Dias AA, Almeida MEL. Autopercepção de pessoas acometidas pela hanseníase sobre sua saúde bucal e necessidade de tratamento. Cienc Saude Coletiva. 2013 mar;18(3):817-26.

15. Amaral EP, Lana FCF. Análise espacial da hanseníase na microrregião de Almenara, MG, Brasil. Rev Bras Enferm. 2008;61(n esp):801-7.

16. Helft MW, Gilbert GH, Shelton BJ, Ducan RP. Relationship of dental status, sociodemographic status, and oral symptoms to perceived need for dental care. Community Dent Oral Epidemiol. 2003 Oct;1(5):351-60.

17. Costa APF, Nery JAC, Oliveira MLW, Cuzzi T, Silva MR. Oral lesions in leprosy. Indian J Dermatol Venereol Leprol. 2003 Nov-Dec;69(6):381-5.

18. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. 2008. 92 p. (Cadernos de Atenção Básica; 17. Série A. Normas e Manuais Técnicos).

19. Ministério da Saúde (BR). Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Projeto SB Brasil 2010: condições de saúde bucal da população brasileira; 2010.

20. Nunez-Merti JM, Bagan JV, Scully C, Penarrocha M. Leprosy: dental and periodontal status of the anterior maxilla in 76 patients. Oral Dis. 2003;10(1):19-21

21. Rawlani SM, Rawlani S, Degwekar S, Bhowte RR, Motwani M. Oral health status and alveolar bone loss in treated leprosy patients of central India. Indian J Lepr. 2011 Oct-Dec;83(4):215-24.

22. Souza VA, Emmerich A, Coutinho EM, Freitas MG, Silva EH, Merçon FG, et al. Dental and oral condition in leprosy patients from Serra, Brazil. Lepr Rev. 2009 Jun;80(2):156-63.

23. Brasil J, Opromolla DVA, Souza-Freitas JA, Rossi JES. Estudo histopatológico e baciloscópico de lesões lepróticas da mucosa bucal. Estomat Cult. 1973 jul-dez;7(2):113-9.

24. Sheepers A, Lemmer J, Lownie JF. Oral manifestations of leprosy. Lepr Rev. 1993 Mar;64(1):37-43.

25. Santos GG, Marcucci G, Marchese LM, Guimarães Júnior J. Aspectos estomatológicos das lesões específicas e não específicas em pacientes portadores da moléstia de Hansen. Pesqui Odontol Bras. 2000 jul-set;14(3):268-72.

26. Laskaris G. Oral manifestations of infectious diseases. Dent Clin North Am. 1996 Apr;40(2):395-423.

27. Russo MP, Corrêa CT, Martins-Trevisani MA, Martins MD. Aspectos da doença de hansen relevantes para o cirurgião-dentista: revisão de literatura. Rev Odonto Cienc. 2005;20(48):126-31.

28. Souza VA, Deps P, Oliveira AE, Zandonade E. Doença bucal e hanseníase: uma busca de correlações. In: Anais do 3o Simpósio Brasileiro de Hansenologia; 2007 out 1-10; São Paulo.

29. WHO Expert Committee on Leprosy. World Health Organ Tech Rep Ser. 1998;874:1-43.

 

 

Endereço para correspondência:
Adriano de Aguiar Filgueira
- Rua Coronel Stanislau Frota, s/n,
Centro, Sobral-CE, Brasil.
CEP: 62010-560
E-mail: adriano.odonto@yahoo.com.br

Recebido em 25/07/2013
Aprovado em 06/01/2014

 

 

*Este estudo faz parte do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação do primeiro autor, Adriano de Aguiar Filgueira, pelo Curso de Odontologia da Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral.