Introdução
A hantavirose é uma zoonose viral aguda, causada por vírus da família Bunyaviridae, gênero Hantavirus, transmitido aos seres humanos por meio de secreções de roedores ou marsupiais. A doença pode cursar com duas formas clínicas: a febre hemorrágica com síndrome renal (FHR), conhecida desde 1930 e endêmica na Europa e na Ásia; e a síndrome cardiopulmonar por hantavírus (SCPH), descrita pela primeira vez nos Estados Unidos em 1993 e restrita às Américas, que associa choque cardiogênico e acometimento vascular, acompanhados por pneumopatia grave.1,2
A hantavirose foi descrita pela primeira vez no Brasil em novembro de 1993, no município de Juquitiba, São Paulo, com o primeiro caso da síndrome cardiopulmonar, e tem sido endêmica no país desde então. O primeiro caso relatado da doença no bioma Cerrado aconteceu em 1996, e o primeiro caso confirmado no estado de Goiás ocorreu no ano 2000.3-7
No Brasil, além dos subtipos Juquitiba e Araraquara, também foram identificados Anajatuba, Castelo dos Sonhos e Laguna Negra, estes associados com algumas espécies de roedores. Três outros subtipos foram considerados não patogênicos, apesar de encontrados em várias espécies de roedores, como o Rio Mearim, o Jaborá e o Rio Mamoré.8
A letalidade por hantavirose é alta e sua gravidade tem sido investigada conforme os diferentes subtipos de vírus.2 Outros fatores, como idade, sexo, resultados laboratoriais e clínicos, ventilação mecânica e características do tratamento podem estar envolvidos no prognóstico. As diferentes taxas de letalidade encontradas no Brasil podem estar relacionadas à variação da virulência do subtipo de hantavírus circulante, bem como às diferentes características genéticas e de imunidade dos pacientes. Além disso, há que se considerar o sistema de vigilância epidemiológica e todo o suporte médico e de assistência aos casos identificados nas diferentes regiões.2 Pacientes com septicemia, dispneia, com necessidade de ventilação mecânica e hemoconcentração, apresentam os piores prognósticos.8,9
Embora as taxas de letalidade sejam altas e sua gravidade reconhecida, ainda são poucos os estudos brasileiros que relacionam a prevalência da hantavirose com sua letalidade.1,8,10-12 Este estudo objetiva descrever o perfil epidemiológico e clínico da hantavirose e analisar os fatores associados à letalidade em Goiás, Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo transversal sobre hantavirose no estado de Goiás, referente ao período de 2007 a 2013, com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
O estado de Goiás é ocupado, em quase sua totalidade, pelo Cerrado, considerado o segundo maior bioma brasileiro. Este é um dos biomas mais ameaçados de extinção no país, em razão da expansão agrícola e do adensamento populacional a partir da década de 1970.13
A escolha do período de 2007 a 2013 foi baseada na necessidade de obter dados padronizados pelo máximo de tempo possível, considerando-se que as fichas de notificação da hantavirose têm recebido alterações ao longo da implantação do sistema de vigilância no Brasil, o que se reflete na composição do banco de dados.14
Foram incluídos todos os casos confirmados no sistema de notificação em Goiás no período estudado, de acordo com a definição de caso nacional.14 O banco de dados foi primeiramente organizado manualmente, verificando-se inconsistências e retirando-se duplicidades. Para a análise, dados em branco ou registrados como ignorados na planilha foram desconsiderados.
Foram utilizadas as variáveis conforme o registro no Sinan ou conforme a necessidade do estudo:
Epidemiológicas: ano de notificação (2007 a 2013), região (Norte, Sul, Centro-Oeste, Sudeste, Sudoeste) e estação do ano (seca - outubro a março; ou chuvosa - abril a setembro).
Sociodemográficas: sexo (masculino e feminino); idade, em anos de vida completos (considerando-se a data de nascimento e a data da notificação); escolaridade (analfabeto, 1ª à 4ª série incompleta do Ensino Fundamental - antigo primário ou 1º grau; 4ª série completa do Ensino Fundamental - antigo primário ou 1º grau; 5ª à 8ª série incompleta do Ensino Fundamental - antigo ginásio ou 1º grau; Ensino Fundamental completo - antigo ginásio ou 1º grau; Ensino Médio incompleto - antigo colegial ou 2º grau; Ensino Médio completo - antigo colegial ou 2º grau; educação superior incompleta; educação superior completa; ignorado); raça (branca, parda, preta, indígena, amarela, ignorado); local de residência (urbana ou rural); tipo de ambiente onde provavelmente ocorreu a infecção (domiciliar, trabalho, lazer, outro, ignorado); e ocupação. A variável ocupação foi registrada na ficha conforme informado e codificada de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), utilizando-se a tabela de códigos para identificação da ocupação dos casos confirmados.15
Clínicas: forma clínica (prodrômica ou inespecífica, síndrome cardiopulmonar por hantavírus); sinais e sintomas (febre, cefaleia, hipotensão, dor torácica, sintomas neurológicos, tosse seca, mialgia generalizada, choque, tontura/vertigem, astenia, dispneia, dor lombar - região dos rins, náuseas/vômito, insuficiência cardíaca, petéquias, insuficiência respiratória aguda, dor abdominal, diarreia, insuficiência renal, outras manifestações hemorrágicas).
Relacionadas ao tratamento: exames laboratoriais (hematócrito >45%, trombocitopenia, linfócitos atípicos, aumento de ureia e creatinina, TGO, TGP, leucopenia, leucocitose, IgM, imuno-histoquímica); hospitalização (sim, não); e suporte terapêutico (respirador mecânico - ventilação mecânica invasiva, drogas vasoativas, medicamentos antivirais, antibióticos, corticoide, pressão positiva contínua nas vias aéreas [CPAP] ou bilevel positive airway pressure [BIPAP] - ventilação mecânica não invasiva).
Evolução do caso: cura; óbito por outra causa; óbito por hantavirose; e ignorado.
A taxa de letalidade foi calculada dividindo-se o número absoluto de óbitos pelo número de casos notificados confirmados da doença, multiplicado por 100. Por se tratar de agravo de baixa frequência, não foram utilizados indicadores de mortalidade com base populacional, para evitar a diluição dos dados.
A análise estatística foi realizada com auxílio do programa IBM(r) SPSS(r) Statistics, versão 20.0. As variáveis categóricas foram apresentadas em números absolutos e proporções e as variáveis quantitativas em valores médios, medianas e desvios-padrão. Foram realizados testes estatísticos para avaliar associações entre variáveis, por meio da aplicação do teste qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher, quando adequados. Foi empregada regressão logística para estimar razão de chances (odds ratio [OR]) e respectivos intervalos de confiança para investigar a associação entre variáveis clínicas e relacionadas ao tratamento com o desfecho óbito entre os casos confirmados. Foram incluídas na análise ajustada as variáveis que apresentaram nível de significância <0,20 na análise bruta. O modelo foi rodado com entrada forçada para evitar o efeito supressor entre variáveis. Para o modelo final, adotou-se nível de significância de 0,05, conforme o teste de qui-quadrado de Wald.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, no dia 9 de julho de 2014: Parecer nº 713.807/2014.
Resultados
No período de 2007 a 2013, foram notificados 1.171 casos suspeitos de hantavirose no estado de Goiás, com média anual de 167,3 notificações (desvio-padrão [DP]±95,7). Do total de casos notificados, foram confirmados 73 (6,2%), com média de 10,4 (DP±5,1) casos por ano. O ano com menor número de casos confirmados foi 2007, com seis casos, e os anos de 2009 e 2011 apresentaram os maiores números, ambos com 14 casos confirmados (Figura 1).
A idade média dos casos confirmados foi 34,9 anos (DP±13,8 anos) para ambos os sexos, 39,0 anos (DP±14,0) para as mulheres e 33,0 anos (DP±13,4) para os homens (p>0,50). Mais da metade dos casos (62/73) tinham menos de 50 anos e eram do sexo masculino (50/73) (Tabela 1). Com relação à escolaridade, a maior frequência foi de casos de hantavirose em indivíduos com Ensino Fundamental ou Médio (19 e 15, respectivamente). A raça parda teve maior frequência (37/73), seguida da raça branca (26/73). Cerca de um terço dos casos (24/73) informaram contato com roedores e os demais negaram ou não sabiam informar, e, do total, 24 casos foram caracterizados como doença do trabalho, porém sem associação estatisticamente significativa (p>0,05). As principais ocupações identificadas foram: trabalhador rural ou agropecuarista (n=4), trabalhador da construção civil (n=5), motorista de caminhão (n=3), e comerciante atacadista (n=3) (Tabela 1).
Houve concentração de notificações nas regiões Central e Sudoeste do estado, com maior número em Goiânia, onde foram notificados 795 casos suspeitos de hantavirose no período e confirmados 32 (4,0%) casos. O segundo município com maior número de casos foi Anápolis, próximo à capital, com 173 casos suspeitos e 14 (8,1%) confirmados (dados não apresentados em tabela).
Não houve associação (p=0,406) entre a frequência de casos confirmados da doença, considerando-se a data da notificação, e a sazonalidade do clima da região ou as estações no bioma Cerrado (seca e chuvosa) (Figura 2).
Em relação aos sinais e sintomas, a febre foi um dos mais frequentes, estando presente em 70 casos (70/73), seguida por dispneia (63/73) e tosse seca (52/73). Além destes, os sinais ou sintomas que ocorreram em mais da metade dos casos foram: IgM positiva (n=57), insuficiência respiratória (n=52), tosse seca (n=52), mialgia (n=51), cefaleia (n=45), náuseas (n=41), dor torácica (n=40) e infiltrado pulmonar difuso (n=40). Insuficiência renal foi diagnosticada em 51 casos e insuficiência respiratória aguda (IRpA) em 53 casos. Entre os casos confirmados, 32 apresentaram hematócrito acima de 45% (Tabela 2).
a) Teste qui-quadrado de Wald.
b) IgM: Imunoglobulina M
c) P-valor significativo (p<0,05).
d) Foi realizada radiografia em 55 pacientes
Foi encontrado infiltrado pulmonar difuso em 40 casos entre aqueles que realizaram a radiografia do tórax (n=55). As análises imuno-histoquímica e também de resultados da série branca e das transaminases hepáticas foram prejudicadas pelo sub-registro, não permitindo identificação dos dados.
Do total de casos confirmados, 68 foram hospitalizados, 60 com diagnóstico de forma clínica SCPH, e 36 tiveram assistência com respirador mecânico. O intervalo médio entre a hospitalização e o óbito foi de 5,8 (DP±17,6) dias. A quase totalidade dos casos teve confirmação diagnóstica por meio laboratorial (dados não apresentados em tabela). Entre as hospitalizações, 39 foram a óbito (Tabela 3).
a) Teste qui-quadrado de Wald.
b) P-valor significativo (p<0,05).
c) Pressão positiva contínua nas vias aéreas [CPAP] ou bilevel positive airway pressure [BiPAP].
A taxa de letalidade em todo o período analisado foi de 57,5% (42/73); o ano de 2013 apresentou a maior taxa (87,5%). Não houve óbito registrado por hantavirose no estado de Goiás no ano de 2007 (Figura 1).
Em todos os municípios onde houve notificação de casos e óbitos, a letalidade foi superior a 50,0% dos casos confirmados. Na capital, Goiânia, a taxa de letalidade foi de 56,3%, superior à de Anápolis, que foi de 50,0%. No município de Jataí, no Sudoeste do estado, que apresentou uma das maiores frequências de hantavirose, a taxa de letalidade foi superior, de 62,5%. Outros municípios, como Campo Alegre de Goiás, Cidade Ocidental, Corumbá de Goiás, Mineiros, Rio Verde e Nerópolis, mesmo com frequência unitária de casos, tiveram alta letalidade (100,0%); em Aparecida de Goiânia, foram confirmados dois casos, e a letalidade também foi de 100% (dados não apresentados em tabela).
A taxa de letalidade foi de 56,3% na região Central e de 62,5% na região Sudoeste do estado, sendo semelhante entre mulheres (60,9%; 14/23) e homens (56,0%; 28/50), e também não houve associação com diferentes faixas etárias (dados não apresentados em tabela).
As variáveis associadas na análise bruta (p<0,05) com morte causada pelo hantavírus foram: IRpA (OR=3,6; IC95%1,2-10,6), não uso do respirador mecânico (OR=3,4; IC95% 1,3-9,1) e hematócrito superior a 45% (OR=3,0; IC95% 1,1;7,9) (Tabela 3).
Entraram no modelo de análise de regressão logística insuficiência respiratória aguda, uso de respirador mecânico, dor lombar, dor torácica, e hemoconcentração. Após ajuste, permaneceu associada às mortes por hantavirose somente a presença de insuficiência respiratória aguda, com a chance de óbito entre pacientes com IRpA aumentada em mais de três vezes (OR=3,4; IC95% 1,0;11,6) (Tabela 3).
Em relação ao suporte terapêutico, 65 pacientes receberam drogas vasoativas, 43 receberam antibióticos, 23 receberam corticoide, e em 6 casos houve a introdução de drogas antivirais. Quanto à ventilação mecânica, observou-se que, além daqueles 36 pacientes submetidos à ventilação mecânica invasiva (respirador mecânico), outros 10 foram submetidos a métodos de ventilação não invasiva, como CPAP e BIPAP (Tabela 3).
Discussão
Cerca de 4 mil casos de hantavirose foram registrados nas Américas desde o relato do primeiro caso em 1993, e na região central do Brasil os subtipos identificados têm sido o Araraquara e o Juquitiba.16,17 O presente estudo revelou que, entre os casos confirmados de hantavirose no estado de Goiás, predominaram homens, jovens e com baixa escolaridade. A taxa de letalidade foi elevada e a presença de insuficiência respiratória foi associada à ocorrência de óbito. A frequência de notificações de casos suspeitos de hantavirose no período estudado (2007-2013) apresentou crescimento ao longo dos anos, sem, contudo, aumentar a proporção de casos confirmados da doença. Para cada caso confirmado, foi realizada notificação de 16 suspeitos.
Estudo realizado em Oklahoma, Estados Unidos, no ano de 2005, procurou correlacionar o número de notificações por SCPH e os casos de morte cuja causa era a insuficiência respiratória aguda, e concluiu que poderia estar havendo uma subnotificação de casos por falha diagnóstica.18
No Brasil, estudo epidemiológico utilizando a base de dados do Sinan, e avaliando retrospectivamente os dados de 2001 até 2011 em todo o país, encontrou o registro de 1.486 casos, com tendência de aumento.16
Pode-se explorar a hipótese de os dados de notificação encontrados neste estudo refletirem o esforço da vigilância epidemiológica no controle da doença, com o evidente estado de alerta demonstrado pelos profissionais ao notificarem os casos. Por outro lado, fica evidenciada a dificuldade de diagnóstico diferencial da hantavirose com outras doenças de origem infecciosa também presentes na região, como leptospirose, influenza, dengue, febre amarela, malária e pneumonias, além de doenças não infecciosas, também comuns no estado, como doença pulmonar obstrutiva crônica, lúpus eritematoso sistêmico e artrite reumatoide.3,19,20
O número de casos confirmados não apresentou crescimento proporcional aos casos informados, ou seja, mais notificações não refletiram em maior número de confirmações.
O total de casos confirmados no período ficou concentrado na região Centro-Sul do estado, destacando-se Anápolis e Jataí como os municípios com maior frequência da doença, depois da capital. Esta região do estado é caracterizada por intensa produção agrícola e pecuária, além de um recente desenvolvimento agroindustrial na produção de grãos.13
No bioma Cerrado, este agravo está presente desde 1996, ou seja, três anos após o primeiro caso nacional ter sido identificado na região Sudeste do país. Em análise de 16 anos (1996 a 2008), considerando-se o bioma Cerrado, a frequência média de casos da doença foi de 26,6 casos por ano, portanto superior ao número relatado neste estudo.19
Os casos em Goiás ocorreram com maior frequência em homens. Alguns estudos relatam maior incidência entre homens jovens, associando o fato com a interação entre ocupação e sexo.10 O perfil dos casos foi semelhante ao encontrado em outros estudos brasileiros e em países das Américas, com predominância de homens jovens, em fase produtiva. Outros trabalhos também relatam maior frequência de casos de SCPH entre indivíduos jovens, com idade inferior a 50 anos. Estudo realizado no Brasil, no período de 1993 a 2006, identificou 855 casos notificados, dos quais a maioria era composta por homens adultos jovens, trabalhadores na zona rural.10 Na Argentina, em no período de 1995 a 2008, os resultados foram semelhantes, evidenciando maior frequência do agravo entre homens adultos jovens trabalhadores, apontando também maior gravidade dos casos entre as mulheres.20,21
Não foi identificada associação com a ocupação ou que pudesse relacionar a doença às atividades laborais. Ressalta-se que o nível de escolaridade identificado foi predominantemente Ensino Fundamental, o que caracteriza, além de população jovem, indivíduos com baixa escolaridade e voltados para ocupações relacionadas com atividades no campo, ou mesmo na cidade, mas que não exijam grande qualificação, como trabalhadores construção civil e motoristas. Estas ocupações favorecem a exposição aos roedores e aumentam a possibilidade de infecção pelo hantavírus.7,21-24
Não foi observada diferença na frequência da hantavirose segundo a cor da pele. A maioria dos estudos relaciona a presença do hantavírus associado com questões sociais, econômicas e ambientais, e não isoladamente com a etnia. Estudo realizado nos Estados Unidos identificou a presença do hantavírus pulmonar, com distribuição de 63% entre caucasianos, 35% americanos nativos e 2% americanos afrodescendentes, porém, sem associação com a incidência da doença.12,25,26
O contato com roedores ou mesmo a exposição em situações de risco, como dormir em barraca, limpeza de casa, moagem de grãos, transporte de carga, desmatamento e turismo rural também foram relatados. Tais situações são comprovadamente associadas ao aumento da probabilidade de infecção pelo hantavírus e não estão relacionadas somente à zona rural, mas também têm sido demonstradas nas periferias das cidades dos países de baixa e média renda, onde o crescimento desordenado da população e a baixa cobertura de saneamento promovem a proliferação dos roedores que invadem os domicílios.15,19,21
A distribuição dos casos não evidenciou sazonalidade da infecção, pois o número de casos não se alterou de modo expressivo em relação aos dois principais períodos climáticos existentes na região - seca e chuva. Esse resultado mostrou-se diferente de outros estudos, que identificaram maior concentração de casos no período de seca, com maior população de roedores no bioma Cerrado; ou, ainda, no bioma Mata Atlântica, onde a maior frequência de registros foi entre os meses de setembro e dezembro.27,28
O número de casos suspeitos tem aumentado em cada ano no estado, sem refletir no aumento do número de casos confirmados, porém com aumento na letalidade. A taxa de letalidade foi superior àquela encontrada em estudo brasileiro realizado no bioma Cerrado e também superior à taxa de letalidade por hantavirose no Brasil no último ano.9,19
O sistema de vigilância epidemiológica deve permitir a identificação precoce dos casos, ainda em fase inicial (prodrômica), bem como intervenção e tratamento eficazes.16 A taxa de letalidade encontrada neste estudo foi maior entre aqueles diagnosticados já na forma clínica grave SCPH, e quase todos os pacientes necessitaram de assistência hospitalar.
A letalidade da hantavirose no Planalto Central e no bioma Cerrado tem se apresentado maior do que em todo o país ou em outros biomas, como a Mata Atlântica.19 A alta letalidade pode estar associada às variantes do hantavírus que apresentam diferentes virulências.18,28 Esta foi uma das limitações do presente estudo, pois não foi realizada a identificação dos diferentes genótipos do agente etiológico.
A hantavirose em Goiás tem sido diagnosticada já em seu estágio avançado (SCPH), quando o comprometimento respiratório é muito frequente. Isso, associado à alta virulência do hantavírus, pode explicar, em parte, as altas taxas de letalidade encontradas. Estudo realizado no Brasil, no período de 1993 a 2007,17 indicou que as duas linhagens principais presentes nas regiões Sudeste, Sul e Planalto Central brasileiro eram Araraquara e Juquitiba, e que os casos fatais de SCPH foram mais frequentes justamente com o vírus Araraquara.12,14,19
Além da virulência do hantavírus e do diagnóstico tardio da hantavirose, cabe relacionar as condições de assistência à saúde em muitos municípios, principalmente naqueles de menor porte e mais afastados dos grandes centros e que não dispõem de unidades para tratamento intensivo dos casos mais graves da doença com comprometimento respiratório. Essas condições associadas podem estar influenciando as altas taxas de letalidade. Houve hospitalização de quase todos os casos confirmados, e a maior parte destes evoluiu para óbito.
As principais manifestações clínicas da hantavirose nas Américas estão relacionadas com comprometimento respiratório, como tosse e dispneia.1 No presente estudo, a IRpA está associada com os casos fatais. Aqueles que tiveram acesso ao tratamento e também foram assistidos no suporte terapêutico por respirador mecânico tiveram quase 30% mais chance de sobreviver. Já o hematócrito (>45%) esteve associado com morte causada por hantavírus.
Na análise de regressão múltipla, a insuficiência respiratória permaneceu associada com o risco de morte de modo independente de outras variáveis, sendo que aqueles que apresentaram IRpA tinham quase quatro vezes mais chances de evolução para óbito. Estudo realizado no Brasil, considerando dados de 1993 até 2006, identificou hemoconcentração como variável independente associada com alto risco de morte, e sugere que esta variável pode ser usada como um marcador para identificar os casos graves de SCPH precocemente, possibilitando o melhor suporte terapêutico.1,9-11
As limitações deste estudo relacionam-se a algumas fragilidades do banco de dados disponibilizado pelo Sinan, que ainda apresenta inconsistências no preenchimento das fichas clínicas, limitando a análise de dados, como início dos sintomas, data da notificação/investigação, tratamento instituído e exames realizados. Além disso, há que se considerar como limitação a possibilidade de subnotificação de casos em decorrência da dificuldade do diagnóstico diferencial do agravo.
Outra limitação foi a ausência de informação de genotipagem do hantavírus envolvido nos casos confirmados, o que pode ser objeto de estudos futuros, permitindo que se conheça a linhagem mais comum do vírus no estado de Goiás.
Os pontos a serem considerados são a ampliação do conhecimento de uma doença emergente, em uma região onde este agravo tem recebido pouca atenção das autoridades sanitárias, e também a identificação de fragilidades no sistema de vigilância epidemiológica, demonstrada pela desproporção crescente entre número de casos suspeitos notificados e número de casos confirmados e o diagnóstico na forma clínica tardia da doença.
Os resultados do estudo possibilitaram traçar perfil epidemiológico e clínico da hantavirose em Goiás, o que pode alertar as autoridades sanitárias para que ações de vigilância sejam priorizadas, principalmente em regiões do estado onde a frequência tem se mostrado mais elevada e se verificam altas taxas de letalidade. Tais informações também podem ser úteis na formulação do raciocínio clínico, fazendo com que os profissionais de saúde sejam capazes de pensar oportunamente nesta hipótese diagnóstica, o que pode favorecer o prognóstico do paciente.