Introdução
Os comportamentos de risco à saúde, tais como nível insuficiente de atividade física, tabagismo, baixa ingestão de frutas e hortaliças e consumo abusivo de bebida alcoólica, têm sido frequentemente encontrados na população adolescente.1,2 São comportamentos associados a doenças crônicas, como obesidade, diabetes, hipertensão arterial, doenças respiratórias, dislipidemias, câncer3 e doenças cardiovasculares,4 que lideram as causas de óbito na vida adulta, no país e no mundo.5
A baixa ingestão de frutas e hortaliças predispõe o surgimento de carências nutricionais, o que pode comprometer o pleno crescimento e desenvolvimento do adolescente.6 Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), em 2012, apenas 43,4% dos escolares brasileiros consumiam hortaliças e 30,2% consumiam frutas frescas em cinco ou mais dias da semana.7 A pesquisa também mostrou que 63,1% dos adolescentes foram classificados como insuficientemente ativos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), menos de um em cada quatro adolescentes atende as diretrizes recomendadas para atividade física.5
O consumo abusivo de bebida alcoólica na adolescência pode levar a problemas de saúde nas demais fases do ciclo vital e afetar a expectativa de vida. O consumo de álcool é a principal causa de lesão, violência e mortes prematuras,5 e está associado a indicadores de estresse psicossocial como tristeza, solidão, insônia e pensamento de suicídio.8 Os dados da PeNSE7 ainda apontaram que 50,3% dos adolescentes brasileiros haviam consumido pelo menos uma dose de bebida alcoólica durante a vida.
A promoção de práticas saudáveis durante a adolescência é fundamental para a prevenção de problemas de saúde nessa fase do ciclo vital e na idade adulta.5 Considerando-se a contribuição dos comportamentos de risco à saúde para o aumento dos problemas de Saúde Pública, é necessário investigar modelos assistenciais realmente efetivos.
O aconselhamento na Atenção Primária à Saúde (APS) pode gerar impactos positivos sobre a mudança de comportamento, além de estreitar o vínculo entre a população e os profissionais de saúde.9,10 Contudo, informações sobre a relação entre a assistência prestada na APS e a exposição de adolescentes a comportamentos de risco à saúde ainda são escassas. O objetivo deste trabalho foi analisar comportamentos de risco à saúde de adolescentes e atividades educativas da Estratégia Saúde da Família no município de Cuiabá, estado de Mato Grosso, Brasil.
Métodos
O presente estudo é parte da pesquisa 'A saúde do adolescente na Atenção Primária de Cuiabá: sob a ótica da multidisciplinaridade', realizada na cidade de Cuiabá-MT, em 2011. Trata-se de um estudo transversal, baseado em dados de um inquérito com adolescentes de 12 a 19 anos, cadastrados em unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) com atuação do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde).
O município estudado é geograficamente dividido em quatro regionais administrativas: Sul, Norte, Leste e Oeste. Em 2011, de acordo com o dimensionamento realizado pela Secretaria Municipal de Saúde, o projeto PET-Saúde estava implantado em 19 das 60 equipes da ESF localizadas na zona urbana, abrangendo todas as regionais. A população urbana do município era de 540.814 habitantes11 e, segundo levantamento das fichas cadastrais nas ESF, 10.596 adolescentes estavam registrados nas 19 ESF cobertas pelo PET-Saúde, em 2011.
Desse total, foram excluídos os adolescentes residentes em microrregiões não assistidas por agentes comunitários de saúde (ACS). Para determinação do tamanho amostral, foram considerados, a população estimada de 7.014 adolescentes; um nível de confiança de 95%, erro amostral de cinco pontos percentuais e uma proporção esperada de 50%, uma vez que não havia conhecimento sobre os fatores comportamentais na cidade estudada. Sendo assim, o cálculo do tamanho amostral (n) foi realizado por meio da equação para proporções com populações finitas,
onde n* é dado pela seguinte fórmula,
N representa o tamanho da população de estudo, p é a proporção esperada de adolescentes com a característica de interesse na população, d representa o erro amostral, α é o nível de significância adotado e zα/2 indica o nível de confiança. Com base nessas informações, obteve-se um tamanho amostral de 364 adolescentes, sobre os quais foi acrescentado o percentual de 20% para compensar possíveis perdas e recusas, definindo-se uma amostra de 437 adolescentes para o estudo.
Os adolescentes tinham fichas cadastrais nas ESF (Ficha A), que foram utilizadas para o sorteio da amostra. Esse processo consistiu da seleção de um ponto de partida aleatório e sucessiva escolha de cada elemento, respeitando-se o intervalo de amostragem que resulta da divisão do tamanho da população (N) pelo tamanho da amostra (n). Os critérios de exclusão adotados foram os seguintes: adolescentes com algum comprometimento físico ou mental, relatado pelos pais ou responsável, que impossibilitasse o preenchimento do questionário, e aqueles que se recusaram a participar do estudo.
Os adolescentes preencheram um questionário adaptado do instrumento utilizado no Inquérito Mundial de Saúde do Escolar - Global School-Based Student Health Survey (GSHS) -, proposto pela OMS.12 Esse questionário é subdividido em módulos sobre os comportamentos de saúde e condições socioeconômicas. Foram acrescidas questões referentes a atividades de educação em saúde desenvolvidas pela ESF: cinco perguntas sobre educação em saúde e dez perguntas sobre a relação do adolescente com a unidade de saúde.
Foi realizado estudo-piloto com adolescentes de uma equipe da Saúde da Família não pertencente ao PET-Saúde, de modo a garantir a neutralidade dos sujeitos e, após o pré-teste, o questionário foi ajustado. Cada adolescente preencheu o questionário no próprio domicílio, sob a supervisão dos alunos bolsistas do programa PET-Saúde, vinculados aos cursos de Educação Física, Enfermagem, Nutrição, Medicina e Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso. Os entrevistadores receberam capacitação de oito horas, para padronização dos procedimentos de coleta de dados, e foram auxiliados pelos ACS.
O estudo considerou como variáveis independentes a participação em atividades educativas da ESF, categorizada em 'sim' ou 'não', e características sociodemográficas (sexo, idade, renda e escolaridade materna). Os desfechos analisados foram os fatores de risco comportamentais: baixo consumo de frutas e hortaliças, nível insuficiente de atividade física e consumo de álcool. O tabagismo não foi objeto do presente estudo.
Quanto às atividades educativas da ESF, os adolescentes relataram se alguma vez haviam participado de alguma atividade no posto de saúde do bairro que tratasse dos seguintes temas: efeitos do álcool e riscos de seu uso para a saúde; alimentação saudável; e importância da prática de atividade física para a saúde. A idade foi categorizada em duas faixas etárias, em anos: 12 a 14; e 15 a 19. A renda familiar foi categorizada em dois grupos, por salários mínimos percebidos (1-2 e ≥3), e a escolaridade materna, em anos de estudos (<8 e ≥8).
Foi considerada como baixo consumo a ingestão de frutas e hortaliças menor que duas vezes ao dia e de suco de frutas menor que uma vez ao dia, tendo por base o parâmetro de consumo preconizado pela OMS, de cinco porções/dia - três porções de frutas e duas de hortaliças.5 Foi considerado insuficientemente ativo o adolescente que relatou não praticar 60 minutos de atividade física de intensidade moderada a vigorosa em pelo menos cinco dias da semana.13 O consumo de álcool foi estabelecido quando o adolescente referiu ter consumido uma dose de bebida alcoólica nos últimos 30 dias.
A análise estatística foi realizada pelo aplicativo Stata 13.0. Primeiramente, as prevalências foram estimadas segundo sexo, faixa etária, renda familiar, nível de escolaridade materna e participação em atividades educativas da ESF. As associações foram analisadas pelo teste do qui-quadrado de Pearson, por meio da razão de prevalência bruta (RPb) com intervalo de confiança de 95% (IC95%) e nível de significância estabelecido em 5%. Foram realizados modelos de regressão de Poisson múltipla com variância robusta,14 incluindo as variáveis que apresentaram p<0,20. Os modelos foram ajustados para as seguintes variáveis: (i) sexo e idade e (ii) sexo, renda familiar e ações sobre alimentação, considerando-se os desfechos 'atividade física insuficiente' e 'baixo consumo de frutas e hortaliças', respectivamente. Não houve análise ajustada para o desfecho 'consumo de álcool', tendo em vista que apenas a variável 'idade' apresentou p<0,20.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética Envolvendo Seres Humanos do Hospital Júlio Müller: Protocolo nº 693/2009. A coleta e análise dos dados foi realizada conforme os princípios éticos preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde: Resolução CNS n° 466, de 12 de dezembro de 2012. A concordância formal do adolescente ou seu responsável (para participantes com idade abaixo de 18 anos) foi condicionada à assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Foram entrevistados 399 adolescentes (média de 15,3 e desvio-padrão de 2,1 anos de idade), 38 se recusaram a participar ou devolveram o questionário em branco (8,7% de perdas/recusas); a amostra final manteve-se acima do inicialmente previsto (364 adolescentes). A maioria dos adolescentes era do sexo feminino (59%), com renda familiar de até dois salários mínimos (54%) e escolaridade materna igual ou superior a oito anos de estudo (53%). Apenas uma pequena parte dos adolescentes relatou ter participado de ações de aconselhamento sobre uso de álcool (23%), alimentação saudável (10%) e atividade física (9%). A prática insuficiente de atividade física foi o fator de risco mais prevalente (82%), seguindo-se baixo consumo de frutas e hortaliças (74%) e consumo de álcool (13%) (Tabela 1).
Tabela 1 - Características de adolescentes atendidos pela Estratégia Saúde da Família (n=399) no município de Cuiabá, Mato Grosso, 2011
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a) n de acordo com valores ignorados por ausência de resposta.
b) Variáveis com maior número de respostas ignoradas: renda familiar, 35; e ações educativas sobre atividade física, 24.
Ao analisar os fatores associados com a adoção de comportamentos de risco à saúde, observou-se que os adolescentes de 15 a 19 anos foram mais propensos ao uso de bebidas alcoólicas (RPb=1,48 - IC95% 1,29;1,71) e à atividade física insuficiente (RPb=1,27 - IC95% 1,01;1,62). A participação nas ações de aconselhamento sobre consumo de álcool e atividade física não apresentou associação significativa com a adoção de comportamentos de risco à saúde. Houve associação significativa entre nível insuficiente de atividade física e sexo (feminino versus masculino: RPb=0,49 - IC95% 0,40;0,61), indicando que as meninas apresentaram maior probabilidade de serem insuficientemente ativas. Após o ajuste, a associação entre as variáveis 'sexo' e 'atividade física insuficiente' (RPa=0,76 - IC95% 0,68;0,85) permaneceu significativa (Tabela 2).
Tabela 2 - Fatores associados a comportamentos de risco à saúde de adolescentes atendidos pela Estratégia Saúde da Família (n=399) no município de Cuiabá, Mato Grosso, 2011
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a) RPb: razão de prevalência bruta
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%
c) RPa: razão de prevalência ajustada
Nota:
Os modelos de regressão de Poisson para os desfechos 'atividade física insuficiente' e 'baixo consumo de frutas e hortaliças' foram ajustados para as variáveis que apresentaram p<0,20. Não houve análise ajustada para o desfecho 'consumo de álcool', tendo em vista que apenas a variável 'idade' apresentou p<0,20.
A prevalência de adolescentes com ingestão de frutas e hortaliças menor que duas vezes ao dia e suco de frutas menor que uma vez ao dia foi significativamente maior entre aqueles que relataram ter renda familiar abaixo de dois salários mínimos (RPa=1,17 - IC95% 1,02;1,33). Adolescentes que não participaram de ações de incentivo à alimentação saudável apresentaram maior prevalência de consumo insuficiente de frutas e hortaliças (RPb=1,08 - IC95% 1,00;1,18); contudo, após o ajuste para as variáveis 'sexo' e 'renda familiar', não se observou associação significativa (Tabela 2).
Discussão
O estudo não encontrou associação significativa entre os comportamentos de risco à saúde e a participação dos adolescentes em ações educativas promovidas pela ESF. Além do que, houve baixo relato de participação desse público nesse tipo de atividades. Menos de um quarto dos adolescentes eram suficientemente ativos fisicamente, e apresentavam consumo adequado de hortaliças. Verificou-se associação significativa entre atividade física insuficiente e sexo feminino, o consumo de álcool foi associado à faixa etária de 15 a 19 anos, e o baixo consumo de frutas e hortaliças, associado à menor renda familiar.
As equipes da ESF atendem principalmente populações com baixo nível socioeconômico, consequentemente, mais suscetíveis aos comportamentos de risco à saúde,10,15 conforme evidenciado neste estudo. Embora não se tenha observado associação significativa, a frequência de relato dos comportamentos de risco à saúde foi menor entre os adolescentes que participavam das atividades de educação em saúde promovidas pela ESF.
A prevalência de adolescentes com baixa ingestão de frutas e hortaliças foi alta (74%). Outros estudos encontraram, por exemplo, no estado de Pernambuco, 51,4% dos adolescentes com baixo consumo de frutas e verduras;1 e na cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, 75,2% dos adolescentes referiram o consumo de menos de três porções de frutas e 77,6% o consumo de menos de duas porções de hortaliças ao dia.16 Os diferentes critérios adotados para classificação da alimentação e os métodos utilizados em cada estudo podem justificar a variabilidade observada. Além disso, a qualidade da dieta tem sido associada a preços dos alimentos e nível socioeconômico,16-18 reforçando as associações entre baixo consumo de frutas e hortaliças e baixa renda familiar encontradas aqui.
A renda é o preditor independente mais fortemente determinante para o hábito de comprar frutas e hortaliças: indivíduos com menor nível educacional são menos propensos a adquirir19,20 ou consumir esses alimentos.16 O nível educacional pode determinar a dieta, pois reflete a capacidade de uma pessoa acessar e interpretar informações relacionadas à saúde.21 Por isso, embora os hábitos alimentares de crianças e adolescentes possam estar associados aos hábitos do pai, independentemente dos da mãe,22 era esperado que a baixa escolaridade materna aumentasse a prevalência de consumo insuficiente de frutas e hortaliças, hipótese não confirmada por este estudo.
Quanto à atividade física, cerca de 80% dos adolescentes (13 a 15 anos), em 105 países avaliados pelo GSHS, não praticavam 60 minutos de atividade física moderada a vigorosa por dia.23 Em Cuiabá, os dados encontrados pela PeNSE em 2012 apontaram prevalência de 78,9% de adolescentes insuficientemente ativos, inferior apenas se comparada às prevalências correspondentes a cidades do Nordeste e ao Rio de Janeiro.7 Em outros estudos realizados no Brasil, a prevalência de adolescentes insuficientemente ativos variou de 36 a 86%.1,4,24-26 Estudos nacionais têm apontado prevalências de 23 a 32% de adolescentes expostos ao consumo de álcool.1,4,8,27 Segundo um estudo realizado na Finlândia, 9% dos adolescentes daquele país nórdico consumiam álcool;28 embora sua amostra fosse constituída por adolescentes de uma faixa etária mais restrita, dos 11 aos 15 anos, o estudo finlandês justificaria a hipótese da iniciação ao consumo de álcool ocorrer próxima à transição para a vida adulta,1 evidenciada neste estudo. Outro aspecto relevante sobre o consumo de álcool está relacionado aos indicadores de estresse psicossocial,8 o que representa risco à saúde se considerados os demais prejuízos decorrentes do uso de álcool nessa fase da vida.1,8,29
Entre as limitações encontradas para o estudo em tela, primeiramente, cabe destacar que os dados nos quais se baseou foram obtidos com a aplicação de questionário junto a adolescentes, de modo a não ser possível aferir a real oferta e implementação das atividades educativas conduzidas pela equipe da ESF, incluindo métodos, frequência e público-alvo. Em entrevistas realizadas com 146 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e ACS) das 19 ESF estudadas, apenas 39% relataram conduzir algum programa voltado à saúde do adolescente e 59% confirmaram a existência de ações educativas (dados não apresentados). Esses dados destacam a necessidade de investigar a oferta dessas atividades nas unidades de saúde. Os adolescentes foram questionados quanto a sua participação em atividades realizadas no 'posto de saúde do bairro', o que caracteriza o local de realização; assim, não é possível afirmar que todas as atividades fossem oferecidas a todos os adolescentes pesquisados.
Outras limitações desta pesquisa devem ser consideradas. O GSHS é um instrumento baseado no autorrelato, o que pode contribuir para uma medida imprecisa das frequências nas variáveis avaliadas. Além disso, o desenho transversal do estudo impossibilita inferir a relação temporal entre os eventos estudados. Ademais, não foram investigados fatores de influência direta sobre as variáveis testadas, como quadro de sobrepeso/obesidade ou vício alcoólico. O tabagismo também é um fator de risco à saúde que não pode ser ignorado. Embora o inquérito tenha abordado esse tema, ele foi tratado em outro estudo (ainda não publicado).
Mesmo com certo grau de imprecisão, as medidas coletadas são úteis para distinguir - e evidenciar - características na população, e indicar caminhos para estudos de intervenção sobre esses fatores de risco. Outrossim, o presente trabalho tem caráter domiciliar e investigou a relação e envolvimento da população atendida com as equipes da ESF, o que constitui um ponto forte da pesquisa.
A renda familiar foi significativamente associada ao baixo consumo de frutas e hortaliças. Adolescentes mais próximos à idade adulta apresentaram maior prevalência de consumo de álcool, e a prevalência de atividade física insuficiente foi maior entre meninas. A baixa participação de adolescentes em ações de promoção da saúde indica a necessidade de políticas de Saúde Pública mais efetivas. Sugere-se o monitoramento de programas de atividades educativas de prevenção aos agravos à saúde, principalmente voltados à adolescência, quando os indivíduos formam hábitos que tendem a permanecer na vida adulta.