Introdução
O câncer de mama é um importante problema de Saúde Pública. No Brasil, foram estimados 57.960 casos novos em 2016, que correspondem a cerca de 30% dos cânceres femininos e representam o tipo de câncer mais incidente em mulheres de quase todas as grandes regiões do país: a exceção cabe à região Norte, onde o câncer do colo do útero ocupa a primeira posição.1 Ele é também a causa mais frequente de morte por câncer em mulheres, no Brasil e no mundo. Em 2012, a taxa de mortalidade pela doença no país foi de 12,1 óbitos por 100 mil mulheres.2
As ações de controle do câncer de mama no Brasil vêm sendo progressivamente incorporadas às políticas públicas de saúde desde final dos anos 1980, como uma das diretrizes da atenção integral à saúde da mulher. Em 2005, a Política Nacional de Atenção Oncológica3 - atualizada em 2013, como Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer4 - definiu o controle dos cânceres do colo do útero e de mama como um dos componentes fundamentais dos Planos Municipais e Estaduais de Saúde. O controle do câncer de mama foi posteriormente incorporado ao Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil - 2011 a 2022.5
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),6 há duas estratégias para a detecção precoce do câncer: diagnóstico precoce, ou abordagem ágil e oportuna de pessoas com sinais e sintomas de câncer; e rastreamento, aplicação regular de um teste em pessoas aparentemente saudáveis, pertencentes a uma faixa etária de maior risco para a doença, com o objetivo de identificá-las em fase pré-clínica e reduzir a mortalidade por essa causa.
As recomendações para detecção precoce do câncer de mama no Brasil, atualizadas em 2015, propõem o diagnóstico precoce e também o rastreamento de mulheres na faixa etária de 50 a 69 anos, por meio da mamografia a cada dois anos.7
O monitoramento das ações de detecção precoce do câncer de mama no país tornou-se possível com a criação do Sistema de Informação do Câncer de Mama (Sismama), implantado em 2009. No Sismama são registradas informações sobre mamografias, exames citopatológicos e histopatológicos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil.8
A oferta de mamografias de rastreamento tem crescido nos últimos anos. Segundo dados do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), houve aumento progressivo na realização de mamografias financiadas pelo SUS, de 1.869.285 exames, em 2002, para 4.713.530, em 2014. Contudo, o aumento da utilização não necessariamente garante o alcance dos resultados esperados pelas ações de rastreamento, porque depende da adequação desses exames no que se refere à qualidade, população-alvo e periodicidade de sua realização.9
Indicadores classicamente usados para avaliação de resultado das ações de rastreamento, como tempo de sobrevida e distribuição por estadiamento, estão sujeitos a vieses, como o de tempo de antecipação e a existência de sobrediagnóstico no rastreamento.10 Em função disso, a taxa de mortalidade é a medida mais adequada para a avaliação das ações de rastreamento, embora o impacto só possa ser aferido anos após sua implementação. Além disso outros fatores, como a melhoria de acesso ao diagnóstico precoce de casos sintomáticos e melhorias no tratamento, podem influenciar as taxas de mortalidade e dificultar inferências sobre a relação de causalidade entre as intervenções estudadas e possíveis modificações nessas taxas.11
Tendo em vista a importância da avaliação do processo no planejamento e gestão, o objetivo do presente estudo foi avaliar ações de detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde do Brasil por meio de indicadores de processo.
Métodos
Foi realizado estudo de avaliação de indicadores de processo com dados secundários referentes à produção de exames de mamografia e histopatologia de mama, por biópsia ou peça cirúrgica, financiados pelo SUS nos anos de 2010 e 2011.
Os dados foram extraídos do Sismama, utilizando-se o TabNet disponibilizado no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus). Foram excluídos da análise os exames de mamografia e histopatologia de mama realizados em homens e os classificados pelo Sismama como inconsistentes (registros com informações diferentes das regras definidas pelo sistema). Consideraram-se as variáveis elencadas a seguir:
Mamografias
a) Indicação clínica (de rastreamento, quando realizada em mulheres assintomáticas; e diagnóstica, quando realizada em pacientes com sinais e/ou sintomas de câncer de mama).
b) Faixa etária (em anos: menos de 40; 40 a 49; 50 a 69; e 70 ou mais).
c) Resultados (apresentados nas sete categorias do Breast Imaging Reporting and Data System (BI-RADS®), que classifica os achados radiológicos, segundo o grau de suspeição): 0 (inconclusivo); 1 (sem achados); 2 (achado benigno); 3 (achado provavelmente benigno); 4 (achado suspeito); 5 (achado altamente suspeito); e 6 (achado com diagnóstico de câncer, não tratado).
d) Tempo de realização do exame (intervalo entre a data de solicitação e a data de liberação do laudo pelo prestador de serviço, categorizado em dias: menos de 30; 31 a 60; e acima de 60).
e) Intervalo de tempo entre o exame atual e a última mamografia de rastreamento.
f) Presença de nódulo palpável (maior que 20 milímetros) em mamografias de rastreamento (o ponto de corte de 20mm foi definido por ser um tamanho mais facilmente palpável,12 e pelo objetivo desta análise, qual seja, identificar casos que indicam problemas na investigação diagnóstica de mulheres com sinais e sintomas).
Exames histopatológicos
a) Tipo de diagnóstico (benigno ou maligno).
b) Forma de detecção das lesões suspeitas e das lesões confirmadas como malignas (lesão palpável ou detecção por imagem).
Com relação aos indicadores de processo (alguns utilizados em programas de rastreamento de outros países13), consideraram-se:
1) Proporção de reconvocação por resultados anormais na faixa etária de 50 a 69 anos: proporção de mamografias classificadas como BI-RADS® 0, 4 ou 5, entre todas as mamografias de rastreamento. Foi considerada ‘mamografia de rastreamento inicial’ o exame que informava se a mulher não tinha mamografia anterior, e ‘mamografia subsequente’ quando havia informação sobre a realização prévia desse exame.
2) Estimativa do valor preditivo positivo (VPP) do rastreamento. Este indicador foi estimado de duas formas. Na primeira (VPP1), utilizou-se a razão entre lesões malignas detectadas em casos oriundos do rastreamento mamográfico e o total de mamografias de rastreamento alteradas (BI-RADS® 0, 4 ou 5). Na segunda forma (VPP2), foram incluídos no denominador apenas os casos com recomendação de biópsia (BI-RADS® 4 ou 5). Essas razões devem ser próximas do VPP real, porque se espera de mulheres com alterações no rastreamento que tenham realizado a confirmação diagnóstica no período de dois anos.
3) Razão entre biópsias com diagnóstico de lesões benignas e malignas. Este indicador foi estratificado segundo a procedência do material (biópsia cirúrgica ou punção por agulha grossa).
4) Proporção de mamografias de rastreamento realizadas na faixa etária-alvo: percentual de mamografias de rastreamento realizadas em mulheres na faixa etária recomendada pelo Ministério da Saúde (50 a 69 anos).
5) Proporção de mamografias de rastreamento realizadas na periodicidade bienal: percentual de mamografias de rastreamento em mulheres na faixa etária-alvo cujo intervalo de realização entre os exames foi de dois anos.
6) Proporção de exames histopatológicos de mama, oriundos de biópsia e peças cirúrgicas, realizados em até 30 dias: percentual de exames histopatológicos, independentemente da detecção ter sido ou não por imagem, cujo intervalo de tempo entre a retirada do material para análise e o resultado do exame não ultrapassou 30 dias.
7) Proporção de exames histopatológicos de mama insatisfatórios: percentual de exames histopatológicos insatisfatórios, dentre o total de exames histopatológicos.
8) Proporções de nódulos maiores que 20mm encontrados em mamografias de rastreamento: percentual de mamografias classificadas como de rastreamento em que foram registrados no resultado nódulos com tamanho superior a 20 milímetros.
As análises foram realizadas com o uso do programa Microsoft® Office Excel® versão 5.0.
O estudo recebeu dispensa de análise ética-científica pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva em 21 de janeiro de 2014, em conformidade com as diretrizes da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
Foram avaliados dados referentes a 5.759.503 mamografias e 44.892 exames histopatológicos realizados em 2010 e 2011, no Brasil (Tabela 1). Pelos critérios de exclusão, desconsideraram-se nas análises 153.078 (2,6%) mamografias e 3.167 (6,6%) exames histopatológicos.
a) Foram excluídas 1.355 mamografias, por inconsistências na ferramenta de tabulação (TabNet).
b) Foram excluídos 95.349 exames cuja informação de tempo da mamografia estava em branco ou ignorada.
A distribuição de resultados das mamografias e dos exames histopatológicos de mama por faixas etárias é apresentada na Tabela 1. No período analisado, 96,2% das mamografias tiveram como indicação clínica o rastreamento e 3,8% foram diagnósticas. Entre as mamografias de rastreamento, 51,2% foram realizadas em mulheres na faixa etária recomendada pelo Ministério da Saúde: 50 a 69 anos. Em 53,8%, as mulheres responderam já terem feito mamografia anterior, das quais 44,6% há um ano ou menos (Tabela 1).
A proporção de resultados na categoria BI-RADS® 1 diminuiu com o aumento da idade da mulher, enquanto a frequência das categorias BI-RADS® 2 e 3 aumentou com a faixa etária. As categorias 4 e 5 apresentaram distribuição similar entre as faixas etárias, com aumento apenas entre mulheres de mais de 70 anos (Tabela 1).
Embora 61,7% das mamografias de rastreamento no Brasil tenham o resultado emitido em até 30 dias, na distribuição nacional não houve diferença no tempo de emissão de laudos entre mamografias de rastreamento e diagnóstica.
Entre os exames histopatológicos, 53,3% foram provenientes de lesões palpáveis e 46,7% de achados na imagem mamográfica. O diagnóstico de neoplasia maligna ocorreu em 38,6% dos exames e o percentual de malignidade aumentou com a faixa etária. Esse percentual também foi maior entre os exames cuja lesão foi identificada no exame clínico, sendo a diferença mais expressiva entre mulheres com menos de 40 anos e acima de 70 anos. Na análise dos laudos, 20,2% apresentaram como resultado ‘outras neoplasias malignas’ (sem especificação do tipo histológico do tumor). Entre os exames com resultado maligno, a proporção de exames oriundos de lesões não palpáveis na faixa etária de 50 a 69 anos (50,3%) representou mais que o dobro da encontrada na faixa de 40 a 49 anos (24,5%) (Tabela 1).
Entre as mamografias de rastreamento com informação de nódulo, a proporção de nódulos maiores que 20mm foi de 11,4% no Brasil, com variações entre as Unidades da Federação, sendo o menor percentual encontrado no Rio Grande do Norte (8,1%) e os maiores no Tocantins (20,4%), Acre (20,9%) e Maranhão (21,1%). As regiões Sul e Sudeste apresentaram as menores proporções de nódulos maiores de 20mm em mamografias de rastreamento (Figura 1).
Na Tabela 2 estão apresentados alguns indicadores de processo referentes à produção de exames de mamografia e histopatologia de mama. A proporção de reconvocação por resultados anormais foi de 12,1%, sendo 11,2% para rastreamento inicial e 12,5% para etapas subsequentes do rastreamento. O tempo do resultado do exame histopatológico de mama foi de até 30 dias em 78,2% dos exames registrados no país, e a proporção de mamografias de rastreamento realizadas na periodicidade recomendada foi de 32,2%. O percentual de exames insatisfatórios para análise histopatológica foi de 0,9% (Tabela 2).
A razão entre biópsias com lesões benignas e neoplasias malignas foi de 3,6 nas biópsias cirúrgicas (2,7 para lesões palpáveis e 5,6 para lesões não palpáveis) e de 1,2 nas biópsias por punção com agulha grossa (0,6 para lesões palpáveis e 2,3 para lesões não palpáveis) (Tabela 2).
a) Indicadores calculados para o rastreamento na faixa etária-alvo (50-69 anos)
b) Valor Preditivo Positivo 1 - razão entre lesões malignas detectadas em casos oriundos do rastreamento mamográfico e o total de mamografias de rastreamento alteradas (BI-RADS® 0, 4 ou 5).
c) Valor Preditivo Positivo 2 - razão entre lesões malignas detectadas em casos oriundos do rastreamento mamográfico e o total de mamografias de rastreamento com recomendação de biópsia (BI-RADS® 4 ou 5).
As estimativas de valor preditivo referentes aos exames realizados em mulheres na idade de 50 a 69 anos foram de 1,8 (VPP1) e 16,2 (VPP2) (Tabela 2). Em mulheres com menos de 50 anos, os valores encontrados para o VPP1 e VPP2 foram, respectivamente, de 0,64 e 7,47.
Discussão
A presente avaliação das ações de detecção precoce do câncer de mama mostrou o não seguimento das recomendações do Ministério da Saúde em relação à faixa etária e periodicidade do rastreamento, e possíveis erros no registro das informações, o que dificulta o monitoramento das ações e o alcance do objetivo de impacto na mortalidade por essa doença.
Entre as mamografias de rastreamento, foram detectados mais de 10% de nódulos maiores de 20mm, o que pode indicar: (i) dificuldades de acesso aos serviços de saúde; (ii) baixa conscientização e/ou despreparo do médico para detectar alterações clínicas suspeitas; e (iii) falta de informação das mulheres sobre sinais de alerta para o câncer de mama. Cabe ressaltar que o ponto de corte utilizado para classificar tumores como palpáveis foi conservador, considerando-se que Skinner et al. identificaram um tamanho médio de tumores T1 palpáveis de 14mm.12
A predominância da periodicidade de um ano ou menos no intervalo entre as mamografias contraria as melhores evidências científicas disponíveis, de que a periodicidade bienal preserva quase todo o benefício do rastreamento anual, diminuindo os riscos quase pela metade.14 A elevada proporção de intervalo anual encontrada neste estudo não pode ser justificada pela ocorrência de categoria BI-RADS 3®, em que se recomenda repetição em menos de um ano para controle radiológico,15 uma vez que a proporção de resultados nessa categoria foi de apenas 2,7%.
A expressiva oferta de mamografias de rastreamento na população feminina abaixo dos 50 anos de idade (42,8%) mostra que é frequente a não adesão à recomendação de faixa etária preconizada.
A tendência observada nos resultados BI-RADS® foi semelhante à encontrada no estudo de Azevedo e Silva et al.,16 no qual a frequência de categoria 1 é maior em mulheres mais jovens, enquanto as categorias 2 e 3 aumentam em mulheres mais velhas. Ainda segundo o estudo referido, as categorias 4 e 5 também foram mais frequentes em mulheres com 70 anos ou mais.16
Verificou-se que em exames histopatológicos provenientes de lesões não palpáveis, a proporção de câncer detectado na faixa etária de 50 a 69 anos foi, aproximadamente, 40% maior que na faixa etária de 40 a 49 anos, o que deve ser explicado pela menor prevalência desse câncer e pior acuidade da mamografia nesta última faixa etária.
Segundo a United States Preventive Services Task Force (USPSTF), um painel independente de especialistas em cuidados primários e prevenção que, sistematicamente, revisa a evidência de eficácia e elabora recomendações para os serviços clínicos preventivos, ainda existem lacunas importantes nas evidências científicas sobre o benefício do rastreamento mamográfico na faixa etária dos 40 a 49 anos. Entretanto, há evidências de que o balanço entre possíveis benefícios e danos seja mais desfavorável do que o observado entre 50 e 69 anos.17
As evidências são também insuficientes para mulheres com mais de 70 anos, entre as quais há um maior risco de sobrediagnóstico e sobretratamento em virtude das causas competitivas de mortalidade e da existência de cânceres de evolução lenta que não se manifestariam ao longo da vida.17 Esses riscos são potencialmente agravados na realidade brasileira, cuja esperança de vida é menor do que a de países com programas organizados de rastreamento,18 sendo maior o risco de morte por outras causas antes do aparecimento e evolução de um câncer de mama.
As diferenças epidemiológicas existentes entre o Brasil e os países onde foram realizados os ensaios clínicos de rastreamento mamográfico, provavelmente, acentuam também os riscos e malefícios associados à ocorrência de falso-positivos, considerando-se que o valor preditivo de exames de rastreamento é influenciado pela prevalência da doença em determinada população.19
Até o presente momento, não foram encontrados estudos sobre a eficácia do rastreamento mamográfico do câncer de mama em regiões de baixa incidência. Nessas regiões, o balanço entre riscos e benefícios é mais desfavorável do que naquelas com elevada incidência. Nesses casos, ações de diagnóstico precoce podem ser uma estratégia mais efetiva e menos danosa do que o desenvolvimento de ações de rastreamento.20 A elevada proporção de lesões com mais de 20mm em estados da região Norte, possivelmente, justifica a intensificação das estratégias de diagnóstico precoce. A maioria dos casos confirmados de câncer de mama foi diagnosticada a partir de lesões palpáveis ou sintomáticas. O mesmo foi observado em países com programas de rastreamento organizado e grande cobertura de rastreamento mamográfico, como o Reino Unido, onde, após quase 20 anos da implantação do programa nacional de rastreamento populacional, essa proporção era alta (46%), contrariando o senso comum.21
Uma revisão sistemática dos achados de todos os estudos publicados nas bases MEDLINE e Embase ao longo do século XX, demonstrou que atrasos de mais de três meses entre o começo dos sintomas e o início do tratamento diminuem, significativamente, a sobrevida em cinco anos.22 Na organização da rede assistencial, a realização de mamografias diagnósticas deve ser priorizada por estas estarem associadas a sinais clínicos da doença, que demandam diagnóstico diferencial e tratamento oportuno dos casos necessários. Não foi observado um padrão de priorização da emissão de laudos de mamografias diagnósticas no país, e, em muitas unidades da federação, o percentual de mamografias de rastreamento com resultado em 30 dias ou menos é maior entre as mamografias de rastreamento, o que pode retardar a investigação diagnóstica das mulheres sintomáticas.
A proporção de exames classificados como BI-RADS® 0 ficou um pouco acima da proporção correspondente ao programa de rastreamento canadense, esta de 10%.23 É necessária uma análise nas unidades da federação, municípios e principalmente nos serviços de radiologia, para identificar necessidades de qualificação dos profissionais responsáveis pelos laudos da mamografia e pela solicitação, em função das inadequações apontadas.
A proporção de reconvocação por resultados anormais para o rastreamento subsequente na população de 50-69 anos foi consideravelmente maior do que o parâmetro estabelecido para abnormal call rate em programas de rastreamento (<5%).24 Ainda que não seja possível essa comparação direta, em virtude das características diferentes do rastreamento mamográfico no Brasil e em países desenvolvidos, esse dado chama a atenção por, talvez, indicar possíveis problemas de qualidade das mamografias de rastreamento, associados à qualidade das imagens e/ou dos laudos.
A razão entre lesões malignas detectadas no rastreamento mamográfico e o total de mamografias de rastreamento alteradas (VPP1) foi utilizada como proxy do valor preditivo positivo das mamografias de rastreamento e apresentou valor bastante inferior aos padrões encontrados na literatura (5 a 10 para cada 100),25 assim como foi menor a razão entre lesões malignas e o total de mamografias de rastreamento com indicação de biópsia (VPP2) (25 a 40%).25 A faixa etária abaixo de 50 anos apresentou valores ainda menores para os dois indicadores. Esses achados também não são comparáveis de forma direta mas podem sinalizar a existência de problemas na qualidade dos exames de rastreamento ou de confirmação diagnóstica. No Brasil, a grande proporção de rastreamento em mulheres com menos de 50 anos, faixa etária em que a prevalência do câncer de mama é mais baixa, e a baixa incidência da doença em grandes regiões do país podem influenciar desfavoravelmente os resultados.
A razão entre lesões benignas e neoplasias malignas em biópsias cirúrgicas de lesões palpáveis foi mais de três vezes superior ao padrão adotado internacionalmente (≤2).23 Esse indicador, em conjunto com o valor preditivo positivo, parece sugerir a existência de um número excessivamente elevado de resultados falso-positivos no rastreamento. Isto implica a realização de procedimentos cirúrgicos desnecessários e possíveis complicações decorrentes, além dos impactos psicológicos frente à possibilidade do diagnóstico de câncer. Eis um achado importante, considerando-se que o número previsto de resultados falso-positivos no rastreamento do câncer de mama já é considerado elevado.26 Soma-se a isso o grande número de exames histopatológicos de câncer de mama classificados como ‘outros’, sinalizando problemas de qualidade do exame histopatológico ou de registro da informação no sistema.
O presente estudo apresenta algumas limitações, inerentes ao uso de dados secundários, tais como: (i) desatualização da base de dados de alguns estados e consequente diferença entre a base nacional do Sismama e a base de dados de faturamento desses exames; (ii) falta da informação sobre a indicação clínica da mamografia anterior no campo ‘periodicidade da mamografia’; e o fato de (iii) a unidade de registro ser de exames e não de mulheres, dificultando a análise conjunta de mamografias e histopatológicos em nível individual sem que sejam usados métodos de relacionamento probabilístico.16
Ademais, existe a possibilidade da ocorrência de falhas no preenchimento da indicação clínica, dada a maior simplicidade do formulário para exames de rastreamento e o financiamento diferenciado desses exames.
A comparação dos indicadores aqui apresentados com os de programas de rastreamento organizados em outros países deve ser vista com cautela, pela característica oportunística do rastreamento do câncer de mama no Brasil.8
A avaliação dos indicadores mostrou que grande parte das ações de rastreamento tem sido ofertada em desacordo com as recomendações do Ministério da Saúde, o que pode comprometer seus resultados e o impacto esperado, além de aumentar os riscos aos quais as mulheres são submetidas. Outrossim, os resultados deste trabalho sugerem que ainda há uma parcela significativa de mulheres que apresentam lesões palpáveis, cabendo o aperfeiçoamento de estratégias de diagnóstico precoce para que a investigação diagnóstica seja realizada em tempo oportuno, otimizando as chances de tratamento e redução da mortalidade por câncer de mama.
Espera-se que o presente estudo contribua para estimular a cultura de avaliação e planejamento das políticas de saúde e reforce a importância da progressiva qualificação do Sistema de Informação do Câncer de Mama como recurso para o aprimoramento das ações de detecção precoce do câncer de mama no Brasil.