Introdução
No Brasil, todo cidadão tem direito aos serviços de saúde, entre os quais se encontra a disponibilização de medicamentos essenciais, aqueles utilizados para tratar as doenças mais prevalentes em nossa população.1,2 A provisão de medicamentos, uma das áreas mais transversais do Sistema Único de Saúde (SUS), representa um dos maiores gastos do sistema público de saúde, que se vê refletido em um aumento de programas e políticas promotoras de um maior e mais equânime acesso da população a medicamentos, seja pelo setor público, seja pelo setor privado - vide a política pública de redução dos preços cobrados ao consumidor.1-3
O acesso a medicamentos de uso contínuo é uma importante estratégia para o controle de doenças prevalentes no Brasil.1-3 Entre os programas anteriormente citados, estão os direcionados aos medicamentos essenciais: por exemplo, medicamentos para diabetes mellitus e hipertensão arterial,2 importantes causas de mortalidade e morbidade a afetar homens e mulheres de todas as categorias de renda.3,4 A prevalência de hipertensão no mundo é alta; especialmente no Brasil, ela foi estimada em 21,6% no ano de 2006.5 Em 2010, a prevalência de diabetes no mundo era calculada em 6,4%.6 Em 2006, no Brasil, a prevalência de diabetes correspondia a 5,3%.5 O acesso a medicamentos é uma das intervenções prioritárias para o controle da hipertensão arterial e do diabetes mellitus.3-5
Um medicamento pode ser inovador, similar ou genérico.1-3 O medicamento genérico apresenta menor custo que o medicamento inovador.7 A intercambialidade do medicamento genérico com o medicamento inova dor é assegurada por testes de equivalência farmacêutica e bioequivalência.7,8
Em 1999, quando a política de medicamentos genéricos8 foi implantada no Brasil, profissionais de saúde, principalmente médicos e farmacêuticos, protagonizaram campanhas educativas com o objetivo de aumentar o conhecimento e a utilização dos medicamentos genéricos. Essas campanhas têm-se mostrado mais intensas, desde que a política foi implementada.
No país, a política de medicamentos genéricos implica desembolsos financeiros para o sistema de saúde, com impactos no setor privado, ao estimular a concorrência na indústria farmacêutica,7 e no setor público, ao permitir a aquisição de medicamentos a menores preços, resultando em redução nos gastos públicos.7,8 Fazem-se necessários estudos para investigar se a estratégia governamental de ampliação e promoção da equidade no acesso da população a medicamentos - particularmente aos medicamentos essenciais - é efetiva.7,8 Afinal, uma das funções do Estado é garantir a equidade no acesso aos medicamentos para toda a populacão.1,9,10
O objetivo do presente estudo foi analisar a utilização e a percepção sobre medicamentos genéricos pela população com diabetes e hipertensão da cidade de São Paulo, considerando-se a Política de Medicamentos Genéricos no Brasil.
Métodos
Foi realizado estudo transversal de base populacional, mediante análise dos dados do Inquérito de Saúde do Município de São Paulo (ISA-Capital), coletados em entrevistas domiciliares realizadas durante o ano de 2003.
O ISA-Capital 2003 utilizou amostragem estratificada por conglomerados em dois estágios. No primeiro estágio, foram sorteados 60 setores censitários com probabilidade proporcional ao tamanho - expresso pelo número de domicílios existentes em cada um deles segundo a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).11 No segundo estágio, uma amostra sistemática de domicílios foi sorteada em cada setor censitário, com base na listagem dos domicílios previamente arrolados. A metodologia completa do ISA-Capital 2003 encontra-se no seguinte sítio eletrônico: http://www.fsp.usp.br/isa-sp/
No presente estudo, foram considerados os indivíduos que se autorreferiram com hipertensão arterial ou diabetes mellitus, na idade de 20 anos ou mais, moradores da cidade de São Paulo e que usaram medicamento nos três dias anteriores à entrevista - considerados, aqui, medicamentos para controle da hipertensão, diabetes e para tratamento de qualquer outra enfermidade.
As variáveis de interesse do estudo foram a (i) utilização de medicamentos genéricos e a (ii) percepção sobre medicamentos genéricos pela população entrevistada. A utilização de medicamentos genéricos foi avaliada por meio da pergunta:
"Está usando medicamento genérico?"
(com resposta dicotômica: sim; não)
A percepção sobre medicamentos genéricos foi analisada a partir das seguintes perguntas:
"O (a) Sr(a) sabe se é possível substituir algum dos medicamentos que usou nos últimos três dias por um genérico?"
"Na sua opinião, existem vantagens em utilizar medicamentos genéricos? Quais?"
"Na sua opinião, existem desvantagens em utilizar medicamentos genéricos? Quais?"
Além das questões relativas ao consumo de medicamentos, hipertensão arterial e diabetes mellitus, promoveu-se uma caracterização sociodemográfica segundo sexo (masculino; feminino), faixa etária (em anos: 20 a 59 [adultos]; 60 ou mais [idosos]) e escolaridade do chefe de família (em anos de estudo: 0 a 7; 8 e mais).
Para as categorias das variáveis qualitativas, foram calculados os percentuais e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Aplicou-se o teste do qui-quadrado de Pearson (Rao-Scott) para verificar a existência de associação entre a utilização de medicamentos e as características sociodemográficas, sendo a associação considerada estatisticamente significativa quando p<0,05.
A análise dos dados foi feita pelo programa Stata(r), versão 10.0, dado o delineamento com plexo da amostra do estudo (módulo survey).
Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 14 de fevereiro de 2001, protocolo número 381.
Resultados
A amostra analisada pelo estudo totalizou 603 participantes: 448 dos entrevistados referiram hipertensão arterial e uso de medicamento nos três dias anteriores à entrevista; os demais 155 referiram diabetes mellitus e utilizaram medicamento na mesma condição (Tabela 1).
a) Excluída a resposta 'não sabe ou não respondeu'
b) Teste do qui-quadrado de Pearson (Rao-Scott), com nível de significância de 5%
O percentual de entrevistados que referiram hipertensão ou diabetes, utilizaram medicamento nos três dias anteriores à entrevista e eram usuários de medicamento genérico correspondeu a 33,3% (IC95% 25,2;42,4) (n=135) com hipertensão, e 26,3% (IC95% 17,0;38,3) (n=49) com diabetes (dados não apresentados em tabelas).
Na Tabela 1, são descritas as características sociodemográficas dos entrevistados que afirmaram utilizar medicamento genérico. Embora não se tenha encontrado associação estatisticamente significativa desse uso com as categorias analisadas - sexo, idade e escolaridade -, destaca-se o baixo percentual de indivíduos que disseram fazer uso de medicamentos genéricos, nunca superior a 40,0% (Tabela 1).
A percepção da população do estudo sobre medicamento genérico é apresentada na Tabela 2. Mais de 90,0% dos que referiram hipertensão arterial (91,2% - IC95% 85,6;98,4) e dos que referiram diabetes (90,9% - IC95% 79,6 ; 97,3) disseram encontrar vantagens no uso de medicamentos genéricos. Dos que referiram hipertensão arterial, 22,7% desconheciam a possibilidade de substituição do medicamento inovador pelo genérico; entre os diabéticos autorreferidos, a proporção do desconhecimento dessa possibilidade de troca foi de 22,2% (Tabela 2).
Entre as vantagens na utilização de medicamentos genéricos apontadas pelos entrevistados, a maioria citou o baixo custo: 71,0% dos hipertensos e 71,1% dos diabéticos autorreferidos. Também foram citadas como vantagens "aumento do número de opções", facilidade para encontrar o medicamento, e genéricos "serem bons" (dados não apresentados em tabelas).
Entretanto, 65,9% (n=265) dos que referiram hipertensão e 59,4% (n=87) dos que referiram diabetes mencionaram o que consideravam desvantagens para o uso de medicamento genérico, entre as quais "não ser bom como o de marca" (10,4% dos hipertensos e 7,2% dos diabéticos autorreferidos) e "ser difícil de encontrar" (1,8% dos hipertensos e 3,4% dos diabéticos autorreferidos) (dados não apresentados em tabelas).
Discussão
Este estudo evidenciou baixa utilização de medicamento genérico e grande proporção de entrevistados que desconheciam a possibilidade de substituição do medicamento inovador pelo genérico. Não houve diferença estatisticamente significativa quanto a utilização de genéricos segundo idade, sexo e escolaridade. A maioria dos entrevistados identificou vantagens no uso de genérico, sendo a principal o baixo custo.
Apesar de a maioria da população do estudo ver vantagens no consumo de medicamentos genéricos, sua utilização em 2003, após cinco anos da implantação da Política de Medicamentos Genéricos no Brasil, revelou-se baixa tanto na população dos pacientes com hipertensão como dos pacientes com diabetes autorreferida. Quase uma década mais tarde, o estudo de Blatt e colaboradores,12 realizado no município de Tubarão, estado de Santa Catarina, em 2012, mostrou que 77,8% da população local utilizava medicamento genérico com freqüência, indicando maior utilização desses medicamentos do que a identificada no presente estudo. De acordo com pesquisa realizada no município de Rio Branco, estado do Acre, em 2006, apenas 27,9% dos entrevistados consideravam as campanhas educativas sobre genéricos como regulares, boas ou ótimas.13 Apesar de o conhecimento da população sobre medicamentos genéricos estar aumentando desde que uma política específica foi implementada no país, ainda são necessárias mais campanhas informativas sobre as qualidades dos medicamentos genéricos, entre os usuários de medicamentos.
Além de campanhas pelo aumento de seu uso, faz-se necessária maior disponibilidade desses medicamentos nos setores público e privado, principalmente no setor público. Miranda e cols.,14 em estudo publicado no ano de 2009, chamavam a atenção para a falta de medicamentos genéricos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). A lista da Rename tem por objetivo orientar o abastecimento de medicamentos pelo SUS, especialmente aqueles destinados ao tratamento das doenças mais prevalentes no Brasil, como diabetes e hipertensão.15 Segundo Miranda e cols., os medicamentos da Rename, para atenderem às necessidades prioritárias da atenção à saúde, deveriam constituir a base da produção de genéricos no país, além de estarem permanentemente disponíveis aos segmentos da sociedade que deles necessitam;1,15 porém, estudo de Oliveira, Assis e Barboni,16 realizado em 2010, revelou baixa disponibilidade de medicamentos da Rename em municípios brasileiros.
Além da baixa disponibilidade de genéricos no setor público,14 o estudo de Bevilacqua, Farias e Blatt publicado em 2011,17 focado em um município de médio porte de Santa Catarina, ao comparar os preços entre medicamentos genéricos e similares adquiridos pelo SUS, indicou menores preços para os similares. Este achado demonstra ser a Política de Medicamentos Genéricos um importante componente para a gestão da Assistência Farmacêutica, ainda que distante da necessidade real da rede pública de saúde.
A principal desvantagem destacada pela população do presente estudo foi o medicamento genérico "não ser bom como o de marca". A Política de Medicamentos Genéricos deve superar lacunas do complexo industrial da saúde no Brasil, entre elas a base empresarial local de inovação.18 Após a implementação dos genéricos, observou-se melhoria na qualidade do medicamento no Brasil, tanto do inovador como do similar.7 A partir das Resoluções da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - RDC no 13319 e RDC no 13420 -, datadas de 29 de maio de 2003, passaram a ser obrigatórios os testes de bioequivalência e biodisponibilidade relativa para os medicamentos similares, exigindo destes os mesmos requerimentos de qualidade aplicados aos genéricos. A despeito do avanço na Legislação específica, segundo Gadelha,21 o complexo industrial da Saúde no Brasil, que inclui o complexo industrial local de medicamentos, todavia não apresenta um padrão adequado. A grande heterogeneidade da qualidade do parque industrial de medicamentos, sejam eles genéricos ou similares, é um dos problemas do mercado brasileiro desses produtos, haja vista a pressão social para que o setor público alie a qualidade ao custo, entre seus critérios para a compra de medicamentos.22
A população entrevistada citou, como principal vantagem para o uso de genéricos, seu menor custo. O baixo custo dos medicamentos genéricos é a principal razão para a intercambialidade do medicamento inovador com o medicamento genérico.7,23 O presente estudo reforça a importância do medicamento genérico para a promoção do acesso universal aos medicamentos, cuja ampliação crescente, nos dias atuais, deve-se não só ao medicamento genérico em si, como também a outras políticas e programas de Saúde Pública.7,24,25 Para o usuário, um dos efeitos da política de medicamentos genéricos no Brasil8 é a opção de compra desses medicamentos com a mesma qualidade que o inovador e a preços mais baixos; trata-se de uma iniciativa importante para o maior acesso a medicamentos, embora tal acesso ainda se mostre aquém do desejado. Estudo desenvolvido por Barros e cols.26 no Brasil, no período 2003-2008, encontrou a hipertensão e o diabetes mais prevalentes nos segmentos de menor escolaridade e desprovidos de plano de saúde. O já mencionado estudo de Miranda e cols.,14 baseado nas cinco macrorregiões do país, lembra que a baixa disponibilidade de medicamentos genéricos pelo SUS penaliza principalmente indivíduos com menor renda e dependentes do sistema público para seu tratamento de saúde.
Não houve diferença estatisticamente significativa entre a utilização de medicamentos genéricos e a escolaridade da população. Tomando-se a escolaridade como indicador,27 é possível inferir que todas as pessoas de todas as classes sociais usam medicamentos genéricos e, por conseguinte, a política de medicamentos genéricos pode contribuir para a universalização e equidade no acesso a esses produtos. Eis uma característica importante da Política de Medicamentos Genéricos no Brasil, país cujo contexto de desigualdade econômica, social e de saúde requer a formulação de políticas públicas equitativas.9,10 Se a equidade, enquanto um dos princípios norteadores dos SUS, não foi plenamente alcançada,28 a Política Nacional de Medicamentos1 deu um passo significativo nesse sentido ao reorganizar a Assistência Farmacêutica, cuja concretização prevê o acesso a medicamentos nas quantidades adequadas e no momento oportuno, com a devida provisão para controle das doenças de grande impacto na Saúde Pública, de que hipertensão e diabetes mellitus são exemplos.
Populações de diferentes estratos de escolaridade utilizam medicamento genérico, daí deduzir que a política nacional desses medicamentos não só pode contribuir para a promoção da equidade como ser de grande importância na ampliação e equidade de seu acesso a esses usuários.
As limitações deste estudo encontram-se no fato de a coleta de dados ter-se realizado em 2003. Desde então, uma série de mudanças de natureza política e econômica aconteceram no Brasil, incluindo o estabelecimento de políticas para melhorar o acesso a medicamentos, como a implantação, em 2004, do Programa Farmácia Popular, de grande demanda por parte dos usuários do SUS,24 e em 2011, do programa Saúde Não Tem Preço, responsável pelo fornecimento gratuito de alguns medicamentos para hipertensão e controle do diabetes aos pacientes.25
Analisaram-se condições sociodemográficas da população com hipertensão e diabetes que usou medicamentos genéricos. Alguns de seus resultados, possivelmente, foram influenciados pelo pequeno número de participantes: por exemplo, a variável escolaridade foi desmembrada em duas categorias, devido - principalmente - ao pequeno tamanho da população com zero a três anos de estudo. Não foi possível analisar a renda da população pelo excesso de missing data nessa variável. Outra limitação foi o fato de o estudo basear-se em dados autorreferidos, sujeitos a não resposta - 'não sabe ou não respondeu' - e ao viés de memória.
No questionário do ISA-Capital, as perguntas referentes a medicamentos tratavam exclusivamente dos medicamentos genéricos, sem fazer alusão aos similares. Cumpre destacar que o medicamento similar, em alguns casos, têm preço menor que o do genérico; e praticamente sempre, seu preço é menor que o do medicamento de referência.14
O presente estudo trouxe informações sobre a utilização de medicamentos genéricos e características sociodemográficas da população com diabetes e hipertensão, doenças que constituem prioridades da Saúde Pública no Brasil. Seus resultados podem contribuir para o embasamento teórico de gestores e tomadores de decisão, no aprimoramento das políticas destinadas à promoção da equidade e do acesso universal a medicamentos e, especialmente, no desenvolvimento de campanhas educativas sobre os medicamentos genéricos, dirigidas à população geral e aos profissionais de saúde.
Recomenda-se a realização de mais pesquisas sobre a atual utilização de medicamentos genéricos e as políticas que visam à melhoria do acesso aos medicamentos pela população brasileira.