Introdução
Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo como referência o ano de 2013, 1,25 milhões de óbitos ocorriam anualmente, provocados por acidentes de transporte terrestre (ATT). O número de pessoas com lesões não fatais devidas a esses agravos variaria de 20 a 50 milhões por ano, de acordo com dados de 1998 da mesma OMS.1,2
Os ATT comprometem cerca de 1 a 2% do produto interno bruto (PIB) dos países de baixa e média renda, o que corresponde a um custo acima de 100 bilhões de dólares ao ano.2 No ano de 1997, na América Latina, o custo estimado dos ATT foi de US$18,9 bilhões, e de US$453,3 bilhões em todo o mundo.3
Uma revisão de literatura publicada em 1997 descreve que nos países de baixa e média renda, de 30 a 86% das hospitalizações por trauma foram devidas a ATT.4 As vítimas de ATT corresponderam a um percentual de 13 a 31% de todos os atendimentos hospitalares por causas externas, e 48% dos leitos nas enfermarias cirúrgicas. Além disso, esses indivíduos requeriam mais atendimento que os demais pacientes internados por causas externas, nos centros cirúrgicos, nas unidades de terapia intensiva (UTI), nos setores de radiologia e nos serviços de fisioterapia e reabilitação.4
Em 2003, o número de internações por causas externas no Brasil foi 6,2 vezes maior que o número de óbitos por esse mesmo grupo de causas. Ademais, análise dos dados do Departamento Nacional de Trânsito demonstrou que em 2002, em território brasileiro, ocorreram 337.190 acidentes com vítimas, 94,4% delas não fatais. Cada ATT envolveu, em média, 1,5 vítimas, e para cada vítima fatal, ocorreram 17 casos de vítimas não fatais, reforçando que a morbidade por ATT é bem maior que a mortalidade.5
A internação da vítima de ATT retrata a gravidade do evento e constitui parte considerável dos custos decorrentes desse agravo.6 Em geral, os custos em saúde podem ser classificados como diretos, indiretos ou intangíveis. O estudo do custo direto em saúde visa quantificar, em valores monetários, quanto de recursos foi utilizado diretamente no tratamento/intervenção de um paciente, e pode ser subdividido em custos médicos (hospitalizações, medicamentos, honorários etc.) e não médicos (transporte do paciente, alimentação etc.). Os custos indiretos, por sua vez, referem-se à perda do tempo de trabalho do paciente ou de suas famílias como consequência da doença/agravo ou seu tratamento, podendo ser medido, por exemplo, em termos de perda de produtividade.7,8 Os custos intangíveis são mais difíceis de mensurar e dizem respeito ao ganho de saúde, à dor ou sofrimento associado ao tratamento.
A análise de custo em saúde pode variar, a depender do enfoque adotado, como por exemplo, da sociedade, do serviço de saúde, do governo, entre outros. Sob essa perspectiva, descreve-se de onde provêm os custos relevantes baseados no objetivo do estudo.7,8 Mello Jorge e Koizumi referiram que os gastos hospitalares com o atendimento às vítimas de lesões ocasionadas pelo trânsito são muito mais elevados que os de pacientes internados para o tratamento de doenças.9 Entre famílias mais pobres, a perda econômica representada tanto pelos custos médicos diretos quanto indiretos dos ATT é ainda maior, exercendo maior impacto no orçamento familiar.2
Cabe também considerar os custos sociais associados ao uso de veículos automotores relacionados à ocorrência de óbitos e lesões decorrentes de ATT, à poluição atmosférica, ao “efeito barreira” (dificuldade nas relações sociais dos moradores de determinada área, atribuída à circulação de veículos) e ao congestionamento das vias.10
Isso posto, o objetivo deste estudo foi descrever as taxas de internação por ATT no Brasil em 2013, estimar gastos hospitalares e o tempo de permanência das internações por ATT no Sistema Único de Saúde (SUS).
Métodos
Foi realizado um estudo descritivo com dados das internações por ATT registradas no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), disponível publicamente no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus).11
O SIH/SUS, sistema de gerenciamento financeiro do componente hospitalar do SUS, abrange tanto a rede hospitalar própria quanto aquela formada por hospitais privados, conveniados ao setor público.12 O SIH/SUS disponibiliza ao público exclusivamente dados das internações financiadas pelo setor público, de modo que estão ausentes do sistema dados sobre acidentados que não necessitaram de internação e daqueles que dispõem de atendimento privado não contratado pelo SUS ou realizado pelos planos de saúde.13
Para este estudo, foram selecionadas as internações ocorridas no ano de 2013, registradas sob os códigos da 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10)14 representativos dos acidentes de transporte terrestre, quais sejam: categorias V00 a V89 do capítulo XX (Causas externas de morbidade e de mortalidade).
As taxas de internação foram calculadas considerando-se como numerador o número de internações realizadas em 2013, obtido do SIH/SUS, e como denominador, a população estimada para o Brasil e suas grandes regiões geográficas - Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul - no mesmo ano de 2013, estimada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.15 As taxas de internação nas regiões brasileiras foram padronizadas por idade, pelo método direto, tendo como padrão a população brasileira em 2013. O método de padronização por idade tem como objetivo minimizar o efeito - sobre os indicadores - das diferenças na estrutura etária entre as regiões, possibilitando comparações entre elas.
Foram calculadas as taxas de internação segundo sexo (masculino; feminino), faixa etária (em anos: 0 a 9; 10 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 e mais) e tipo de vítima (pedestre; ciclista; motociclista; ocupante de automóvel; ocupante de caminhão; ocupante de ônibus; outros) para o Brasil.
Também foram estimados os gastos do SUS com internações hospitalares decorrentes de ATT (valores em Reais: gasto total, dos serviços hospitalares e dos serviços profissionais, e gasto médio da internação), dias de permanência e permanência média em dias, todos referentes ao ano de 2013.
O software utilizado para as análises foi o Microsoft Excel para Mac 2011, versão 16.6.2.
Por utilizar exclusivamente dados anônimos e disponibilizados publicamente, o projeto do estudo foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa. Foram respeitadas as diretrizes éticas de pesquisa com seres humanos, conforme recomenda a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
No Brasil, em 2013, houve 170.805 internações decorrentes de ATT registradas no SIH/SUS, representando uma taxa de 85,0 internações por 100 mil habitantes. As maiores taxas de internação por ATT foram observadas em indivíduos do sexo masculino (134,5 internações por 100 mil homens) e na faixa etária de 20 a 39 anos (123,9 internações por 100 mil hab. dessa idade). Mais da metade das internações por ATT foram de motociclistas (51,9%; 44,1 internações por 100 mil hab.), seguidos por pedestres (25,8%; 21,9 internações por 100 mil hab.) (Tabela 1).
As mais altas taxas brutas e padronizadas de internação por ATT (ambas por 100 mil hab.) referiram-se às regiões Centro-Oeste (respectivamente, 98,0 e 96,6) e Nordeste (respectivamente, 89,1 e 90,2) (Tabela 2).
Os gastos totais com internações hospitalares decorrentes de ATT em 2013, no âmbito do Sistema Único de Saúde, foram de R$231.469.333,13, dos quais R$188.025.095,94 corresponderam a gastos com serviços hospitalares e R$43.361.377,01 com serviços profissionais. O valor médio de internação por ATT no período estudado foi de R$1.355,17. Entre as vítimas internadas, foram contabilizados, em total, 1.072.557 dias de permanência nos hospitais, com uma permanência média de 6,3 dias de internação por paciente (Tabela 3).
Os motociclistas foram as vítimas com maior tempo de permanência hospitalar (546.024 dias) e gasto total mais elevado (R$114.810.444,93). Entretanto, o maior valor médio de internação foi representado pelos ocupantes de caminhão (R$1.902,79), que também responderam pelo maior tempo médio de permanência hospitalar (7,2 dias), seguidos pelos pedestres (6,8 dias) (Tabela 3).
Discussão
Entre as vítimas de ATT internadas em hospitais públicos ou conveniados ao SUS, predominaram indivíduos do sexo masculino, adultos jovens e motociclistas, residentes nas regiões Centro-Oeste e Nordeste do Brasil. O gasto total das internações por ATT ultrapassou os R$230 milhões, e o tempo de permanência médio de cada vítima de ATT na internação foi de quase uma semana.
Os principais determinantes da internação por ATT são: ser do sexo masculino; ser pedestre, ciclista e motociclistas; encontrar-se na faixa etária acima dos 50 anos; acidente envolvendo colisão com transporte pesado ou ônibus; e ocorrência do evento em horários da madrugada ou do turno vespertino.6,16-18 A literatura apresenta o sexo masculino e a faixa etária dos 20 aos 39 anos como grupos mais vulneráveis aos ATT.2,6,17-19
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE em 2008, 2,5% dos brasileiros (aproximadamente 4,8 milhões de pessoas) relataram envolvimento em ATT nos 12 meses anteriores à pesquisa, sendo que os homens tiveram 2,3 vezes mais envolvimento nesse tipo de acidente que as mulheres, além de ter sido observada maior frequência de ATT entre os indivíduos nas faixas etárias de 18 a 24 e de 25 a 34 anos.20
Uma das prováveis explicações desse achado é o fato de, culturalmente, o homem expor-se mais a situações de perigo, como consumo de álcool e condução de veículo automotor. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), representativa dos adultos brasileiros, e do sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), representativo dos adultos residentes nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal, apontaram que tanto a atitude de dirigir veículo após consumo de bebida alcoólica (29,3% [Vigitel]; 24,4% [PNS]) quanto o hábito de beber e dirigir (9,4% [Vigitel]; 7,4% [PNS]) foram maiores no sexo masculino.21
Em 2005, foram registradas no SIH/SUS 118.122 internações em decorrência de ATT, correspondendo a uma taxa de internação de 64,1 internações por 100 mil habitantes.19 No ano de 2012, houve 159.251 internações por ATT, com uma taxa de internação de 82,0 internados por 100 mil habitantes.15 De acordo com dados do Inquérito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) realizado em serviços de urgência e emergência de 11 municípios brasileiros no período de setembro e outubro de 2011, os ATT foram responsáveis por 4.413 atendimentos, dos quais cerca de ¼ evoluiu para internação hospitalar de emergência nas primeiras 24 horas.17
Uma análise sobre a tendência das internações decorrentes de ATT entre 2002 e 2012 demonstrou aumento dessas taxas, com maior incremento (250%) nas internações de motociclistas: 1,2 internações por 10 mil habitantes em 2002 e 4,2 internações por 10 mil habitantes em 2012.16
Segundo o presente estudo, as maiores taxas de internação foram observadas nas regiões Centro-Oeste e Nordeste. O Centro-Oeste brasileiro apresentou a maior proporção de pessoas envolvidas em ATT (3,3%) no ano de 2008, segundo a PNAD, enquanto o Nordeste revelou os menores percentuais (1,9%).20 Em 2012, a taxa bruta de internação por ATT no Centro-Oeste foi a maior do país (10,0 internações por 10 mil hab.), seguida pela taxa correspondente ao Sudeste (8,7 internações por 10 mil hab.).16
A região Centro-Oeste também apresentou a maior taxa de mortalidade por ATT em 2011 (30,8 óbitos por 100 mil hab.). As altas taxas de internação no Centro-Oeste e no Nordeste, possivelmente, devem-se ao consumo de álcool e condução de veículo automotor, e baixo uso de equipamentos de segurança.21,22 Outra possível justificativa para as diferenças regionais encontradas foi a implantação da legislação de trânsito na região Sudeste anteriormente ao Código de Trânsito Brasileiro, além da fiscalização mais eficaz e do maior uso de estratégias de controle de velocidade.23
A primeira estimativa sobre os gastos hospitalares do Sistema Único de Saúde por causas externas foi realizada em 1994, quando foi demonstrado um gasto de R$23.923.861,94 com internações devidas a causas externas apenas no mês de novembro daquele ano.24 No período de 1998 a 2006, considerando-se apenas os ATT que envolveram motociclistas, esse custo foi de R$5,3 bilhões, ou R$1.400,00 por moto em circulação.10
Os gastos hospitalares superaram os R$230 bilhões no ano de 2013, com o maior percentual composto por gastos relativos aos serviços hospitalares, sendo que o valor médio da internação foi superior a R$1.300,00 e a média de permanência do paciente na internação próxima a uma semana. Em 2012, foram gastos R$193.328.361,76 em internações de vítimas de ATT atendidas pelo SUS, e o tempo médio de duração dessas internações variou de 4,8 (ciclistas) a 9,7 (pedestres) dias, a depender do tipo de vítima.16 Certamente, os fatores que influenciam tanto no tempo de permanência quanto nos gastos hospitalares das internações por ATT incluem a gravidade do trauma, necessidade de equipamentos de suporte vital e estadia em unidade de terapia intensiva.
Como limitação do presente estudo, destaca-se que os dados referem-se tão somente às internações financiadas pelo Sistema Único de Saúde. Entretanto, o SIH/SUS contempla cerca de 70% das internações realizadas no país e representa a melhor fonte de dados disponíveis sobre ATT.25-28 Tampouco foram avaliados os custos sociais das internações por ATT, seu impacto para os indivíduos acidentados, suas famílias e a sociedade. Outra limitação desta pesquisa encontra-se na possibilidade de os gastos com internação estarem subestimados, pois existe financiamento complementar aos valores da tabela do SIH/SUS destinados a esses serviços:29 os estados e os municípios podem efetuar os pagamentos desses atendimentos, de modo que ultrapassem os valores presentes na tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde, pagos diretamente pelo governo federal.
Uma revisão de literatura que contempla o período de 1998 a 2010 descreve como preocupante a situação brasileira em relação aos ATT, principalmente no que se refere ao aumento do número absoluto de mortos e das taxas de mortalidade, ampliação da frota de motocicletas e atuação do binômio ‘álcool e condução de veículo’. As medidas adotadas pelo poder público para lidar com a questão dos ATT têm sido incipientes e insuficientes.23
Tanto o efeito das medidas legais no comportamento da população quanto o Projeto Vida no Trânsito são ações pontuais que, somadas a outros fatores como a obrigatoriedade da indicação de localização de radares, a redução das penalidades e a não realização de programas de educação para o trânsito, atuam como determinantes negativos para o não alcance das metas de um modo sustentável ao longo do tempo como proposto pelo Plano Global de Segurança Viária sobre redução do número de ATT.23
As internações decorrentes de ATT, principalmente na população jovem e economicamente ativa, têm um impacto enorme na sociedade e justificam intervenções imediatas. Mais além das medidas adotadas pelo setor Saúde, rompendo com a centralização de ações preventivas dirigidas à figura da vítima, para o enfrentamento da morbimortalidade por ATT é necessário que ações intersetoriais e pluri-institucionais tornem-se parte dos planos de governo.26
A magnitude das internações decorrentes de acidente de transporte terrestre foi elevada em 2013, demonstrando gastos expressivos. Por afetarem predominantemente homens e jovens, essas internações indicam um significativo impacto social e econômico, de avanço em gastos sobre o orçamento familiar e relativos à Previdência Social. O Brasil tem um largo e desafiador caminho a percorrer, para a reversão desse cenário.