Introdução
No mundo, a população idosa é crescente. Conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2009, havia 865 milhões de idosos (65 ou mais anos) no mundo, o que correspondia a 12,3% da população. No Brasil, naquele mesmo ano, eram cerca de 21 milhões de pessoas com 60 ou mais anos de idade, o que representava 11,3% da população geral.1 Tem-se observado, a partir da década de 2000, alargamento do topo da pirâmide etária, com destaque para o crescimento da participação relativa da população na idade de 65 ou mais anos: de 4,8% em 1991, passou para 5,9% em 2000 e alcançou 7,4% da população brasileira total em 2010.2
Com o aumento da expectativa de vida e o controle da natalidade, o envelhecimento populacional tornou-se fato, trazendo consigo maior prevalência de doenças crônico-degenerativas, entre elas os transtornos mentais e comportamentais.3 Segundo a Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), transtorno indica ‘um conjunto reconhecível de sintomas ou comportamentos clinicamente associado a sofrimento e interferência com as funções pessoais’.
De acordo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2011, a prevalência dos transtornos mentais na população mundial encontrava-se em torno de 10%, excedendo 25% ao considerar episódios durante todo o curso da vida.4 Em 2015, 20,0% dos indivíduos com 60 ou mais anos de idade sofriam de alguma doença mental ou neurológica, estando a demência e a depressão entre os transtornos neuropsiquiátricos mais frequentes.5
No Brasil, estudo realizado em São Paulo-SP no ano de 2013 identificou prevalência de 29,7% de transtorno mental comum entre os idosos.6 Segundo outro estudo, este realizado em dois hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) na mesma cidade de São Paulo-SP, em 2011, os transtornos mentais e comportamentais totalizavam 40,3% das internações, sendo a primeira causa de internação de idosos no hospital geriátrico e a sétima causa no hospital universitário.7
Idosos são mais vulneráveis a desenvolver transtornos mentais, devido a diversos motivos. Eles estão mais propensos a experimentar eventos como luto, declínio da condição socioeconômica com a aposentadoria, ou alguma deficiência. Todos esses fatores podem resultar em isolamento, perda de independência, solidão e sofrimento psicológico.5
Na Portaria do Ministério da Saúde MS/GM n° 2528, de 19 de outubro de 2006, que aprovou a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, remete à promoção do envelhecimento ativo e saudável; entre suas diretrizes, está descrita a necessidade de promoção de ações grupais integradoras e inclusivas, com inserção de avaliação, diagnóstico e tratamento da saúde mental da pessoa idosa.8
A ampliação do conhecimento sobre a magnitude dos transtornos mentais e comportamentais na população idosa brasileira é necessária, haja vista e existência de lacunas de estudos, especialmente epidemiológicos, sobre o tema.
Este estudo teve como objetivo descrever a evolução das internações e da mortalidade hospitalar de idosos por transtornos mentais e comportamentais no Brasil, no período de 2008 a 2014.
Métodos
Estudo ecológico, de séries temporais, com dados secundários, obtidos do Sistema de Informações Hospitalares do SUS - SIH/SUS.
O SIH/SUS tem a finalidade de registrar todos os atendimentos provenientes de internações hospitalares financiadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, por meio desse processamento, gerar relatórios para que os gestores possam encaminhar os pagamentos dos estabelecimentos de saúde. Seu documento-fonte é a Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Sua cobertura média, estimada para o período de 2008 a 2014, era de 6%.9
Os dados foram extraídos do sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus), do Ministério da Saúde, no mês de julho de 2015. Foram consideradas as internações de idosos (pessoas com 60 ou mais anos de idade)10 por transtornos mentais e comportamentais (F00-F99), referentes ao capítulo V da CID-10.11 Foram incluídas todas as internações de idosos no Brasil, segundo o local de residência no período de 2008 a 2014 - anos completos disponíveis para acesso.
Calculou-se o coeficiente de internação hospitalar dividindo-se o número de internações de idosos por transtornos mentais e comportamentais pela população de idosos residente no mesmo ano e local, multiplicado por 100 mil. O coeficiente de mortalidade hospitalar foi calculado dividindo-se o número de óbitos hospitalares de idosos por transtornos mentais e comportamentais pelo número de internações desses indivíduos no mesmo ano, multiplicado por 100 mil.
Os dados populacionais foram baseados nos resultados do Censo Demográfico de 2010, disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).2 A população contabilizada pelo Censo foi utilizada como denominador para os anos de 2008 a 2010 da série. Adicionalmente, foram utilizadas estimativas populacionais para os anos de 2011 a 2014.
Os números e coeficientes de internação, assim como os números de óbitos e coeficientes de mortalidade em cada ano do estudo, foram estratificados de acordo as seguintes variáveis:
a) sexo (masculino; feminino);
b) faixa etária, em anos (60-69; 70-79; 80 ou mais);
c) cor da pele ou raça (branca; preta; parda; amarela; indígena; sem informação);
d) macrorregião do país (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; Centro-Oeste); e
e) grupos de diagnósticos conforme o capítulo V da CID-10
- demência (F00-F03)
- transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool (F10)
- transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de outras substâncias psicoativas (F11-F19)
- esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes (F20-F29)
- transtornos do humor [afetivos] (F30-F39)
- transtornos neuróticos, transtornos relacionados com o estresse e transtornos somatoformes
- retardo mental (F70-F79)
- outros transtornos mentais e comportamentais (F04-F09, F50-F69, F80-F99)
Para a análise de tendência temporal, utilizou-se o modelo de regressão de Prais-Winsten, sendo os coeficientes de internação e de mortalidade hospitalar as variáveis preditoras (Y), e o tempo (ano) a variável de desfecho (X). As tendências dos coeficientes de internação e de mortalidade foram interpretadas como crescentes, decrescentes ou estacionárias. Também foram quantificados os coeficientes de variação anual das medidas, e estimados os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).
Utilizou-se das ferramentas desenvolvidas pelo Datasus - TabWin e TabNet - para a tabulação dos dados e análise descritiva, e do programa Microsoft Office Excel 2007 para a construção de gráfico e tabelas, além do software de análise de dados e estatística Stata versão 12.0.
Este estudo foi realizado exclusivamente com dados secundários e agregados, de acesso público e em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme recomenda.
Resultados
Durante o período de 2008 a 2014 foram registradas no SIH/SUS 139.941 internações de idosos por transtornos mentais e comportamentais no Brasil. O coeficiente de internações decresceu de 122,3/100 mil hab. em 2008 para 84,2/100 mil hab. em 2014 (-0,14%; IC95% -0,25;-0,03) (Figura 1 e Tabela 1).
a) Coeficiente de internação hospitalar por 100 mil habitantes
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%
c) Não dispunha de informações suficientes para o cálculo do coeficiente de internação por cor da pele ou raça
Também foi observado decréscimo da variação anual dos coeficientes de internação em quase todas as regiões: Norte (-0,39%; IC95% -0,72;-0,06), Nordeste (-0,20%; IC95% -0,29;-0,12), Sudeste (-0,08%; IC95% -0,15;-0,01) e Centro-Oeste (-0,11%; IC95% -0,16;-0,06); a exceção coube à região Sul, onde a tendência de evolução desse coeficiente mostrou-se estacionária (0,08%; IC95% -0,11;0,27). O Sul também apresentou o coeficiente de internações mais elevado em 2014: 150,7/100 mil hab. (Figura 1 e Tabela 1).
O coeficiente de internação foi mais elevado no sexo masculino, durante todo o período estudado, sendo de 103,5/100 mil hab. para homens e de 68,8/100 mil hab. para mulheres em 2014. Coeficientes de internação mais elevados foram observados para a faixa etária de 60 a 69 anos (107,6/100 mil hab. em 2014). Para ambos os sexos e todas as faixa etárias estudadas, o coeficiente de internação decresceu no período de 2008 a 2014 (Tabela 1).
Observou-se decréscimo no coeficiente de internação total dos grupos de diagnósticos: (-0,14%; IC95% -0,25;-0,03). Observando-se o total das internações no período, predominaram aquelas por esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes (36,9%): o coeficiente de internações por esse grupo de causas correspondeu a 52,00 em 2008 e 28,10 em 2014. Também merecem destaque as internações por transtornos do humor (21,6%; 20,40/100 mil hab. em 2014) e transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool (21,3%; 19,20/100 mil hab. em 2014) (Tabela 2).
a) CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão
b) Coeficiente de internação hospitalar por 100 mil habitantes
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%
O coeficiente de mortalidade hospitalar total de idosos por transtornos mentais e comportamentais foi de 1,73/100 mil hab. em 2008 e de 2,38/100 mil hab. em 2014, com tendência de aumento (8,86%; IC95% 1,42;16,30). No período de 2008 a 2014, esse coeficiente de mortalidade hospitalar foi superior nos idosos do sexo masculino (2,18/100 mil hab.), em relação ao feminino (2,03/100 mil hab.). Coeficientes de mortalidade mais elevados também foram observados na faixa etária de 80 ou mais anos (8,04/100 mil hab.) e entre idosos de cor da pele ou raça preta (3,46/100 mil hab.), seguidos pelos indígenas (3,23/100 mil hab.). Os maiores coeficientes de mortalidade hospitalar de idosos foram observados na região Sudeste: 2,95/100 mil hab. em 2009 e 3,39/100 mil hab. em 2014 (Tabela 3).
a) Coeficiente de mortalidade hospitalar por 100 mil habitantes
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%
c) Observações insuficientes para o cálculo da variação anual e tendências
O principal diagnóstico relacionado à mortalidade hospitalar de idosos internados por transtornos mentais e comportamentais foi demência, presente em 32,3% dos óbitos. O coeficiente de mortalidade hospitalar relacionada a esse diagnóstico elevou-se de 6,94 por 100 mil hab. em 2008 para 13,20 por 100 mil hab. em 2014 (1,04%; IC95% 0,72;1,37) (Tabela 4).
Discussão
Os achados deste estudo apontaram redução no número e coeficiente de internações de idosos por transtornos mentais e comportamentais no Brasil de 2008 a 2014. Esses resultados podem estar relacionados às mudanças ocorridas na atenção à saúde mental no Brasil, a partir da implantação da reforma psiquiátrica brasileira, com a substituição ao modelo tradicional hospitalar pelo modelo psicossocial: o Estado assumiu um papel, no campo assistencial, de orientação para a construção de novas práticas e ressignificação dos serviços em Saúde Mental.12
Mesmo com a redução de internações, identificada nesta pesquisa, os coeficientes de mortalidade por demência e uso de álcool elevaram-se, possivelmente devido a falhas ocorridas no modelo de atenção à saúde mental adotado no país. Entre os desafios da reforma psiquiátrica está a inserção da Saúde Mental na atenção básica, especialmente pelas equipes de Saúde da Família13 que, em determinadas ocasiões, não estão preparadas para atender as demandas de saúde mental da população idosa em seu contexto sociofamiliar e, por conseguinte, podem se ver impedidas de colaborar na redução de morbimortalidade decorrente dos transtornos mentais.
Ressalta-se, também como agravante, o decréscimo na procura por serviços de saúde mental com o passar da idade, para o que afluem vários fatores, entre eles as crenças e atitudes dos idosos diante dos transtornos mentais.14 São questões a considerar e merecer maior atenção de profissionais da Estratégia Saúde da Família, mais próximos desses indivíduos.
A partir da distribuição e coeficientes das internações, evidenciou-se que os idosos internam mais do que as idosas. Este achado é tanto similar ao encontrado em pesquisa realizada sobre registros de um hospital universitário quanto divergente dos registros de um hospital geriátrico, ambos localizados no município de São Paulo-SP e analisados em estudo de 2011.7
Os maiores coeficientes de mortalidade hospitalar foram observadas no sexo masculino e na faixa etária de 80 ou mais anos. Achados similares foram encontrados no mesmo estudo realizado com idosos hospitalizados em São Paulo-SP no ano de 2011, revelando aumento dos coeficientes de mortalidade com a idade, e mais elevados para os homens.7
O maior coeficiente de mortalidade foi observado entre negros (pretos e pardos). Esta evidência sugere a possibilidade de o idoso negro encontrar maior dificuldade de acesso aos serviços da atenção primária à saúde,15 espaços privilegiados para a promoção da saúde mental e prevenção de agravos decorrentes de transtornos mentais nesse segmento etário.
Em estudo sobre acessibilidade de famílias negras à atenção básica, realizado em Salvador-BA no ano de 2012, parte dos indivíduos entrevistados observaram na condição de ‘ser negro e pobre’ um elemento aumentativo de suas dificuldades na relação com os serviços de saúde.16 Destarte, ainda existem vários desafios a superar para que o SUS seja capaz de resolver as demandas atuais da assistência à saúde em todas suas variantes e dimensões. Esta abordagem não envolve apenas o cuidado com a assistência e tratamento da doença, inclui as dimensões da prevenção e da promoção da saúde, essenciais para a população geral e, particularmente, a população negra.17
A região do Brasil com maior coeficiente de mortalidade foi a Sudeste, resultado que pode ter sido influenciado pelo déficit de assistência em Saúde Mental para a população idosa, possivelmente agravado pela escassez de políticas de saúde específicas e de formação profissional voltada para a atenção à saúde mental do idoso.18
No presente estudo, predominaram as hospitalizações por esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes. De acordo a OMS, em 2001, a esquizofrenia liderava mundialmente entre as principais causas de anos de vida vividos com incapacidade, ultrapassando, inclusive, o câncer e as doenças cardiovasculares,4 o que pode justificar o fato de a maior prevalência de hospitalizações por transtornos mentais serem decorrentes da esquizofrenia.
O transtorno que contribuiu para maior número de óbitos foi a demência, quinta causa de hospitalização em uma sequência de sete morbidades psiquiátricas, além de apresentar maior coeficiente de mortalidade hospitalar total e maior elevação no decorrer dos anos estudados.
As síndromes demenciais figuram como importante problema de Saúde Pública devido aos altos custos envolvidos com medicamentos e internações, além de provocarem danos emocionais, físicos, sociais e financeiros para os pacientes, seus familiares e cuidadores. Várias são as implicações da demência na vida do idoso, a exemplo dos eventos adversos relacionados à farmacoterapia das síndromes demenciais, como as interações medicamentosas mediadas pelo uso de hipotensores, mantendo relação indireta com o grau de demência e, consequentemente, com a evolução clínica dos pacientes.19
O expressivo coeficiente de mortalidade relacionado a internações por demência pode ser reduzido a partir de atividades que contribuam para a promoção da saúde mental dos idosos, como foi visto em estudo realizado em Belo Horizonte-MG no ano de 2010. Segundo esse estudo, a prática regular de atividades mentais e físicas foi benéfica ao retardar o declínio cognitivo, reduzindo o risco de demência.20
Ademais, com programas de reabilitação neuropsicológica da memória, que funcionam, simultaneamente, como terapêutica para idosos acometidos por demência e alternativa preventiva contra o declínio cognitivo e a depressão, os pacientes demenciados em estágio inicial ou intermediário tiveram significativa melhora cognitiva. Esses pacientes também apresentaram redução dos indicadores de depressão e melhora do estado de humor.21
No que se refere à ocorrência de transtornos mentais, de modo geral, conforme estudo realizado no Brasil sobre os anos de 2002 a 2011, o valor da internação por transtornos mentais é o mais elevado, sendo a doença mais onerosa para a população idosa.22 Logo, tornam-se relevantes novas agendas políticas e de pesquisa que priorizem o idoso, investindo em intervenções eficazes e efetivas de prevenção à doença e promoção da saúde mental nessa população.23
Ressalva-se que este estudo apresenta limitações. Entre elas, destaca-se o fato de a fonte de dados (SIH/SUS) registrar exclusivamente as internações financiadas pelo SUS, com cobertura estimada em 5,72% para o ano de 2014.8
Não foi possível realizar o cálculo do coeficiente de internação e sua variação média anual, o que contribuiria para a interpretação dos resultados. Apesar de o SIH/SUS apresentar dados sobre cor da pele ou raça, há incompletude de informação/preenchimento dessa variável no documento-fonte do sistema.
Merece destaque, também, a necessidade de cautela na interpretação dos resultados, haja visa a causa da internação não ser necessariamente a causa do óbito, e o número de internações e óbitos não se referir ao número de idosos e sim de atendimentos. Além do que, como o principal foco deste estudo foram as internações e a mortalidade hospitalar, seus resultados não devem ser estendidos à população geral.
Os achados desta investigação abordaram um tema ainda pouco explorado no Brasil e por esse motivo, contribuem para uma maior e melhor compreensão das demandas em saúde mental da pessoa idosa. Entre suas conclusões, evidencia-se a necessidade de mais atenção à promoção da saúde mental no curso da vida, bem como medidas para a prevenção de agravos decorrentes dos transtornos mentais na população idosa.
Sugere-se, assim, a ampliação do acesso aos serviços de saúde mental extra-hospitalar na atenção primária, a exemplo dos que são oferecidos pela Estratégia Saúde da Família e também pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e aos equipamentos de saúde mental essenciais para o acompanhamento de idosos com transtornos mentais graves e persistentes, especialmente aqueles acometidos por esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes.