Introdução
A esquistossomose mansônica é uma doença infecto-parasitária, de caráter agudo e crônico, causada pelo trematódeo digenético Schistosoma mansoni. É uma endemia rural urbanizada, cuja manifestação clínica varia de uma dermatite leve à infecção crônica.1-3
Fatores biológicos, demográficos, socioeconômicos, políticos e culturais compõem os fatores de risco para a transmissão da doença e têm contribuído para a formação de quadros endêmicos. A precariedade do saneamento básico, o destino dos resíduos e o contato com coleções hídricas contaminadas são determinantes para o aumento da prevalência da endemia.2,4,5
A esquistossomose mansônica encontra-se distribuída em várias regiões tropicais do mundo, com a prevalência global estimada de 200-209 milhões de indivíduos infectados em 2010. Pelo menos 249 milhões de pessoas necessitaram de tratamento para a esquistossomose em 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Na América e na África, a doença é observada em cerca de 74 países. No Brasil, sua ocorrência é predominantemente rural mas a partir da década de 1990, houve registros de casos em populações do litoral do Nordeste.6 O Ministério da Saúde estima que, em 2011, entre 2,5 a 8 milhões de brasileiros eram portadores da doença,7 a maioria na região Nordeste do país.2
O tratamento para esquistossomose tem como finalidade sua cura, redução da carga parasitária do hospedeiro, impedimento da evolução para as manifestações graves da doença, minimização de produção e eliminação dos ovos do helminto como uma forma de prevenção primária da transmissão. O tratamento pode ser direcionado individualmente ou em nível populacional, conhecido como tratamento coletivo.8
Dos países onde a esquistossomose mansônica é endêmica, 52 realizaram o tratamento coletivo em 2012, contemplando cerca de 250 milhões de pessoas. O tratamento coletivo contribui para a redução da transmissão da doença em localidades com percentual de positividade igual ou superior a 10% entre o número de exames realizados. Esse tratamento é executado mediante a administração de anti-helmínticos isolados ou combinados, tendo o praziquantel como droga de escolha. O tratamento coletivo é indicado por atingir não somente pessoas diagnosticadas, mas também população geral que, em virtude da ampla distribuição do parasito, é vulnerável à infecção.3,9,10
Uma vez feito o tratamento coletivo em uma dada localidade, é necessário avaliar sua efetividade com o objetivo de verificar o impacto da intervenção e monitorar a cura dos pacientes diagnosticados positivos.
O presente estudo objetivou avaliar a efetividade do tratamento coletivo para esquistossomose mansônica em duas localidades endêmicas do município de Jaboatão dos Guararapes, situado no litoral do Nordeste brasileiro.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo da situação epidemiológica da esquistossomose antes e depois do tratamento coletivo, nas localidades de Barra de Jangada e Novo Horizonte, município de Jaboatão dos Guararapes, estado de Pernambuco.
Em 2011, Pernambuco apresentava a terceira maior prevalência da esquistossomose entre os estados da região Nordeste. A endemia está presente principalmente em áreas que circundam a faixa do litoral. Dos 185 municípios do estado, 93 eram endêmicos para esquistossomose, sendo variadas as formas de transmissão por conta da diversidade ecológica e social existente.4,6 Jaboatão dos Guararapes é um desses municípios. Pertencente à Região Metropolitana do Recife, situado a 19,4 km da capital, abrigava uma população de aproximadamente 675.599 habitantes em 2010.11 Barra de Jangada, 4.092 habitantes, e Novo Horizonte, 2.005 habitantes, localidades consideradas de alta endemicidade no município, são áreas litorâneas e possuem vulnerabilidades socioculturais e econômicas que aumentam o risco de adoecimento da população. Saneamento básico precário, más condições de moradia e trabalho e hábitos inadequados acentuam essa condição, segundo dados de 2010, disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).7
Conforme o Guia Operacional para a Redução da Esquistossomose em Pernambuco, as localidades que apresentam prevalência igual ou superior a 10%, concentração de casos novos e crônicos e presença do hospedeiro intermediário (o caramujo) são consideradas de alta endemicidade e, portanto, devem ser contempladas com o tratamento coletivo.12
São considerados não elegíveis para o tratamento: gestantes; menores de 4 anos e maiores de 65 anos de idade; portadores de doenças crônicas graves ou que já sofreram efeitos adversos graves provocados pelo uso do Praziquantel; e pessoas com história de epilepsia e doença mental.13
Em 2011, foi realizado levantamento epidemiológico da esquistossomose pelo Grupo Técnico de Esquistossomose do Jaboatão, em parceria com as unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF), a partir da realização de exames coproscópicos.
A sensibilização e mobilização da população nas localidades de Barra de Jangada e Novo Horizonte foi de suma importância para o bom desempenho e êxito no tratamento coletivo, bem como na avaliação da prevalência da carga parasitária. Essa mobilização contou com o apoio de representantes dos líderes comunitários, associações locais, instituições religiosas e todas as escolas presentes no território das duas localidades, no período que antecedeu o tratamento coletivo; no período posterior ao tratamento coletivo, a sensibilização das comunidades foi fortalecida, juntamente com a atuação das equipes de Saúde da Família, com o propósito de verificar, mediante inquérito coproscópico amostral, se a administração do medicamento em massa fez efeito diante da alta carga parasitária constatada na população.
Para realização desse inquérito, foi levado em consideração o cálculo amostral e a aleatoriedade na distribuição dos potes coletores, no intuito de garantir a confiabilidade dos dados, diminuindo os erros obtidos e assim, validando o inquérito como um instrumento da avaliação do tratamento coletivo das áreas trabalhadas, bem como a investigação da prevalência da carga parasitária após a realização da ação.12
No presente estudo, foram incluídos todos os resultados de exames coproscópicos realizados com indivíduos residentes nas localidades de Barra de Jangada e Novo Horizonte, no período em estudo. A população foi dividida em dois grupos: o grupo pré-tratamento coletivo, sendo o quantitativo de exames realizados no ano de 2011 e no primeiro semestre de 2012; e o grupo pós-tratamento coletivo, correspondente ao quantitativo de exames realizados no segundo semestre de 2012 e no ano de 2013.
O número de exames coproscópicos realizados no período pré-tratamento coletivo foi superior ao quantitativo de coproscopias no período pós-tratamento coletivo. Isto ocorreu pelo fato de, antes do tratamento coletivo, não existir uma amostra estipulada necessária para avaliar o percentual de positividade, e a quantidade de exames realizados acontecer por livre demanda. Após a intervenção com o tratamento coletivo, a equipe técnica calculou uma amostra suficiente para a área endêmica.
As localidades em estudo apresentaram alta endemicidade no período pré-tratamento coletivo, razão porque foram selecionadas para participar da intervenção. Embora a localidade de Barra de Jangada não apresentasse percentual de positividade superior a 10%, foi selecionada para o tratamento por se encontrar junto à localidade de Novo Horizonte, região hiperendêmica, com concentração de casos novos, casos crônicos e presença do hospedeiro.12
Foram utilizadas como fonte de dados as informações contidas no Sistema de Informações da Esquistossomose (SISPCE) e nos relatórios de conclusão dos inquéritos amostrais pós-tratamento coletivo, elaborados pela equipe técnica do município.7,14
A prevalência da esquistossomose mansônica pré e pós-tratamento coletivo foi calculada para cada localidade endêmica estudada, dividindo-se o número de indivíduos com resultado positivo pela quantidade de exames realizados no período, conforme preconizado pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco.13
A carga média parasitária - ou intensidade da infecção - foi determinada utilizando-se o total de ovos de S. mansoni por grama de fezes sobre o total de infectados na população de estudo pré e pós-tratamento coletivo, para cada localidade endêmica. Na classificação da carga parasitária, foi utilizada a seguinte categorização: carga parasitária leve (até 100 ovos/g de fezes); carga parasitária moderada (101 a 400 ovos/g de fezes); e carga parasitária elevada (mais de 400 ovos/g de fezes).15
Foram consideradas as variáveis demográficas sexo (masculino; feminino) e faixa etária (em anos: 0 a 19; 20 a 59). Os exames nos quais eram ignorados os dados sobre sexo e/ou faixa etária foram desconsiderados para o cálculo dos indicadores segundo categorias dessas variáveis.
Os dados foram processados com o auxílio do software SPSS versão 10.0, para cálculo das frequências absolutas e relativas. Para a comparação de proporções do percentual de positividade antes e após o tratamento coletivo e para a verificação das variáveis descritivas sexo e faixa etária, utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson, com nível de significância de 5%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Complexo Hospitalar HUOC-Procape (Processo nº CAAE 33703714.0.0000.5192; Protocolo n° 763.505). A pesquisa obedeceu aos princípios éticos contemplados na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Ministério da Saúde.
Resultados
Durante o período estudado, foram realizados 5.444 exames coproscópicos nas localidades endêmicas para esquistossomose mansônica do município de Jaboatão dos Guararapes. Na localidade de Barra de Jangada, foram realizados 1.220 exames coproscópicos no período pré-tratamento coletivo e 789 no período pós-tratamento coletivo. Em Novo Horizonte, foram feitos 2.373 exames no pré-tratamento coletivo e 1.062 no período pós-tratamento coletivo.
Houve redução na prevalência para esquistossomose em ambas localidades, após o tratamento coletivo: de 8,9 para 2,3% em Barra de Jangada; e de 15,7 para 3,5% em Novo Horizonte (p<0,05) (Tabela 1).
a) Pré-TC: pré-tratamento coletivo
b) Pós-TC: pós-tratamento coletivo
c) Teste do qui-quadrado de Pearson
Na localidade de Barra de Jangada, a prevalência para esquistossomose foi maior nos indivíduos do sexo masculino, tanto antes quanto depois do tratamento coletivo (p<0,05). Para a variável faixa etária, a positividade foi superior em adultos, tanto antes quanto depois do tratamento coletivo, sem diferença significativa (Tabela 2).
Em Novo Horizonte, nos períodos pré-tratamento coletivo e pós-tratamento coletivo, não houve diferenças na prevalência segundo sexo. Quanto à faixa etária, a prevalência foi estatisticamente maior na faixa etária de 20 a 59 anos: 67,4% no período pré-tratamento e 72,7% no período pós-tratamento (Tabela 3).
Observou-se elevação da carga média parasitária na localidade de Barra de Jangada, de 23,8 para 91,7 ovos por grama de fezes. Já na localidade de Novo Horizonte, houve diminuição da carga média parasitária, de 67,0 para 52,7 ovos por grama de fezes nos indivíduos infectados (Tabela 4).
Discussão
A redução do percentual de positividade a níveis considerados aceitáveis e de baixa endemicidade sugere que o tratamento coletivo foi efetivo, já que houve poucas mudanças sócio-sanitárias e ambientais nas localidades sob intervenção. Estudos apontam que características do ambiente e do comportamento humano são fundamentais para a dinâmica da transmissão da esquistossomose, em virtude das características de seu ciclo evolutivo.6, 16, 17
Evidências recentes indicam que o tratamento regular com praziquantel impede as formas graves mas não leva à eliminação da doença. Contatos inevitáveis dos seres humanos com as fontes de infecção levam ao fracasso do controle da transmissão da doença.3,18
Nas Filipinas, foram várias as tentativas de controle da esquistossomose por meio da administração de medicamentos. O praziquantel, droga de escolha da OMS, foi utilizado pela primeira vez para tratamento coletivo em 1979, administrado uma vez ao ano durante três anos consecutivos. Logo, a prevalência da doença reduziu-se significativamente, combinando-se o uso da droga com ações de controle do hospedeiro intermediário, medidas de saneamento ambiental e educação em saúde.19,20
Foi realizado tratamento coletivo para esquistossomose em escolares no Quênia Central, África, onde as crianças foram acompanhadas durante quatro anos, observando-se diminuição da prevalência e das formas graves da doença; porém, estudo sobre o evento destacou a capacidade do parasito permanecer em áreas endêmicas, apesar do tratamento coletivo.10
O predomínio da esquistossomose mansônica nos indivíduos do sexo masculino converge com dados apresentados pelos estudos de Cunha2 e Vidal e cols,21 realizados em municípios do estado de Sergipe, nos anos de 2001 a 2006, e na Bahia, no período 2001-2008, respectivamente. Outro estudo desenvolvido em Sergipe, no período de 2003 a 2008, encontrou uma variação do risco relacionado aos aspectos comportamentais e de exposição ao S. mansoni - e não ao sexo -, não apresentando diferença significativa para essa variável.22
O maior acometimento do sexo masculino pode, também, estar relacionado ao acesso aos serviços de saúde. Homens procuram menos as ações preventivas, por vezes direcionadas apenas para mulheres ou realizadas nos horários quando eles trabalham. Além disso, a participação em uma intervenção de saúde pode ser interpretada por eles como uma demonstração de fraqueza, sensibilizando o mito histórico de que o homem, "mais forte e/ou resistente, não adoece".23 Nesse sentido, outro estudo trouxe à luz a reflexão sobre a necessidade de traçar novas estratégias para os serviços de saúde com o objetivo de alcançar os homens enquanto potenciais usuários do Sistema Único de Saúde, que não podem passar despercebidos pelos profissionais do SUS em suas ações.24
Em Uganda, outro país do continente africano, um estudo contemplando escolares e a população geral constatou, por meio de entrevistas com participantes de um tratamento coletivo para esquistossomose mansônica, dificuldades na mobilização das pessoas pela educação em saúde. Destacam os autores do referido estudo que existem percepções negativas em relação ao tratamento coletivo, a exemplo do medo dos efeitos colaterais.25
A comunidade é um sistema social importante e gerenciável, em que os fatores socioculturais influenciam a relação entre ela e a situação de saúde de sua população. É necessário, portanto, compreender a estrutura de uma comunidade e/ou da sociedade, antes da implementação de um programa de saúde.29
O maior acometimento dos indivíduos com idade de 20 a 59 anos indica que o risco de infecção pode estar relacionado à ocupação, afetando a faixa etária mais produtiva e ativa financeiramente. Populações adultas residentes em outras áreas estudadas utilizavam valas - principal fonte de infecção - para os mais variados fins, como pesca, banho de animais, lavagem de roupas e artigos domésticos, inclusive para o lazer.26,27
Verificou-se diferença no comportamento da carga média parasitária entre as localidades estudadas: à medida que houve redução na localidade de Novo Horizonte, apresentou-se elevação desse indicador em Barra de Jangada. Provavelmente, isso ocorreu porque os indivíduos com resultado positivo para a testagem da infecção realizada no período pós-tratamento coletivo não participaram da administração da droga durante o tratamento coletivo, seja por recusa própria, seja por motivo de ausência no domicílio durante o período de visita dos agentes de saúde, ou mesmo por não serem elegíveis para a intervenção.
Essa divergência pode ser explicada, também, pelo processo de leitura das lâminas - não foi o mesmo laboratorista quem leu todas as lâminas das duas localidades - e pelo número maior de amostras analisadas da localidade de Novo Horizonte.
Outra limitação do presente estudo relaciona-se ao uso de dados secundários, com falta de preenchimento de algumas informações e possíveis inconsistências.
Destaca-se, também, a inexistência de relação direta entre intensidade da infecção e prevalência da doença. Ou seja: pode haver redução significativa no percentual de positividade sem, necessariamente, ocorrer mudanças na carga parasitária. Este achado pode refletir a resistência adquirida após repetidos contatos com a droga.10
A carga média parasitária, em todas as situações descritas na Tabela 3, foi classificada como leve. Nos estudos de Vidal e cols21 e Rollemberg e cols,16 realizados em Jequié, estado da Bahia, e em Sergipe, respectivamente, a maior parte dos exames realizados apresentou baixa carga parasitária, seguindo o mesmo critério de classificação do presente estudo. De acordo com Sleigh e cols,28 indivíduos com mais de 100 ovos/grama de fezes apresentam maiores riscos de desenvolver as formas graves da doença.14,16,22
Jordão27 afirma que, além da importância do diagnóstico da esquistossomose, deve-se considerar a carga parasitária do indivíduo para que o tratamento seja direcionado corretamente. Do ponto de vista epidemiológico, esse aspecto também é essencial: indivíduos com carga parasitária leve, possivelmente assintomáticos, podem ser responsáveis pela manutenção dos focos da doença.
Ademais, os participantes do tratamento coletivo continuam susceptíveis à reinfecção imediata após a intervenção, mostrando-se evidente que o controle da esquistossomose exige abordagem integrada e intersetorial. Assim, é importante que se consiga a eliminação da esquistossomose mansônica, o que depende, além do tratamento coletivo, da promoção de educação em saúde e da disponibilização de condições de vida e trabalho adequadas, entre a população geral.3,19
Os resultados obtidos indicam que o tratamento coletivo, juntamente com as demais ações de cunho individual, influenciou na redução do percentual de positividade para a esquistossomose nas áreas endêmicas do município. Entretanto, a doença perpetua-se, mesmo com baixa endemicidade, nas localidades sob essa intervenção.
Conclui-se que ações intersetoriais e no âmbito da promoção da saúde devem ser desenvolvidas, com o objetivo de eliminar todos os focos de transmissão da esquistossomose mansônica. É importante intensificar as atividades de educação em saúde, para que os indivíduos sejam sujeitos ativos de transformação da realidade local. Também é necessário desenvolver pesquisas mais aprofundadas sobre o tema, a fim de nortear as estratégias de intervenção na área em questão.