Introdução
As estatísticas vitais são fundamentais para a obtenção do perfil epidemiológico da população e para o planejamento, organização e avaliação das ações e serviços de saúde.1,2 No Brasil, os óbitos são registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM),3 cujo documento-fonte é a Declaração de Óbito (DO), instrumento imprescindível para a construção de indicadores confiáveis e oportunos, também para a elucidação da causa de cada óbito.4
Os procedimentos de verificação de causa de óbito em âmbito mundial apresentam grande variabilidade; entretanto, na maioria dos países desenvolvidos, os óbitos por causa mal definida são investigados da mesma forma que os óbitos por causas não naturais, pela patologia forense.5,6 No Reino Unido e na Austrália, a investigação é realizada pelo médico clínico. Este, quando não consegue definir a causa do óbito ou suspeita de causa externa, encaminha o caso para um serviço forense.5,6 Nos Estados Unidos da América, a investigação do óbito é realizada por médico com especialização em patologia forense.7 Na França e na Alemanha, a maioria das mortes é certificada sem autópsia e, por não haver médicos legistas, as mortes suspeitas são remetidas a inquérito policial com a ajuda de um médico forense; este profissional, entretanto, não é considerado necessário pela sociedade alemã.6
No Brasil, a emissão da DO para mortes por causas naturais compete ao médico assistente ou seu substituto, enquanto para as mortes não naturais, a responsabilidade pela DO cabe ao médico legista do Instituto Médico Legal (IML). Nos casos de óbitos para os quais não se consegue definir a causa mortis ou para aqueles ocorridos sem assistência, o médico patologista do Serviço de Verificação de Óbito (SVO) deve emitir a DO após a autópsia ser autorizada pelo responsável do falecido.8-10 De acordo com as normas do Ministério da Saúde, é atribuição do SVO
[...] promover ações que proporcionem, via autópsia, o esclarecimento da causa mortis de todos os óbitos, com ou sem assistência médica, sem elucidação diagnóstica, e em especial aqueles sob investigação epidemiológica.11
Os procedimentos diagnósticos realizados pelo SVO são tomados como padrão-ouro.10,12
Apesar de o registro das primeiras autópsias realizadas no Brasil ter como cenário Pernambuco no século XVII, foi no começo do século XX que esse estado se responsabilizou pela verificação do óbito, com o apoio da Faculdade de Medicina do Recife. Em 1919, foi criado um quadro de médicos verificadores de óbitos, e em 1933, o primeiro SVO/PE, no Recife - segundo no Brasil, antecedido pelo de Ribeirão Preto, São Paulo.13,14
No ano de 2006, o Ministério da Saúde instituiu a Rede Nacional de SVO para reorganizar os serviços já existentes e incentivar a criação de novos. Essa Rede Nacional incluía 28 serviços, sendo dois em Pernambuco.15 Em 2010, foi constituída a Rede Estadual de SVO/PE.16 Com a Portaria GM/MS no 183, de 30 de janeiro de 2014, ao se regulamentar os incentivos financeiros de custeio à implantação e manutenção de serviços estratégicos de vigilância em saúde, a Rede Nacional do SVO foi ampliada para 52 serviços.11 Em 2015, a contabilidade de SVO habilitados era a seguinte: cinco na região Norte; 13 no Nordeste; 20 no Sudeste; cinco no Sul; e nove no Centro-Oeste.17
Apesar da contribuição histórica dos SVO, a literatura científica tem priorizado a análise da qualidade das autópsias ou o perfil dos óbitos atestados pelos serviços.8-10,12 Considerando-se a inexistência de avaliações da estrutura e do processo de trabalho desenvolvido nos SVO do país, além da carência de análises sobre a contribuição potencial desses serviços para a melhoria das estatísticas vitais e da vigilância epidemiológica, o presente estudo teve como objetivo avaliar a implantação dos Serviços de Verificação de Óbito - SVO - de Pernambuco.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa avaliativa, relacionando o grau de implantação (GI) das ações dos SVO com os efeitos observados.18 Utilizou-se um estudo de caso múltiplo com nível de análise imbricado,19 em que os casos foram os SVO/PE, no ano de 2012.
A Rede Estadual de SVO/PE é composta de dois serviços, o de Recife (porte III) e o de Caruaru (porte II), que realizam o exame anatomopatológico - macroscópico, histopatológico, hematológico, bioquímico, microbiológico e sorológico - e o exame imuno-histoquímico. A diferenciação do serviço de porte III encontra-se no fato de apenas este dispor de espaço para capacitação, realizar exames toxicológicos e manter, no mínimo, um profissional por categoria durante as 24 horas do plantão de atendimento.16
O SVO/Recife, com área de abrangência sobre 69 municípios e o Distrito de Fernando de Noronha, dispõe de 39 funcionários, realizou 7.317 autópsias em 2011 e mantém parceria com a Universidade Federal de Pernambuco. O SVO/Caruaru abrange 87 municípios e conta com 20 funcionários, que realizaram 827 autópsias no mesmo ano de 2011, e mantém parceria com o IML.16
Na primeira etapa do estudo, foi construído o modelo lógico do SVO (Figura 1), baseado nos seguintes documentos normatizadores: Lei nº 6015, de 31/12/2003, que dispõe sobre os registros públicos; Portaria GM/MS nº 1.405, de 29/06/2006, que institui a Rede Nacional de SVO; Portaria Estadual nº 1.405, de 29/06/2006, que institui a Rede Estadual de SVO; Portaria SVS/MS nº 116, de 11/02/2009, que regulamenta a coleta de informação, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos; e o Decreto nº 34.351, de 09/12/2009, que estrutura os órgãos integrantes da Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Também foram consultados experts em Patologia e Serviços de Verificação de Óbito, e observadas as atividades de rotina desenvolvidas nos serviços.
Na segunda etapa do estudo, foi definido um conjunto de indicadores de implantação distribuídos por componentes. Estes componentes foram selecionados por sua relevância e de acordo com sua disponibilidade de dados - via relatórios, registros dos serviços, informações do SIM -, e apresentados na matriz de análise e julgamento (Figura 2), relacionados a três dimensões: estrutura, processo e resultado das ações realizadas nos SVO. Foram adotados parâmetros e conferida pontuação para cada indicador existente em documentos institucionais ou encontrados na literatura, utilizados para a construção do modelo lógico; em sua ausência, esses indicadores foram arbitrados pelos pesquisadores.
Os dados primários foram coletados mediante observação direta e entrevista com aplicação de questionário estruturado (perguntas fechadas), conduzido pelo pesquisador principal junto ao gestor responsável por cada serviço. Esse questionário, elaborado com base nos indicadores representativos de cada componente, constantes na matriz referente à estrutura e ao processo necessários para o desenvolvimento das ações, foi previamente validado. Os dados secundários foram captados do SIM estadual, relatórios institucionais e livros de registro dos serviços.
Os produtos das entrevistas e da observação direta geraram os indicadores, que foram confrontados com o modelo lógico, para definir o GI dos serviços.
A cada um dos cinco componentes do modelo foi atribuído um escore máximo, considerando-se sua relevância na reconstrução do objeto de estudo: Gestão, 30; Coleta de Informação, 10; Diagnóstico Etiológico/Nosológico, 30; Vigilância Epidemiológica, 20; e Ensino e Pesquisa, 10. O GI resultou do somatório dos indicadores de estrutura e processo elencados, sendo classificado da seguinte forma: Implantado (100,0-90,0%); Parcialmente Implantado Avançado (89,9-70,0%); Parcialmente Implantado Incipiente (69,9-60,0%); e Não Implantado (<60,0%).
Após a definição do GI de ambos SVO, por componente e pelo conjunto, os serviços foram relacionados com os indicadores de resultado, confrontados com o modelo elaborado, em um processo reflexivo dedutivo baseado na lógica do serviço.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) - Parecer nº 3446-13, de 13/03/2013 - em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
A Figura 3 apresenta o conjunto dos indicadores das dimensões de estrutura, processo e resultados para cada um dos componentes da intervenção relativos ao SVO/Recife e ao SVO/Caruaru, base para a análise do grau de implantação - GI - e resultados alcançados por esses serviços (Tabela 1).
Nota: Implantado (100,0-90,0); Parcialmente Implantado Avançado (89,9-70,0); Parcialmente Implantado Incipiente (69,9-60,0); e Não Implantado (<60,0).
A Tabela 1 exibe o GI representado pelas dimensões de estrutura e de processo, além de indicadores de resultados. Os dois SVO foram considerados como 'Parcialmente Implantado Avançado', tendo o SVO/Recife alcançado 89,0% e o SVO/Caruaru 82,0% dos valores esperados. Na dimensão de estrutura, os percentuais foram de 98,0% e 94,0%, enquanto na dimensão de processo, de 80,0% e 70,0%, para o SVO/Recife e o SVO/Caruaru, respectivamente.
No SVO/Recife, constatou-se que dos cinco componentes do modelo, três obtiveram o grau 'Implantado': Coleta de Informação, Ensino e Pesquisa e Diagnóstico Nosológico/Etiológico. Os componentes Vigilância Epidemiológica e Gestão foram qualificados como 'Parcialmente Implantado Avançado'. Com relação à dimensão de estrutura, quatro dos cinco componentes obtiveram 100% do valor esperado; apenas a Vigilância Epidemiológica alcançou 85,7%. Na dimensão de processo, os componentes Coleta de Informação e Ensino e Pesquisa alcançaram 100%, enquanto os demais se situaram entre 85,7% e 69,2%.
No SVO/Caruaru, apenas os componentes Coleta de Informação e Diagnóstico Nosológico/Etiológico foram considerados 'Implantado'; os componentes Gestão e Vigilância Epidemiológica foram classificados como 'Parcialmente Implantado Avançado' e 'Parcialmente Implantado Incipiente', respectivamente. O componente Ensino e Pesquisa mostrou-se 'Não Implantado'. Na dimensão de estrutura, o SVO/Caruaru alcançou resultados semelhantes ao do SVO/Recife, diferindo apenas no percentual dos componentes Vigilância Epidemiológica (57,1%) e Ensino e Pesquisa (42,9%). Quanto ao processo, apenas o componente Coleta de Informação alcançou 100%, enquanto nos demais, a amplitude dos percentuais variou de 85,7 a 69,2%; o componente Ensino e Pesquisa não obteve pontuação nessa dimensão.
Entre os indicadores de resultados dispostos, verificou-se coerência com o GI de cada componente, em ambos os serviços (Tabela 1). Quase todos os componentes obtiveram o resultado máximo esperado, exceto os indicadores relacionados com o Ensino e Pesquisa, para o qual o SVO/Recife alcançou 100% do esperado enquanto o SVO/Caruaru não desenvolvia ações relacionadas a esse componente.
Discussão
A despeito de o SVO/Recife existir há mais de oito décadas e ser bem mais antigo que o SVO/Caruaru, a análise do GI mostrou que os dois serviços foram igualmente classificados como 'Parcialmente Implantado Avançado'. Possivelmente, trata-se de um reflexo da recente criação da Rede Estadual de SVO/PE, que adotou a mesma estrutura organizacional nos serviços, sob gestão única.16
Para o componente Ensino e Pesquisa, entretanto, houve diferença expressiva entre os serviços, uma vez que o SVO/Recife, desde sua fundação, funciona em cooperação técnica com instituições públicas de ensino, revelando a influência dessas parcerias, enquanto o SVO/Caruaru não conta com o apoio de universidades e tampouco desenvolve atividades acadêmicas.20-21
O estudo de cadáveres é essencial no processo ensino-aprendizagem, contribuindo para ampliar o conhecimento sobre as doenças humanas por meio dos diagnósticos macroscópicos das autópsias e dos relatórios dos exames histopatológicos, gerando informações precisas sobre a causa de morte.10,21 Ademais, docentes e discentes concordam que a utilização da autópsia no ensino apresenta amplos benefícios potenciais, envolvendo desde a falibilidade médica e questões sobre fase terminal da vida, até as de auditoria.22
No mundo ocidental, a autópsia, tradicionalmente utilizada como uma ferramenta no ensino de graduação em medicina, apresentou grande descenso nas últimas décadas.22 Ao mesmo tempo, as frequências de autópsia nesses países declinaram consistentemente, de forma a atingir uma média de 5% nos anos 2000.23 É possível que a insuficiente valorização da autópsia no ensino e pesquisa tenha contribuído para essa redução, provavelmente porque muitos médicos nunca presenciaram o procedimento, não entendem do que se trata e portanto, não defendem sua utilidade.24 Outras razões para o declínio da autópsia no ensino seriam o aumento da demanda sobre o tempo dos professores e questões variadas, estas relacionadas à legislação de vários países.22
Apesar da diversidade de modelos organizacionais relacionada à verificação da causa de morte nos casos sem elucidação diagnóstica, e da redução do número de autópsias em nível mundial, vários pesquisadores demonstram a supremacia do procedimento na definição da causa do óbito, em virtude das ferramentas de trabalho de médicos forenses serem restritas ao exame médico-legal.23,25,26 As autópsias realizadas pelos médicos patologistas são reconhecidas pela maior precisão diagnóstica, e por fornecerem um bom retrato da qualidade da assistência ao paciente.
Salienta-se, ademais, que a importância da autópsia é maior em áreas com recursos limitados; e mesmo em áreas do mundo com capacidade diagnóstica avançada, sua contribuição para a garantia da qualidade de cuidados médicos continua a ser legitimada como relevante.24,27
No presente estudo, observou-se que a estrutura e o processo dos dois SVO no componente Diagnóstico Nosológico/Etiológico foram considerados 'Implantados', mostrando coerência com os indicadores de resultados estudados. Destaca-se a importância desses serviços em regiões como o Nordeste brasileiro, onde persistem dificuldades de acesso a assistência e diagnóstico em saúde, com repercussões sobre a proporção de óbitos por causas mal definidas. As DO emitidas pelos dois SVO representaram 14,4% dos óbitos de causa de morte natural ocorridos em Pernambuco, no período estudado.
Na Rede Nacional de SVO, existem serviços habilitados em grandes hospitais, experiência referendada como útil e capaz de influenciar a prática clínica, o que reforça a interação entre médicos clínicos e patologistas, além de ser um bom instrumento para o controle de qualidade hospitalar, de medicamentos e do aspecto econômico do serviço.15,23,27 Na Rede Estadual de SVO de Pernambuco não existe serviço habilitado em hospitais, apesar da existência de departamentos de anatomopatologia encarregados da realização de autópsias - restritas aos pacientes falecidos nesses serviços, por causa indeterminada.16
Apesar da contribuição para a melhoria da informação em Saúde Pública, ao agregar dados confiáveis sobre a mortalidade, foram evidenciadas fragilidades no componente Vigilância Epidemiológica, em ambos SVO. O fato de o SVO/Caruaru não dispor de profissional capacitado para a vigilância epidemiológica, a não incorporação dos dois serviços no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e a não produção de informes e boletins, elementos essenciais de informação para a ação em tempo oportuno, foram decisivos para o não alcance do grau de implantação plena.
Não obstante, os resultados foram alcançados em sua totalidade, representados pela proporção de casos de doenças de notificação compulsória, morte materna, infantil e fetal informados para a vigilância epidemiológica oportunamente. Os SVO também contribuíram para o aperfeiçoamento das informações em saúde, ao produzirem laudos conclusivos quanto à causa de morte,10,12,21,28,29 atuando decisivamente como fonte notificadora para doenças emergentes,24 como as causadas pelos vírus ZIKV (febre Zika) e Chikungunya, e reemergentes, como a dengue.
Quanto às atividades relacionadas ao componente Gestão do SVO, apesar de constituírem uma prática antiga no estado de Pernambuco, seu reconhecimento técnico normativo institucional só ocorreu com a publicação da Portaria Estadual instituindo a Rede Estadual de SVO de Pernambuco16 em 2010, posterior à Portaria do Ministério da Saúde de 2006.15
A Gestão tem se mostrado indispensável no sentido de promover o fortalecimento organizacional, facilitar o funcionamento do serviço, minimizar a omissão ou execução parcial das atividades dos SVO.30 Contudo, a inexistência de um sistema de informações que detalhe o processo e o produto do trabalho nos serviços, aliada à pouca ênfase em capacitações, constituíram-se em obstáculos a serem superados para o alcance de um sistema de serviços de saúde mais efetivo.
Entre as dificuldades enfrentadas no desenvolvimento desta análise de implantação, destacam-se a ausência de avaliações sistemáticas sobre o funcionamento dos SVO no Brasil e a imprecisão quanto a suas competências, implicando a adoção de parâmetros baseados na rotina dos serviços. Por conseguinte, é importante a realização de outros estudos, baseados no desenvolvimento de modelos mais integrais de avaliação desses serviços, assim como a validação do modelo aqui proposto em novas pesquisas, para melhor adequação do modelo lógico, dos critérios e indicadores considerados.
Conclui-se que os dois SVO de Pernambuco foram considerados 'Parcialmente Implantado Avançado', segundo os indicadores de resultado aferidos, com as diferenças entre os serviços concentrada nos componentes Vigilância Epidemiológica e Ensino e Pesquisa.
O fortalecimento de serviços modernos de autópsia é um desafio que transcende as responsabilidades individuais, alcançando o interesse público, com objetivos amplos e maior confiabilidade na informação sobre mortalidade, apoio estratégico à vigilância epidemiológica, ao ensino e treinamento profissional na área da Saúde e em pesquisas.