Introdução
Mudanças climáticas induzidas pelas atividades humanas podem influenciar o surgimento ou ressurgimento de muitas doenças transmissíveis, como leishmaniose, dengue, hantavirose e raiva.1-3 Avanços científicos, a exemplo do desenvolvimento de vacinas, também podem provocar alterações na epidemiologia das doenças infecciosas, como é o caso da raiva humana. A disponibilidade de uma vacina eficaz e a implementação de novas estratégias pelos gestores de saúde tornaram possível o aprimoramento do controle da raiva urbana, visando sua eliminação. Por sua vez, a pressão das atividades humanas sobre o meio ambiente e o contato, cada vez mais próximo, entre humanos e animais silvestres influenciam a epidemiologia da raiva na maioria das áreas onde a doença é endêmica.4-7
Pesquisas sobre a situação epidemiológica da raiva nas Américas revelaram que a incidência da doença sofreu importante redução, especialmente a partir da década de 1990.4,6 A incidência de casos de raiva em pessoas reduziu-se de 216 (1993) para 39 (2002), assim como a raiva em cães, entre os quais foram notificados 6.716 (1993) e 1.311 casos (2002).3 Uma análise de tendência dos casos de raiva no período de 1982 a 2003 revelou uma queda no número de casos humanos de 355 para 35.6 Pode-se atribuir o sucesso do controle da raiva às campanhas de vacinação de cães e gatos e à profilaxia, com a aplicação da vacina antirrábica humana pós-exposição.6 No Brasil, como nas Américas, também se observa tendência de redução dos casos.8
A partir dos anos 1990, campanhas de vacinação antirrábica de cães e gatos foram realizadas periodicamente, na maioria dos países onde a raiva humana é considerada endêmica.4 Além disso, cerca de um milhão de pessoas expostas a potenciais transmissores do vírus rábico procuraram atendimento, a cada ano, e 30% delas receberam tratamento profilático.4 Com isso, o número de casos de raiva humana transmitida por cães no Brasil sofreu uma notável redução. Em contrapartida, casos de raiva transmitidos por animais silvestres têm apresentado relativo aumento, ao longo dos últimos anos.4,9,10
Em Pernambuco, não são notificados casos de raiva humana desde 2006, apesar dos constantes relatos de casos de raiva animal.8,11 Porém, casos de agressão de animais a humanos são frequentemente notificados no estado, indicando risco de ocorrência de raiva humana.
Este estudo objetivou descrever as características das notificações de atendimento antirrábico humano e condutas profiláticas adotadas em municípios da Mesorregião do Agreste Pernambucano, no período de 2010 a 2012.
Métodos
Realizou-se um estudo epidemiológico descritivo do tipo de série temporal, sobre os atendimentos e a conduta profilática antirrábica humana pós-exposição em 32 municípios da Mesorregião do Agreste Pernambucano (Figura 1), estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil, no período de 2010 a 2012, com dados obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Foram calculadas as frequências relativa e absoluta das seguintes variáveis:
a) Agressão
- mês de notificação;
- localização anatômica;
- profundidade do ferimento (profundo, superficial ou dilacerante);
- apresentação do ferimento (único, múltiplo ou sem ferimento); e
- tipo de agressão (arranhadura, lambedura, mordedura ou outros).
b) Indivíduo agredido
- sexo; e
- idade.
c) Animal agressor
- espécie (canina, felina, quiróptera, primata, raposa, herbívoro doméstico e outra) e
- condição física inicial (sadio, suspeito, raivoso e morto/desaparecido).
d) Tratamento
- conduta realizada (pré-exposição, dispensa de tratamento, observação do animal, observação e vacina, vacina, soro e vacina, e esquema de reexposição);
- interrupção do tratamento; e
- motivo da interrupção do tratamento (indicação da unidade de saúde, abandono por vontade própria ou transferência de unidade de saúde).
Os dados foram analisados utilizando-se os softwares Microsoft Excel 2010 e TabWin versão 3.2.
A pesquisa foi conduzida respeitando-se os preceitos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012. Os autores não tiveram acesso a dados que permitissem a identificação dos sujeitos. Os dados secundários foram obtidos com autorização e ciência da IV Gerência Regional de Saúde do estado de Pernambuco.
Resultados
No período de 2010 a 2012, 10.138 pacientes foram submetidos a tratamento profilático antirrábico após potencial exposição ao vírus. O período de maior ocorrência de atendimentos foi o terceiro trimestre (meses de julho, agosto e setembro), com 26% dos casos notificados (Tabela 1).
A distribuição entre os sexos foi bastante homogênea, com 50,2% dos indivíduos do sexo masculino. A faixa etária mais acometida foi a dos 20 aos 64 anos, com 49,1% dos casos (Tabela 1).
Os cães foram responsáveis por 68,1% das agressões, seguidos por felinos (28,6%). As demais espécies (quirópteros, raposas, primatas não humanos e outros) totalizaram 3,2% das notificações. Entre cães e gatos, aproximadamente 80,0% foram classificados como sadios (Tabela 1).
O tipo de contato mais frequentemente observado foi a mordedura (83,8%). Verificou-se que 58,3% dos ferimentos foram múltiplos e 39,8% foram únicos. As lesões profundas (56,8%) foram mais frequentemente notificadas, seguidas das superficiais (38,2 %) e dilacerantes (5,0%). Quanto à região anatômica, verificou-se que mãos e pés foram mais afetados, com 39,4%, seguidos por membros inferiores, com 29,1% (Tabela 1).
Sobre as condutas profiláticas, a maioria das indicações foi de observação associada à vacinação (70,4%), seguida por vacinação (13,6%) e uso do soro combinado com vacina (10,5%), destacando-se que apenas 0,2% foram dispensados de tratamento. Quanto às fichas de notificação, 58,33% (7/12) continham variáveis não preenchidas (em branco) ou com registro do dado ‘Ignorado’. Verificou-se também que 2,2% dos pacientes interromperam o tratamento, sendo o motivo da interrupção não relatado na ficha de notificação (Tabela 1).
Discussão
O estudo apontou que a maioria dos atendimentos profiláticos antirrábicos ocorreu nos meses de julho, agosto e setembro, coincidindo com o período de férias, de uma maior mobilidade humana, com viagens e outras atividades acontecendo fora do domicílio, o que torna as pessoas mais vulneráveis ao contato com os animais e suas agressões.12,13
No presente estudo, observou-se homogeneidade na distribuição dos casos segundo sexo, enquanto estudos similares encontraram predominância de atendimentos de indivíduos do sexo masculino.7,14,15 Quanto à faixa etária, os adultos entre 20 e 64 anos foram os mais acometidos, dados estes semelhantes aos de outros estudos.16,17 É possível que os adultos estejam mais susceptíveis a tais agressões em suas atividades diárias de trabalho (caso de profissionais com risco ocupacional), no cuidado com animais domésticos e em movimentação por vias públicas.16,17
A maior parte das agressões foi provocada pelas espécies canina e felina. Historicamente, cães e gatos têm-se implicado como os principais transmissores da raiva humana. Porém, a partir da década de 1990, a incidência de raiva humana transmitida por animais silvestres aumentou na América Latina; e em diversas regiões do Brasil, onde a transmissão do vírus da raiva ao homem por morcegos hematófagos também cresceu e em certos casos, ultrapassou a transmissão pela espécie canina. Face ao exposto, mesmo que as agressões por animais silvestres tenham sido relatadas com menor frequência, deve-se atentar para sua importância na transmissão da raiva.4,6,9,18-22
Nesta pesquisa, observou-se predominância de mordeduras, ferimentos múltiplos e profundos. Provavelmente, a consciência da população sobre o alto risco de infecção pelo vírus rábico por meio da mordedura resulta em uma maior procura por atendimento após a ocorrência desse tipo de possível exposição.14,23-25) Os locais do corpo das vítimas mais afetados foram mãos e/ou pés - porque, presume-se, são regiões relacionadas à posição de defesa da vítima, ou pelo ato impulsivo de tentar segurar/conter o animal no momento da agressão.14
Destaca-se que em apenas 10,5% dos atendimentos, foi indicada a combinação de soro e vacina, enquanto houve um registro de 47,9% dos acidentes considerados graves (localizados na cabeça, mãos/pés e mucosas; lesões profundas e múltiplas; agressões por animais silvestres ou animais mortos ou desaparecidos), que devem ser tratados com combinação de soro e vacina. Esse achado, juntamente com o preenchimento inadequado das fichas de notificação, sugere que parte das condutas realizadas nas unidades de saúde sejam inapropriadas para o tipo de agressão, conforme verificado em outras localidades do estado de Pernambuco.7,26
Identificaram-se falhas no preenchimento das fichas de notificação. Por exemplo, algumas fichas apresentavam algumas variáveis, como ‘Condição do Animal para Fins de Conduta e Tratamento’, ‘Ferimento’ e ‘Tratamento indicado’, em branco ou registradas como dado ‘Ignorado’, o que dificulta o processo de avaliação das características epidemiológicas e o estabelecimento da conduta adequada pela equipe médica.
Na região dos municípios analisados, foi observado um pequeno percentual de interrupção do tratamento profilático antirrábico, provavelmente devido ao sucesso da descentralização do atendimento como forma de facilitar a acessibilidade, além da não necessidade de agendamento de consulta médica.16,27-29
As autoridades de saúde devem prosseguir na concentração de seus esforços em medidas de controle e eliminação da raiva. Recomenda-se a implantação de programas de capacitação permanente das equipes de saúde, para um correto preenchimento da ficha de notificação de atendimento antirrábico humano, orientações de educação em saúde e, ademais, integração médico-médico veterinário, com o objetivo de permitir uma criteriosa análise da agressão, condição animal e risco epidemiológico da doença, para que a decisão pela instituição ou não de profilaxia seja feita adequadamente.