Em 2016, o Brasil está sendo surpreendido por uma avassaladora epidemia do vírus Zika (ZIKV), flavivírus que, da mesma forma que o vírus da dengue (DENV), é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Há pelo menos três razões diferenciais para uma situação tão sui generis, quando se trata do ZIKV:
total de pessoas afetadas e velocidade de disseminação do vírus;
gravidade das manifestações possivelmente associadas ao vírus, incluindo a microcefalia nos filhos de mães acometidas durante a gravidez e o desenvolvimento de sequelas neurológicas em parte das pessoas que adoeceram; e
epidemia de (des)informação, disseminada tão - ou mais - rapidamente que a própria situação de Saúde Pública.
Desde 1986, enfrenta-se, de forma quase ininterrupta, epidemias de dengue. Hoje, os quatro sorotipos do DENV circulam no país, onde se convive com falhas na prevenção, dependentes de muitos aspectos que extrapolam o setor da Saúde. Em particular, merecem destaque aspectos macroestruturais, socioeconômicos e ambientais, historicamente ignorados em prol de intervenções meramente biomédicas ou tecnológicas. Contudo, um árduo trabalho de três décadas ensinou muito sobre as formas de enfrentamento das epidemias.1
Antes do ZIKV, foi a experiência acumulada contra a dengue que permeou a preparação do serviço público brasileiro para a entrada no país do vírus chikungunya (CKG), um alphavírus também transmitido pelo A. aegypti. A expansão territorial de CKG desde 2004 suscitou o lançamento de um alerta da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), dirigido a todo o continente americano.2 O Brasil redobrou os esforços de vigilância epidemiológica e chegou a enviar médicos para o Caribe com o objetivo de capacitá-los no reconhecimento dos sinais e sintomas de infecção por CKG. A entrada desse vírus no país era questão de tempo: em setembro de 2014, foi confirmada a transmissão autóctone de CKG entre os brasileiros.3
Por que a disseminação de Zika foi maior que a de chikungunya?
Há algumas (supostas) contradições na introdução recente dos vírus Zika e chikungunya no Brasil, merecendo destaque:
O reconhecimento de casos autóctones de infecção pelo ZIKV ocorreu em maio de 2015, oito meses depois do CKG, notificado em setembro de 2014.3-5
De acordo com a literatura (até o momento da finalização deste artigo), o percentual de pessoas infectadas pelo ZIKV que manifestam sintomas é de apenas 20%.6 Entretanto, os sintomáticos de CKG chegam a 80%.7
Estima-se que o período de incubação extrínseco (PIE) do vírus Zika seja de sete a 10 dias. Este é o intervalo de tempo necessário para que uma fêmea adulta de A. aegypti, depois do repasto em pessoa infectada, torne-se infectiva - capaz de transmitir o vírus.8 O PIE para CKG é curto, de apenas três dias.9
Ao contrário do ZIKV, cujo único vetor no país parece ser o A. aegypti, há duas linhagens de CKG circulando no Brasil, uma delas tão bem veiculada por Aedes albopictus quanto por A. aegypti.10 Os dois mosquitos são abundantes no país, sendo que o primeiro tem caráter mais silvestre que o A. aegypti.11 Ou seja, a transmissão do CKG em cidades médias ou cidades do interior seria facilitada por essa característica.
Ora, se o ZIKV chegou ao Brasil depois de CKG, se a taxa de pacientes sintomáticos do ZIKV é menor que a do vírus CKG, se em tese, há quantidade muito menor de mosquitos infectivos para o ZIKV do que para o vírus CKG e se a transmissão de CKG não parece se restringir às grandes áreas urbanas, por que a disseminação do ZIKV foi tão mais intensa que a do vírus CKG? Formulando a pergunta de outra forma: por que não aconteceu a 'esperada' epidemia de chikungunya?
Há várias formas de (tentar) compreender essas contradições, a seguir reunidas em três linhas de reflexão:
I.
A primeira tentativa de compreensão do fenômeno coloca em xeque as próprias informações enumeradas. Por exemplo: pode ser que o ZIKV tenha entrado no Brasil anteriormente, e permanecido "invisível" ao sistema de saúde, seja porque seus sintomas, quando se manifestam, são brandos, seja porque tenha sido confundido com outras doenças exantemáticas, ou mesmo com a dengue, para a qual o país é hiperendêmico.
Quanto aos percentuais conhecidos de sintomáticos - Zika, 20%; chikungunya, 80% -, vale destacar o pequeno tamanho amostral a sustentar essas taxas. Afinal, CKG até 2005 e ZIKV até 2007 eram vírus pouco estudados, restritos à África e regiões da Ásia.12 Também é ainda pequeno o tamanho amostral usado para a determinação do PIE em Aedes para ZIKV e CKG.
Em relação aos vetores, vale mencionar que tanto o ZIKV quanto o CKG são vírus originalmente encontrados em áreas silvestres ou rurais da África, respectivamente, na floresta de Zika (localidade de Uganda que deu nome ao vírus) e na Tanzânia. Nessas regiões, a circulação dava-se, principalmente, entre primatas não humanos e mosquitos silvestres.12,13 Eis um ponto de reflexão importante: se não fosse a atividade humana, seja exploratória ou mesmo de vigilância (caso do ZIKV, primeiramente encontrado em macacos rhesus, sentinela para febre amarela), qual seria a probabilidade de esses vírus terem contato com A. aegypti?
Hoje, diz-se que A. aegypti e o A. albopictus são os principais transmissores de CKG. No Senegal, entretanto, o mosquito Aedes taylori foi identificado como um elo na transmissão do vírus CKG entre os ambientes silvestre e urbano.14 Em consonância, é comum ouvir que o A. aegypti é o transmissor do ZIKV. Não obstante, na floresta Zika, a transmissão do ZIKV por Aedes africanus foi confirmada;13 na epidemia de Yap, na Micronésia, 2007, não havia A. aegypti e sim Aedes hensilli;6 e na Polinésia Francesa, a transmissão do ZIKV, muito provavelmente, foi carreada por Aedes polynesiensis.15
II.
A segunda linha de reflexão relaciona-se a outro "surto", este deflagrado em paralelo: a epidemia da informação - e da desinformação. Quantas pessoas, de fato, estão infectadas pelo ZIKV? e pelo vírus CKG? Lembre-se que só recentemente o Ministério da Saúde incluiu manifestações decorrentes do ZIKV na Lista Nacional de Notificação Compulsória.16 Além disso, há significativa sobreposição dos sintomas causados pelo ZIKV com os de DENV, com outras doenças exantemáticas, e mesmo com CKG. Some-se a isso limitações de diagnóstico específico para Zika. Em resumo, o que se alastrou extremamente rápido? a epidemia do ZIKV ou a quantidade de pessoas que acreditam ter contraído o ZIKV?
III.
A terceira argumentação, alvo de considerável polêmica, encontra-se na possibilidade de a transmissão do ZIKV ocorrer por vias alternativas à transmissão vetorial. Trata-se de um fato incomum para o caso dos flavivírus, de forma geral. Porém, há relatos de suspeitas de transmissão sexual do ZIKV desde 2008.17 A hipótese viu-se reforçada em 2013, quando da detecção de partículas virais ativas no sêmen de um homem no Tahiti.18 Mais recentemente, surgiram outras evidências nesse sentido: detecção de partículas virais ativas, em quantidade elevada, na urina e na saliva de pacientes com sintomas de fase aguda de infecção pelo ZIKV no Rio de Janeiro.19 Simultaneamente, novas notícias de potencial transmissão sexual do vírus começam a surgir, como a suspeita de 14 casos entre norte-americanos20 e de um caso na França.21
Qual a real gravidade da situação?
A ausência de sorologia específica para o ZIKV, acessível em larga escala e que permita quantificar o universo de pessoas acometidas, ainda representa um gargalo para o entendimento da epidemiologia desse agravo. As epidemias anteriores do ZIKV atingiram populações incomparavelmente menores que a do Brasil: primeiramente em Yap, na Micronésia, e depois, na Polinésia Francesa, onde 11% da população (28 mil pessoas) precisaram de cuidados médicos.15 Considerando-se os 80% de assintomáticos, quase se pode afirmar que a epidemia de Zika atingiu praticamente toda a população daquele país, sugerindo que, possivelmente, a infecção pelo vírus não seja tão branda quanto se pensava inicialmente; por sua vez, o fato corrobora o questionamento sobre as vias alternativas de transmissão.
Para responder à pergunta mais óbvia - O ZIKV está se modificando desde seu primeiro isolamento em 1947? -, muitos virologistas têm trabalhado ativamente. Sabe-se que o ZIKV relaciona-se menos com o DENV e mais com outros flavivírus, capazes de acometer o sistema neurológico - a exemplo dos vírus da encefalite de Saint Louis, da encefalite japonesa e da febre do Oeste do Nilo.13,22
Ademais, sobram muitas outras perguntas sem resposta. Como o vírus atravessa a barreira placentária? Com que frequência? Para que atinja o sistema nervoso (de fetos e adultos), as mesmas questões se colocam. Complicações neurológicas, como a síndrome de Guillain-Barré, de origem autoimune, e outras mais recentemente relatadas, dependem da quantidade de partículas infectantes do vírus? A quantidade dessas partículas teria alguma relação com vias alternativas de transmissão? Qual a importância relativa dessas vias na transmissão? O que significam as manifestações múltiplas do ZIKV, com intervalos de semanas, relatadas na literatura acadêmica e, mais recentemente, pela mídia?
Em países com histórico de dengue, onde circulam vários sorotipos do vírus, manifestações graves, por vezes associadas a infecções secundárias, têm sido relacionadas à presença de anticorpos incapazes de neutralizar o vírus - no caso, o DENV. Esse mecanismo também poderia atuar em pessoas infectadas pelo ZIKV que tenham contraído DENV previamente? Que efeito poder-se-ia esperar de uma vacina para DENV que não levasse em conta a circulação do ZIKV?
A epidemia e a mídia: parceria ou conflito?
Desde os anos 1980, o tema da dengue é frequente na mídia brasileira, com espaço garantido nas manchetes a cada emergência sazonal da doença, normalmente a cada ano. Dada a presente situação envolvendo o ZIKV, as atenções se voltam para essa nova preocupação - exacerbando o que há de bom e de nocivo na comunicação sobre a saúde. Qual a real gravidade da doença? Por que a febre Zika tem recebido tanto destaque na mídia e nas redes sociais? Quais os interesses envolvidos?
Algumas velhas questões de desinformação voltaram à tona. Por exemplo, a cobrança pelo uso de inseticidas no controle do vetor, uma estratégia que já se sabe - de longa data -, apresenta limitações importantes. Se, no caso da dengue, tem-se observado a especulação da mídia na busca por soluções "mágicas" praticamente todo ano, essa cobrança foi muito acentuada no caso do vírus Zika, na maioria das vezes favorecendo interesses comerciais. A caça a culpados, tão comum nas coberturas anteriores sobre a dengue, também foi retomada. Entretanto, jornalistas decididos a investigar a grande onda de boatos que ganhou espaço nas mídias sociais, tiveram papel fundamental em desmenti-los, e esclarecer equívocos. Desafios adicionais têm surgido, na medida em que o problema ganha dimensão e interesse global. Tem-se notado, porém, uma cobertura internacional do tema que enfatiza, majoritariamente, a polêmica e a busca por culpados, traduzindo uma postura que beira o imperialismo e o colonialismo.
Qual seria o papel da mídia, neste momento? Até que ponto ela é capaz de contribuir para o avanço - ou retrocesso - da responsabilidade social, que já desperta entre os cidadãos? A resposta a esta pergunta tem muito a dizer sobre os próximos passos do vírus no país.
As três questões apresentadas neste artigo - I, II e III - reforçam que o vírus Zika deixa muitas perguntas em aberto, para as mais diversas frentes de ação.
Nesse cenário de incertezas, a sociedade pode se encontrar com a oportunidade de repensar sua relação com o meio ambiente, os espaços que ocupa e transforma e seus modos de vida, seja na perspectiva individual, seja no âmbito coletivo e da esfera pública.