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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.24 n.4 Brasília dez. 2015
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000400016
ARTIGO ORIGINAL
Prevalência de insegurança alimentar domiciliar e fatores associados em famílias com pré-escolares, beneficiárias do Programa Bolsa Família em Viçosa, Minas Gerais, Brasil*
Prevalence of household food insecurity and associated factors among Bolsa Familia Program families with preschool children in Viçosa, Minas Gerais State, Brazil
Prevalencia deinseguridad alimentaria y factores asociados en familias conniños en edad preescolar, beneficiarias del Programa Bolsa Familia deViçosa-Minas Gerais, Brasil
Naiara Sperandio1; Silvia Eloiza Priore1
1Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Nutrição e Saúde, Viçosa-MG, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: investigar a prevalência de insegurança alimentar (IA) e fatores associados em famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família em Viçosa-MG, Brasil.
MÉTODOS: estudo transversal realizado em 2011, com questionário estruturado, baseado na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar; calcularam-se, por meio da regressão de Poisson, razões de prevalência (RP) e intervalos de confiança de 95% (IC95%).
RESULTADOS: avaliaram-se 243 famílias; a prevalência de IA foi de 72,8% (47,3% com IA leve; 10,7% moderada; 14,8% grave); maiores prevalências de IA foram encontradas nos domicílios cujas mães apresentavam menor escolaridade (RP 1,56; IC95% 1,21;2,68) e de nível econômico E (RP 1,82; IC95% 1,16;3,48); após análise de regressão múltipla, a IA manteve-se associada à baixa escolaridade materna (RP 1,86; IC95% 1,52;2,83).
CONCLUSÃO: a elevada prevalência de insegurança alimentar, associada à baixa escolaridade materna, justifica a necessidade de intervenções estatais focalizadas, como o PBF, associadas a ações estruturantes, principalmente na área da Educação.
Palavras-chave: Segurança Alimentar e Nutricional; Indicadores Demográficos; Estudos Transversais; Políticas Públicas; Pré-Escolar.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to investigate food insecurity prevalence and associated factors among Bolsa Família Program (BFP) beneficiary families in the municipality of Viçosa-MG, Brazil.
METHODS: this was a cross-sectional study using a structured questionnaire and the Brazilian Food Insecurity Scale; prevalence ratio (PR) and 95% confidence intervals (95%CI) were calculated using Poisson regression.
RESULTS: 243 families were evaluated; food insecurity prevalence was 72.8% (being 47.3% mild; 10.7% moderate, 14.8% severe); higher prevalence of food insecurity was observed in households with mothers having lower schooling (PR 1.56; 95%CI: 1.21; 2.68) and belonging to social-economic stratum E (PR 1.82; 95%CI: 1.16; 3.48); following multiple regression analysis, food insecurity remained associated with low maternal education (PR 1.86; 95%CI: 1.52; 2.83).
CONCLUSION: the high prevalence of food insecurity, associated with low maternal education, justifies the need for targeted government intervention, such as the Bolsa Família Program, associated with structuring actions, particularly in education.
Key words: Food and Nutrition Security; Demographic Indicators; Cross-Sectional Studies; Public Policies; Child, Preschool.
RESUMEN
OBJETIVO: investigar la prevalencia de inseguridad alimentaria (IA) y factores asociados en familias beneficiarias del Programa Bolsa Familia (PBF) en la ciudad de Viçosa-MG, Brasil.
MÉTODOS: estudio transversal realizado en 2011, mediante cuestionario estructurado, basado en la escala brasilera de inseguridad alimentaria; calculamos, usando regresión de Poisson, razones de prevalencia (RP) e intervalos de confianza al 95% (IC95%).
RESULTADOS: se evaluaron 243 familias, la prevalencia de IA fue 72,8% (47,3% con IA leve; 10,7% moderada, 14,8% graves); mayores prevalencias de IA fueron encontradas en hogares con madres de educación baja (RP:1,56, IC95% 1,21;2,68) y de nivel econômico E (RP 1,82, IC95% 1,16;3,48), tras el análisis de regresión múltiple, IA se mantuvo asociada con bajo nivel de educación materna (RP 1,86; IC95% 1,52;2,83).
CONCLUSIÓN: La alta prevalencia de inseguridad alimentaria, asociada con baja educación materna, justifica la necesidad de intervenciones focalizadas del Estado focalizado, como el BFP, asociado con acciones estructurales, en particular en educación.
Palabras clave: Seguridad Alimentaria y Nutricional; IndicadoresDemográficos; Estudios Transversales; Políticas Públicas; Preescolar.
Introdução
A segurança alimentar e nutricional (SAN) vem ocupando lugar importante na agenda política do Brasil.1,2 Trata-se de um conceito complexo, em construção. A expressão foi consagrada e formalizada na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan):
[...] A SAN é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis.1
A insegurança alimentar (IA) possui como principais determinantes a pobreza e as desigualdades sociais. Avaliar os fatores associados a ela é importante para o planejamento de políticas públicas e promoção da saúde. Logo, conhecer indicadores que possam avaliar e monitorar a insegurança alimentar é uma tareia necessária, porém complexa, uma vez que nenhum indicador, utilizado de maneira isolada, consegue mensurar a situação de SAN, haja vista as múltiplas dimensões que integram esse conceito e sua abrangência.3-5
A escala proposta por Radimer e colaboradores6 vem sendo utilizada em diversos países, com o objetivo de avaliar a IA. Pesquisadores brasileiros iniciaram o processo de validação desse instrumento no ano de 2004.7 O estudo foi coordenado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).8 Essa escala, denominada de Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), possibilita avaliar a IA como também monitorar a implementação e avaliação de políticas públicas na área.9
No Brasil, as desigualdades sociais são expressivas. Consequentemente, parcela significativa da população não consegue manter um padrão de vida mínimo, socialmente aceitável.10 O Estado procura intervir nesse cenário com programas de ação que busquem atender os direitos sociais garantidos constitucionalmente. Entre esses programas, destaca-se o Programa Bolsa Família (PBF).11,12 O PBF é uma das estratégias governamentais que, mediante transferência condicionada de renda, busca combater a fome e a pobreza no país. O Bolsa Família tem como um de seus principais objetivos promover a inclusão social de famílias em situação de vulnerabilidade, além de melhorar as condições nutricionais das crianças nelas inseridas.12
Crianças constituem o público mais vulnerável à insegurança alimentar. Aquelas que convivem com essa situação podem apresentar crescimento e desenvolvimento insatisfatórios. Sendo assim, avaliar a prevalência da insegurança alimentar, assim como os fatores a ela associados, é de grande importância para a elaboração, implementação e monitoramento de políticas públicas mais focalizadas e eficientes.12,13
O objetivo do presente estudo foi investigar a prevalência de insegurança alimentar e fatores associados entre as famílias com pré-escolares beneficiárias do Programa Bolsa Família no município de Viçosa, estado de Minas Gerais, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal que avaliou famílias beneficiarias do PBF, com crianças na idade de 2 a 6 anos, residentes no perímetro urbano do município de Viçosa-MG. A escolha por famílias com a presença de crianças nessa faixa etária decorre do fato de esse grupo ser biologicamente vulnerável, e portanto, o mais susceptível às consequências que uma situação de insegurança alimentar pode gerar. Os dados foram coletados no período de janeiro a junho de 2011.
Viçosa-MG está localizada na região da Zona da Mata Mineira, entre as serras da Mantiqueira, do Caparaó e da Piedade. A população estimada do município, segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, era de 72.220 habitantes, dos quais 67.305 (93,2%), residiam na zona urbana. No mesmo ano de realização do censo, o índice de desenvolvimento humano (IDH) do município era de 0,775.14
Para o cálculo da amostra, foi considerada uma prevalência de 80,3% de IA para a região Sudeste, com base nos resultados da pesquisa 'Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas', financiada pela empresa pública federal Financiadora de Estudos e Pesquisas (Finep).15 Trata-se do primeiro estudo de base populacional a avaliar a percepção das famílias beneficiárias do PBF quanto à situação de segurança alimentar. Estimou-se um erro máximo de cinco pontos percentuais, para um nível de significância de 95% que, acrescido de 20% para controle de fatores de confusão, resultou em uma amostra mínima de 243 famílias. Para o cálculo, utilizou-se o programa StatCalc do Epi Info versão 6.04.
Inicialmente, realizou-se contato com a Secretaria de Assistência Social do município para conhecimento do número total de famílias beneficiárias do PBF na faixa etária de interesse. A Secretaria forneceu um banco de dados com informações sobre nome, sexo e raça/cor do titular, endereço e número de filhos dependentes.
Das 1.160 famílias que possuíam crianças na faixa etária de 2 a 6 anos e residiam na zona urbana de Viçosa-MG, foram sorteadas 243. A seleção deu-se por amostragem aleatória simples. Toda coleta dos dados foi realizada no domicílio. Participaram da pesquisa três nutricionistas e duas estudantes de graduação do Curso de Nutrição da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Realizou-se treinamento prévio da equipe para padronização de linguagem e calibração dos equipamentos.
Os critérios de inclusão da família na amostra foram (i) ser beneficiária do PBF e (ii) possuir entre seus membros uma criança na faixa etária do estudo. Para participar do estudo, o responsável pelo domicílio deveria assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O critério de exclusão foi a não autorização por parte do responsável. Além disso, foram consideradas como perdas as famílias que não foram encontradas nas respectivas residências após três tentativas de visitas domiciliares, as que não mais recebiam o benefício e aquelas que mudaram de cidade.
Para obtenção das variáveis socioeconômicas e demográficas, aplicou-se questionário estruturado junto ao responsável pelo domicílio, abordando as seguintes variáveis:
- abastecimento de água por rede pública (sim; não);
- lixo coletado (sim; não);
- rede pública para destino do esgoto (sim; não);
- presença de filtro em casa (sim; não);
- número de moradores (até 3; 4 a 5; 6 ou mais);
- escolaridade materna e paterna (nenhuma; 4 a 7; 8 ou mais anos de estudo);
- cor da pele do titular do benefício (padronizada e avaliada pelos entrevistadores em três categorias: branca, parda e preta); e
- classificação econômica (A; B; C; D; E), segundo a Associação Brasileira de Empresas e Pesquisa (ABEP).16
Para o diagnóstico da insegurança alimentar, foi utilizada a EBIA, composta por 15 perguntas, às quais responder-se-ia 'sim' ou 'não'. A classificação das famílias, segundo a segurança alimentar e os graus de insegurança (insegurança leve, moderada ou grave), foi realizada conforme os critérios de classificação da EBIA.17 Segundo essa escala, o domicílio é classificado de acordo com o somatório do número de respostas afirmativas às questões previstas, sendo que a categorização se dá em quatro níveis:
- segurança alimentar, quando não há restrição alimentar de qualquer natureza, nem mesmo medo ou preocupação com a falta de alimentos futuros;
- insegurança alimentar leve, quando existe a preocupação quanto ao acesso aos alimentos e comprometimento da qualidade da dieta como forma de evitar a falta de alimentos;
- insegurança alimentar moderada, quando além da qualidade, há modificação da quantidade da alimentação, sendo que esta atinge os adultos do domicílio; e
- insegurança alimentar grave, onde há restrição da quantidade de alimentos tanto para os adultos como para as crianças; nesta situação, há perda dos padrões alimentares habituais da família, com grande possibilidade de ocorrência da fome.18
No estudo, em atendimento aos critérios da EBIA, as famílias com presença de moradores menores de 18 anos de idade foram classificadas com segurança alimentar quando todas as respostas ao questionário foram negativas. Aquelas com uma até 5 respostas positivas foram classificadas sob situação de insegurança alimentar leve; de 6 a 10 respostas positivas, sob insegurança alimentar moderada; e de 11 a 15 respostas positivas, sob insegurança alimentar grave.17
O banco de dados foi organizado com dupla digitação em planilha eletrônica. Para verificar a consistência dos dados, utilizou-se a função Validate do software Epi Info versão 6.04. Todas as estimativas foram calculadas levando-se em consideração o efeito do desenho da amostra, sendo utilizado o pacote estatístico Stata versão 9.019 em todas as etapas de análise dos dados.
Na análise descritiva, apresentaram-se valores absolutos, proporções e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Na análise bivariada, empregou-se o teste do qui-quadrado de Pearson e o teste do qui-quadrado de tendência linear, para verificar a associação entre os indicadores, socioeconômicos e demográficos, e a IA - esta variável foi dicotomizada em presença de insegurança alimentar [em qualquer grau] e ausência de insegurança alimentar. Para a análise bivariada, a variável escolaridade (materna e paterna) foi dicotomizada em até 7 anos de estudo e 8 ou mais anos estudo.
As variáveis que apresentaram associação com a IA em um nível de significância menor ou igual a 20% foram selecionadas para compor o modelo múltiplo. Para o modelo múltiplo, calculou-se as razões de prevalência (RP) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) por meio da regressão de Poisson.20 No caso do presente estudo, a opção da razão de prevalência como medida de associação justifica-se pelo delineamento transversal e pela prevalência de insegurança alimentar encontrada. Para construção do modelo de regressão múltipla, optou-se pelo método backward, em que as variáveis selecionadas na análise bivariada foram inseridas ao mesmo tempo no modelo e retirou-se, uma a uma, a menos significativa de acordo com o teste de Wald.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa: Processo n° 0146/2010.
Resultados
A amostra estudada foi constituída por 243 famílias. Do total de domicílios sorteados, 52 não atenderam aos critérios de inclusão/exclusão: domicílios que não estavam mais recebendo o benefício (n=17); moradores não encontrados após três tentativas de contato (n=10); e moradores mudaram de endereço (n=25). A aplicação da EBIA revelou prevalência de 72,8% de insegurança - e desta: 47,3% de insegurança leve, 10,7% moderada e 14,8% grave (Tabela 1).
Quanto às condições de saneamento básico, 98,3% das famílias estavam ligadas à rede pública de abastecimento de água e contavam com acesso a tratamento público de esgoto, e 91,0% possuíam filtro para tratamento da água para consumo individual. A maioria das mães (86,5%; IC95% 80,2;91,6) e dos pais (88,6%; IC95% 79,2;89,4) cursaram de 4 a 7 anos de estudo; 94,3% das famílias se enquadraram nas classes econômicas C e D; 80,2% dos domicílios tinham até cinco moradores; e a cor da pele do titular predominante foi preta (42,3%; IC95% 36,1;48,5) (Tabela 1).
Observou-se associação entre escolaridade materna e insegurança alimentar. Entre as mães que possuíam menos de 7 anos de estudo, a insegurança alimentar foi quase 1,4 vezes maior em relação às com mais de 7 anos (Tabela 2).
As maiores prevalências de insegurança alimentar foram encontradas nas famílias classificadas nas categorias econômicas D e E, e nos domicílios com mais de cinco moradores. A prevalência de insegurança alimentar nas famílias da categoria E foi 3 vezes maior em relação às da categoria B (Tabela 2).
As condições de saneamento básico não apresentaram associação com a presença da insegurança alimentar. Possivelmente porque os resultados para os indicadores de saneamento foram homogêneos, eles não serviram à distinção da IA entre as famílias; tampouco encontrou-se associação de cor da pele e escolaridade paterna com a insegurança alimentar. Entretanto, a presença no domicílio de filtro para tratamento da água, sim, associou-se com a insegurança alimentar (Tabela 2).
Após os ajustes pelas variáveis consideradas de referência ou de contraste (escolaridade materna superior a 7 anos de estudo; pertencer à classe socioeconômica B; ter no máximo cinco moradores no domicílio) com as demais categorias na análise multivariada, apenas a escolaridade materna (RP 1,86; IC95% 1,52;2,83; p=0,02) permaneceu associada com a insegurança alimentar (Tabela 3).
Discussão
O presente estudo identificou elevada prevalência de insegurança alimentar (72,8%) entre as famílias com pré-escolares beneficiárias do Programa Bolsa Família. Esse resultado ratifica a situação de vulnerabilidade social dessas famílias e o risco de possíveis prejuízos para o crescimento e desenvolvimento de suas crianças, em função do não acesso a uma alimentação adequada.
A insegurança alimentar associou-se com a baixa escolaridade materna. A baixa escolaridade dificulta a inserção no mercado de trabalho formal, o que implica o acesso a empregos de baixa remuneração. Essa situação contribui para a ocorrência da insegurança alimentar. Uma das condicionalidades impostas pelo PBF é a permanência dos jovens na escola. O objetivo dessa condicionalidade é aumentar o grau de escolaridade de crianças e adolescentes, podendo vir a contribuir com o rompimento do ciclo intergeracional da pobreza, que tem a baixa escolaridade como um de seus principais determinantes.
A EBIA foi considerada pelo IBGE uma ferramenta importante para o diagnóstico da segurança alimentar, assim como diferentes níveis de insegurança.21 Além disso, a escala atende à determinação do Artigo 21, do parágrafo 6o do Decreto no 7.272, de 25 de agosto de 2010, enquanto instrumento capaz de (i) identificar grupos populacionais mais vulneráveis à violação do direito humano à alimentação adequada e (ii) abalizar as desigualdades sociais.21,22
As versões da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizadas pelo IBGE nos anos de 2004, 2009 e 2013 utilizaram a EBIA como instrumento de avaliação da insegurança alimentar nos domicílios brasileiros. Os resultados dessas pesquisas confirmam: a insegurança alimentar está diretamente associada a fatores socioeconômicos, como por exemplo, número de moradores, sexo, escolaridade ou cor da pele do chefe da família, renda domiciliar, entre outros.23-25
A prevalência de IA no Brasil reduziu-se de 34,9%, em 2004, para 22,6%, em 2013.23,25 Apesar dessa redução, em 2013, aproximadamente 52 milhões de brasileiros ainda sofriam com a insegurança alimentar.25
A escolaridade é considerada determinante importante da situação de IA. Segundo a PNAD, nos domicílios onde a pessoa de referência não possuía estudo ou contava menos de um ano de estudo, a prevalência de IA moderada ou grave foi de 29,2%. Já naqueles domicílios onde a pessoa de referência possuía de 11 a 14 anos de estudo, esse percentual era 4,1 vezes menor (7,1%).23 Em 2009, houve redução da IA em todos os níveis de escolaridade e, embora a associação tenha se mantido, a razão para as proporções segundo os níveis de escolaridade supracitados reduziu-se para 3,4.24
A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança (PNDS/2006), que também utilizou a EBIA para diagnóstico de insegurança alimentar, concluiu: entre as características sociodemográficos da pessoa de referência associadas à IA (ser do sexo feminino, possuir menor escolaridade e idade inferior a 60 anos), a escolaridade foi à responsável pelas maiores diferenças nessa prevalência, sendo que entre aqueles referidos como 'sem escolaridade', observou-se prevalência de 10,7% de IA grave. Este percentual viu-se reduzido para 1,6% nos domicílios onde a pessoa de referência possuía nove ou mais anos de estudo.26
Vale ressaltar que tanto a PNAD como a PNDS não avaliaram exclusivamente beneficiários do PBF. Um estudo avaliativo da situação de segurança alimentar – por meio da EBIA – entre os beneficiários do Bolsa Família foi desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em 2007-2008. A prevalência de insegurança alimentar encontrada pelo presente artigo, de 72,8%, encontra-se acima dos dados revelados pelas pesquisas citadas em epígrafe – PNAD, 22,6%; PNDS, 37,5% –, embora, conforme esperado, se aproxime da prevalência encontrada pela pesquisa do Ibase (83%). Isto é justificado pelo fato de o público do PBF se encontrar em uma situação de vulnerabilidade, que predispõe essa população a uma situação de insegurança.17,25,26
Segundo os resultados do estudo realizado pelo Ibase, a prevalência de insegurança alimentar foi maior na região Nordeste do país; como foi referido por ambas pesquisas, PNAD e PNDS. Na região Sudeste, essa prevalência foi de 80%. Logo, a prevalência de insegurança alimentar encontrada entre os beneficiários do PBF do município de Viçosa-MG foi inferior à encontrada para a região Sudeste e para o Brasil.17
Em relação às características socioeconômicas, os resultados são semelhantes aos já apresentados. A IA foi mais prevalente nas famílias que recebiam menos de R$60,00 per capita (menos de ¼ do salário mínimo da época), cuja titular tinha cor da pele preta ou parda e sem escolaridade. A relação da escolaridade da titular com a segurança alimentar foi mais expressiva na região Sul. Nesta região, a prevalência de IA grave foi menor, mesmo entre aqueles que sabiam apenas escrever um bilhete simples (10,7%), enquanto nas regiões Norte e Nordeste, as prevalências de IA para esse grupo foram, respectivamente, de 21,52% e 22,19%.17
Os estudos nacionais23-26 que buscaram avaliar os possíveis fatores associados com a insegurança alimentar, mesmo não sendo específicos para os beneficiários do PBF, encontraram resultados semelhantes quanto aos indicadores socioeconômicos. Essa semelhança também é observada nos estudos regionais.
Por exemplo, Salles-Costa e colaboradores,27 ao avaliarem a associação entre fatores socioeconômicos e a insegurança alimentar em famílias do município de Duque de Caxias-RJ, encontraram prevalência de insegurança alimentar de 53,8%. As variáveis associadas à insegurança foram: renda familiar mensal per capita, escolaridade do chefe da família, nível econômico, número de pessoas e presença de filtro no domicílio. Pimentel e cols.,28 em estudo realizado junto a 402 famílias com crianças menores de 30 meses, encontraram prevalência de insegurança alimentar de 72%; as variáveis 'renda familiar mensal per capita' e 'escolaridade da pessoa de referência da família' associaram-se inversamente com todos os níveis de insegurança alimentar.
Gubert e Santos29 encontraram prevalência de insegurança alimentar em 24,8% dos domicílios do Distrito Federal, associada aos seguintes fatores: pessoa de referência ser do sexo feminino, da cor da pele preta ou parda, de domicílio com mais de três crianças e renda inferior a ¼ do salário mínimo.
Segundo Panigassi e cols.,30 em estudo realizado na cidade de Campinas-SP, entre as características do chefe da família associadas com a insegurança alimentar, a mais importante foi a escolaridade. Chefes de domicílio com escolaridade abaixo do nível fundamental apresentaram 4,6 vezes chance de ter IA leve e 8,4 vezes chance de ter IA moderada e grave. Estes resultados mostram a relevância do grau de instrução e seu impacto sobre a situação de IA.
Entre as condicionalidades do PBF, está a obrigatoriedade da permanência da criança na escola. Trata-se de fator essencial para o adequado desenvolvimento cognitivo e investimento no capital humano. Conforme já foi discutido aqui, a escolaridade é um determinante importante de insegurança alimentar, e por conseguinte, o aumento dos anos de estudo pode contribuir para a interrupção do ciclo intergeracional da pobreza e a promoção da segurança alimentar e nutricional – SAN.
Os resultados aqui encontrados evidenciam a magnitude da insegurança alimentar segundo os fatores socioeconômicos e demográficos da população estudada. A partir do conhecimento de que fatores se associam à insegurança alimentar, é possível a definição de prioridades de ação no sentido de dirimir e controlar o problema. A EBIA pode auxiliar os gestores públicos no monitoramento da insegurança alimentar e na identificação de grupos potenciais para o direcionamento de recursos, além de constituir uma importante ferramenta para a avaliação e monitoramento de medidas de intervenção.
O Estado tem responsabilidade social com a garantia da segurança alimentar e nutricional. Programas sociais, como o Bolsa Família, são importantes para a melhoria da qualidade de vida das famílias beneficiadas. Porém, medidas de caráter mais estrutural, como investimento na Educação, Saneamento Básico e Saúde, entre outras áreas de atuação do Estado, devem ser enfatizadas a fim de que as políticas públicas deixem de ser compensatórias, focais e isoladas.
Como limitações do estudo, coloca-se a dificuldade de realização das visitas domiciliares e a ausência de atualização do cadastro das famílias beneficiárias do PBF. Muitas famílias não foram encontradas nos domicílios porque mudaram de endereço, ou porque não estavam mais a receber o benefício. Essas atualizações não constavam do cadastro da Secretaria de Assistência Social do município. A utilização da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA – exigiu treinamento prévio e muita atenção dos pesquisadores durante sua aplicação, para evitar vieses de resposta. O delineamento do estudo não possibilitou estabelecer relação causa-efeito entre as variáveis investigadas e a insegurança alimentar. Porém, a partir desses achados, percebe-se a importância da intervenção estatal para a garantia do acesso a direitos sociais constitucionais, como educação e saúde. Nesse sentido, o cumprimento das condicionalidades constitui uma forma de emancipação e empoderamento das beneficiárias do Programa Bolsa Família.
Contribuição das autoras
Sperandio N participou da concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos resultados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual, e aprovação da versão final do manuscrito.
Priore SE participou da redação e revisão crítica do conteúdo intelectual, e aprovação da versão final do manuscrito.
Ambas as autoras declaram serem responsáveis por todos os aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade.
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Endereço para correspondência:
Naiara Sperandio -
Rua Virgílio Val, no 8 apto. 604,
Centro, Viçosa-MG, Brasil.
CEP: 36570-000.
E-mail: naiarasperandio@yahoo.com.br
Recebido em 06/01/2015
Aprovado em 22/06/2015
*Este artigo foi fruto da dissertação de Mestrado intitulada '(In)segurança alimentar e estado nutricional entre beneficiários do Programa Bolsa Família no município de Viçosa, MG', apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Nutrição da Universidade Federal de Viçosa em 2011. O estudo foi financiado com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CNPq/MCTI) e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS): Processo no 036/2010.