Introdução
As intoxicações medicamentosas ocorrem quando um medicamento é usado em doses acima daquelas preconizadas para profilaxia, diagnóstico, tratamento ou modificação de funções fisiológicas, de modo intencional ou não.1 Em crianças, as intoxicações estão relacionadas à (i) curiosidade intrínseca a essa fase de desenvolvimento, (ii) funções imaturas de seus organismos,2 aumentando a suscetibilidade à ação tóxica de fármacos ou de medicamentos e (iii) embalagens sem mecanismos de segurança, além da (iv) menor cultura de prevenção de acidentes,3 que favorece, por exemplo, o armazenamento incorreto, possibilitando o alcance das crianças ao medicamento.
Ademais, o uso de medicamentos sem indicação clínica estabelecida para as crianças, configurando uso off label,4 as dificuldades com cálculo exato de dose e medidas de medicamentos,4 a prática da automedicação assistida (pelos pais ou responsáveis)5 e a propaganda indiscriminada de medicamentos também são fatores favoráveis a intoxicação.
No Brasil, estão disponíveis Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) para orientar profissionais de saúde das redes pública e privada, e o público geral; e em alguns serviços, assistir pessoas expostas ou intoxicadas.6 As informações recebidas pelos CIATox são compiladas pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), de modo a compor uma base nacional sobre intoxicações. Em 2013, 34,3% das notificações de intoxicações medicamentosas envolveram crianças menores de cinco anos, fazendo dessa faixa etária a mais envolvida em intoxicações.7 Contudo, como o envio dessas informações não é obrigatório, esse quadro pode não refletir o total de casos atendidos no país.
Devido à especificidade do cenário brasileiro, os estudos sobre intoxicações medicamentosas utilizam, comumente, dados disponibilizados por serviços de referência dos CIATox8 ou de fonte hospitalar.9 O Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) ainda é pouco explorado quanto às internações por intoxicações medicamentosas. Entretanto, o mesmo SIH/SUS vem sendo utilizado em diversos estudos de abrangência local10 e nacional,11 possibilitando conhecer o perfil das internações causadas por inúmeros problemas de saúde.
O objetivo deste estudo foi descrever as internações hospitalares devidas às intoxicações medicamentosas em menores de cinco anos de idade no Brasil, de 2003 a 2012.
Métodos
Realizou-se um estudo descritivo, com dados disponíveis no SIH/SUS referentes aos registros das internações por intoxicação medicamentosa em menores de cinco anos de idade no Brasil, obtidos das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH).
A AIH é o instrumento de registro das internações financiadas pelo SUS. O diagnóstico principal refere-se ao principal motivo da internação, enquanto os diagnósticos secundários incluem todas as condições coexistentes no momento da admissão, que se desenvolvam durante o período de internamento ou que afetem a atenção recebida e/ou o tempo de permanência no hospital. Os diagnósticos são registrados pelos códigos da 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). A AIH reúne mais de 50 variáveis, as quais incluem informações sobre o indivíduo, características da internação e serviços profissionais realizados. Após seu processamento, os estabelecimentos de saúde recebem o pagamento do valor referente aos procedimentos realizados.
Os registros selecionados foram aqueles relativos a crianças entre 0 dias de vida e 4 anos e 11 meses de idade, cujos diagnósticos principal e/ou secundário referissem um dos seguintes códigos da CID-10: F11.0, F.13.0, F.15.0, F.19,0, F55, P93, T36, T37, T38, T39, T40.2, T40.3, T40.4, T41, T42, T43, T44, T45, T46, T47, T48, T49, T50, T96, X40, X41, X43, X44, X60, X63, X64, X85, Y10, Y11, Y13 ou Y14, conforme método previamente padronizado.12-13
As variáveis da AIH utilizadas foram: ano da internação; sexo (masculino; feminino); idade (em anos); evolução (óbito ou não); diagnóstico principal; diagnóstico secundário; natureza do estabelecimento de saúde; e Unidade da Federação (UF) da internação. A partir das variáveis da AIH, as variáveis ‘idade’ e ‘natureza do estabelecimento de saúde’ foram categorizadas. As categorias de idade foram: 0 dias; 1 a 28 dias; 29 a 364 dias; 1 ano; 2 anos; 3 anos; e 4 anos. Já para a natureza do estabelecimento de saúde, as categorias foram: privado; público; e conveniado. As classes terapêuticas dos medicamentos envolvidos nas intoxicações foram categorizadas conforme a classificação Anatomic Therapeutic Chemical (ATC) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a partir dos diagnósticos referidos pelos códigos da CID-10.
Foram utilizados os arquivos de AIH de tipo reduzido da base de dados do SIH/SUS, disponíveis no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). Foram incluídos os arquivos correspondentes aos dados de todas as UF, incluído o Distrito Federal. Esses arquivos não identificam os indivíduos, tampouco os serviços profissionais realizados. O acesso a esses dados ocorreu entre abril e junho de 2014.
Internações com tempo de permanência maior que 30 dias geram novas AIH, as AIH de longa permanência. Desse modo, para descartar um possível viés de seleção e a duplicidade das internações, fez-se uma busca pelas AIH de longa permanência, sendo as respectivas AIH iniciais excluídas.
O estudo envolveu o universo de registros do SIH/SUS para internações resultantes de intoxicações em crianças menores de cinco anos, de 2003 a 2012. O banco de dados do estudo foi formado pelos registros com pelo menos um dos diagnósticos descritos, conforme é apresentado na Figura 1.
Os dados foram analisados por estatística descritiva, mediante frequências absolutas e relativas. Os softwares Tabulador de Windows (TabWin32), Statistical Analysis System (SAS 9.3) e Statistical Package for the Social Sciences (SPSS 20) foram utilizados para extração e análise dos dados.
O cálculo da proporção de óbitos considerou os óbitos e as internações por intoxicação medicamentosa em crianças menores de cinco anos. Para fins de comparação, foram calculadas, separadamente, proporções de óbitos para as internações envolvendo intoxicação por um agente tóxico e por dois agentes tóxicos, utilizando-se apenas os óbitos e as internações observadas em cada um desses grupos.
O estudo envolveu bancos e dados secundários, de acesso público e irrestrito, sem identificação dos sujeitos. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (CEP/ENSP): Parecer nº 01/2014, de 16 de maio de 2014.
Resultados
Foram identificadas 17.725 internações por intoxicações medicamentosas em menores de cinco anos de idade no período de 2003 a 2012 (Tabela 1). Dessas internações, 13.055 envolveram apenas um diagnóstico de intoxicação (diagnóstico principal ou secundário) e 4.670 internações envolveram tanto diagnósticos principais quanto diagnósticos secundários de intoxicação, sendo consideradas como intoxicações por agentes tóxicos distintas na mesma internação, perfazendo um total de 9.340 casos. No total, 22.395 agentes tóxicos estiveram envolvidos nas 17.725 internações (Figura 2).
Características | N | % |
---|---|---|
Idade | ||
0 dias | 313 | 1,77 |
1-28 dias | 395 | 2,23 |
29-364 dias | 2.270 | 12,81 |
1 ano | 3.665 | 20,68 |
2 anos | 4.302 | 24,27 |
3 anos | 3.891 | 21,95 |
4 anos | 2.889 | 16,30 |
Sexo | ||
Masculino | 9.384 | 52,94 |
Feminino | 8.341 | 47,06 |
Ano | ||
2003 | 2.134 | 12,04 |
2004 | 1.944 | 10,97 |
2005 | 1.833 | 10,34 |
2006 | 1.713 | 9,66 |
2007 | 1.721 | 9,71 |
2008 | 1.912 | 10,79 |
2009 | 1.810 | 10,21 |
2010 | 1.608 | 9,07 |
2011 | 1.482 | 8,36 |
2012 | 1.568 | 8,85 |
Região do país | ||
Norte | 835 | 4,71 |
Nordeste | 3.726 | 21,02 |
Centro-Oeste | 8.283 | 46,73 |
Sudeste | 3.086 | 17,41 |
Sul | 1.795 | 10,13 |
As classes terapêuticas mais envolvidas nas intoxicações que geraram as internações foram: fármacos não especificados (38,0%); antiepilépticos, sedativo-hipnóticos e antiparkinsonianos (19,8%); antibióticos sistêmicos (13,4%); e analgésicos/antitérmicos não opiáceos (6,5%) (Tabela 2).
Classe terapêutica | Intoxicações | Óbitos | |
---|---|---|---|
N | % | N | |
Agentes de diagnóstico a | 82 | 0,36 | - |
Analépticos e antagonistas dos receptores dos opiáceos | 9 | 0,04 | 1 |
Analgésicos/antitérmicos não opiáceos | 1.455 | 6,50 | 9 |
Anestésicos e gases terapêuticos | 84 | 0,38 | 1 |
Antibióticos sistêmicos | 3.010 | 13,44 | 17 |
Antídotos e quelantes, não classificados em outra parte | 5 | 0,02 | - |
Antiepilépticos, sedativo-hipnóticos e antiparkinsonianos | 4.424 | 19,75 | 4 |
Diuréticos | 41 | 0,18 | - |
Enzimas, não classificadas em outra parte | 16 | 0,07 | - |
Fármacos antialérgicos e antieméticos | 146 | 0,65 | - |
Fármacos antineoplásicos e imunossupressores | 8 | 0,04 | - |
Fármacos estimulantes | 33 | 0,15 | - |
Fármacos psicotrópicos | 852 | 3,80 | 1 |
Fármacos que afetam o sistema nervoso autônomo | 660 | 2,95 | 4 |
Fármacos que agem sobre o metabolismo do ácido úrico | 14 | 0,06 | - |
Fármacos que atuam sobre o aparelho circulatório | 447 | 2,00 | 4 |
Fármacos que atuam sobre os músculos lisos e esqueléticos e sobre o aparelho respiratório | 413 | 1,84 | 2 |
Hormônios, seus substitutos sintéticos e seus antagonistas | 501 | 2,24 | 3 |
Inibidores do apetite | 19 | 0,08 | - |
Múltiplos fármacos e fármacos psicoativos | 93 | 0,42 | - |
Narcóticos | 181 | 0,81 | 1 |
Fármacos que agem sobre o equilíbrio eletrolítico, calórico e hídrico | 8 | 0,04 | - |
Fármacos anti-infecciosos e antiparasitários | 397 | 1,77 | - |
Fármacos de ação no trato gastrointestinal | 525 | 2,34 | 4 |
Fármacos de uso tópico | 389 | 1,74 | 4 |
Vitaminas | 58 | 0,26 | - |
Sequelas b | 6 | 0,03 | - |
Fármacos não especificados | 8.519 | 38,04 | 32 |
Total | 22.395 | 100,00 | 87 |
a) Radiofármacos, contrastes e quaisquer outros medicamentos utilizados para fins de diagnóstico.
b) Não é classe terapêutica. Presente na tabela para fins de cálculo.
Nota: Não ocorreram intoxicações causadas por fármacos que atuam no sangue e na coagulação.
Em todas as grandes regiões do país, fármacos não especificados foram os mais envolvidos, sendo que 4,3% dessas intoxicações ocorreram no Norte e 47,5% no Sudeste. As intoxicações por antibióticos sistêmicos apresentaram a seguinte distribuição entre regiões: Norte (5,0%); Centro-Oeste (8,5%); Sul (17,1%); Nordeste (30,5%); e Sudeste (38,9%). A distribuição de intoxicações por antiepilépticos, sedativo-hipnóticos e antiparkinsonianos nas regiões foi a seguinte: 60,3% no Sudeste; 17,5% no Nordeste; 11,9% no Sul; 8,3% no Centro-Oeste; e 2,1% no Norte. A região com maior número de óbitos foi a Sudeste (29 óbitos), seguida do Nordeste (23 óbitos), Norte (9 óbitos) e Centro-Oeste e Sul (7 óbitos em cada) (dados não apresentados em tabela ou figura).
Ocorreram 75 internações com óbito, das quais 63 tiveram diagnóstico (principal ou secundário) de intoxicação medicamentosa. Em 12 óbitos, houve diagnóstico principal e secundário de intoxicação medicamentosa. Assim, 87 agentes tóxicos estiveram envolvidos nas internações com óbito. Considerando-se as 13.055 internações com apenas diagnóstico principal e/ou secundário de intoxicação medicamentosa, a proporção de óbitos foi de 0,48%. Já para as 4.670 internações com diagnóstico principal e secundário, a proporção de óbitos foi de 0,26%. No entanto, a proporção de óbitos para as 17.725 internações foi de 0,42% (dados não apresentados em tabela ou figura). As classes terapêuticas mais envolvidas nas intoxicações foram os fármacos não especificados, antibióticos sistêmicos e analgésicos/antitérmicos não opiáceos (Tabela 2).
As internações de crianças com menos de 28 dias de vida envolveram menor número de classes terapêuticas que as internações entre crianças com mais idade (dados não apresentados em tabela ou figura).
Foi possível correlacionar as classes terapêuticas e as categorias ATC em 13.777 intoxicações, representando uma perda de 8.618 intoxicações (38,5%). Nas intoxicações em que a correspondência foi possível, o agente tóxico predominante pertencia à categoria N - medicamentos que atuam no sistema nervoso central (Tabela 3).
Classe terapêutica | Classificação segundo ATC | Total | |||
---|---|---|---|---|---|
Código CID 10 | Classe terapêutica | ATC | Categoria | N | % |
F13.0, T42, X41, X61, Y11 | Antiepilépticos, sedativo-hipnóticos e antiparkinsonianos | N03A, N05C, N04 | 4.424 | 19,74 | |
T43 | Fármacos psicotrópicos | N | 852 | 3,80 | |
F11.0, T40.2, T40.3, T40.4, X42 | Narcóticos | N | Sistema nervoso central (N) | 181 | 0,81 |
F15.0 | Fármacos estimulantes | N06B | 33 | 0,15 | |
T50.7 | Analépticos e antagonistas dos receptores dos opiáceos | N06 | 9 | 0,04 | |
T36 | Antibióticos sistêmicos | J | Anti-infecciosos gerais para uso sistémico (J) e produtos antiparasitários, inseticidas e repelentes (P) | 3.010 | 13,44 |
T37 | Fármacos anti-infecciosos e antiparasitários | J, P | 397 | 1,77 | |
T39, X40, X60, Y10 | Analgésicos/antitérmicos não opiáceos | N02A, M01A | 1.455 | 6,50 | |
T44, X43, X63, Y13 | Fármacos que afetam o sistema nervoso autônomo | N04A, N07A, A03A, A03B, A03C, A03D, M03AB, R03AL, R03BB, S01FA, R03DA02, R03DB02 | 660 | 2,95 | |
T38 | Hormônios, seus substitutos sintéticos e seus antagonistas | H, G03 | 501 | 2,24 | |
T49 | Fármacos de uso tópico | D, S, M02A, C05A, R01A | Múltiplas correlações | 389 | 1,74 |
T45.0 | Fármacos antialérgicos e antieméticos | R06A, D04A, A04A | 146 | 0,65 | |
T41.0 | Anestésicos e gases terapêuticos | N01, V03AN | 84 | 0,38 | |
T50.8 | Agentes de diagnóstico | V04, V09, S01J | 82 | 0,37 | |
T45.3 | Enzimas, não classificadas em outra parte | A09A, A16AB, B01AD, B06AA, D03BA, M09AB | 16 | 0,07 | |
T46 | Fármacos que atuam sobre o aparelho circulatório | C | Aparelho cardiovascular (C) | 447 | 2,00 |
T50.0 a T50.2 | Diuréticos | C03 | 41 | 0,18 | |
T48 | Fármacos que atuam sobre os músculos lisos e esqueléticos e sobre o aparelho respiratório | M, R | Sistema musculoesquelético (M) | 413 | 1,84 |
T50.4 | Fármacos que agem sobre o metabolismo do ácido úrico | M04AA, M04AB | 0,06 | ||
T47 | Fármacos de ação no trato gastrointestinal | A | 525 | 2,34 | |
T50.5 | Inibidores do apetite | A08A | 19 | 0,08 | |
T45.2 | Vitaminas | A11 | Aparelho digestivo e metabolismo (A) e sangue e órgãos hematopoiéticos (B) | 58 | 0,26 |
T50.3 | Fármacos que agem sobre o equilíbrio eletrolítico, calórico e hídrico | A, B | 8 | 0,04 | |
T45.4 a T45.8 | Fármacos que atuam no sangue e na coagulação | B | - | - | |
T45.1 | Fármacos antineoplásicos e imunossupressores | L01, L04 | Agentes antineoplásicos e imunomoduladores (L) | 8 | 0,04 |
T50.6 | Antídotos e quelantes, não classificados em outra parte | V03AB | Vários (V) | 5 | 0,02 |
F19.0 | Múltiplos fármacos e fármacos psicoativos | - | Sem correspondência | 93 | 0,42 |
T96 | Sequelas | - | 6 | 0,03 | |
T45.9, T50.9, X44, X64, Y14, X85, P93, F55 | Fármacos não especificados | - | 8.519 | 38,04 | |
Total | 22.395 | 100,00 |
Discussão
As classes terapêuticas mais envolvidas nas internações de crianças menores de cinco anos por intoxicações medicamentosas financiadas pelo SUS no Brasil foram fármacos não especificados, antiepilépticos/sedativo-hipnóticos/antiparkinsonianos, antibióticos sistêmicos e analgésicos/antitérmicos não opiáceos. Esta classificação variou conforme a região do país e a idade das crianças. A correspondência entre classes terapêuticas, segundo a CID-10 e a classificação ATC, foi possível em mais da metade das intoxicações observadas.
A ocorrência de internações com mais de um diagnóstico de intoxicação reflete a exposição da criança a mais de uma classe terapêutica. Como a maior parte das intoxicações em crianças ocorre em circunstâncias acidentais,14 as intoxicações mostram acesso a diferentes medicamentos, em situações relacionadas a armazenamento inadequado ou desatenção dos cuidadores.15
Neste estudo, observou-se o envolvimento de até dois agentes tóxicos por internação. No entanto, cabe ressaltar que esse limite é dado pelo próprio modo como as AIH são registradas, já que se permite tão somente a inclusão de dois diagnósticos. Portanto, essas intoxicações podem ter sido causadas por até mais de dois agentes tóxicos; contudo, isso não foi possível de ser registrado. A proporção de óbitos para um agente tóxico (0,48%) foi superior àquela observada para dois agentes tóxicos (0,26%), indicando que, possivelmente, a classe terapêutica dos agentes tóxicos envolvidos na intoxicação tem maior influência na evolução da internação do que o número de agentes tóxicos envolvidos.
Os fármacos não especificados foram responsáveis pela maioria das intoxicações que necessitaram internação hospitalar, representando perda considerável de informações. A falta de especificação dos agentes envolvidos nos registros já havia sido observada entre internações com efeitos adversos,16 no período de 2008 a 2012 no SIH/SUS, e pode ter como causa a semelhança de sinais e sintomas provocados pelas intoxicações de diferentes classes terapêuticas, agravada pela incapacidade de as crianças se expressarem com clareza. Ainda, a aparente recorrência de registros inespecíficos envolvendo o SIH/SUS pode ser inerente ao sistema de informações, causada por falhas no preenchimento da AIH16 e pela falta de familiaridade da equipe de saúde com a CID-10.
Antiepilépticos, sedativos e hipnóticos foram a segunda classe terapêutica mais envolvida, em conformidade com estudo sobre um CIATox paranaense realizado em 2010.17 Todavia, as internações relacionadas diminuíram a partir de 2008. Coincidentemente, naquela época, teve início a implantação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). Esses medicamentos já eram submetidos a regulação específica18 mas o SNGPC, instituído por uma Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - RDC nº 27, de 30 de março de 2007 -,19 aumentou a vigilância, dificultando a venda sem prescrição. É possível que esse esforço adicional de controle tenha redundado em desfecho relacionado ao uso racional, com diminuição das internações.
De modo análogo, houve redução no número de internações atribuídas a intoxicações causadas por antibióticos sistêmicos a partir de 2010. Desde aquele ano, pela publicação das RDC nº 44/201020 e nº 20/2011,21 que obrigaram a retenção de prescrição médica na venda de antibióticos, houve redução das internações. A literatura traz evidências do uso de medidas regulatórias para incrementar o uso racional de medicamentos.22
Para todas as regiões, a principal classe terapêutica encontrada foi a de fármacos não especificados. A diferença ocorreu para a segunda causa por região: no Norte e Nordeste, foram os antibióticos sistêmicos, e nas demais regiões, os antiepilépticos, sedativo-hipnóticos e antiparkinsonianos. Diferenças regionais de utilização podem ser observadas, seja por cultura ou hábito de prescrição, seja por diferenças epidemiológicas ou vazios sanitários, ocasionando agudização de doenças transmissíveis. Por exemplo, na região Norte, houve maior proporção de intoxicações por fármacos anti-infecciosos e antiparasitários, incluindo antimaláricos e medicamentos para endemias focais, apontando para as doenças prevalentes e os surtos observados nos últimos anos na região amazônica.23
As crianças menores de 28 dias intoxicaram-se por uma variedade menor de classes terapêuticas. A literatura também mostra essa diferença no perfil de intoxicações.24 Crianças menores são dependentes dos cuidadores, e as intoxicações medicamentosas estão relacionadas aos erros de medicação com medicamentos comuns nessa faixa etária e não à ingestão acidental, como ocorre entre as crianças de mais idade. São necessárias ações de prevenção direcionadas aos cuidadores, como cuidados no aporte de dose,25-26 e respostas mais eficazes da autoridade sanitária, como a promoção de pesquisas clínicas em pediatria,27 além de formulações apropriada e mais seguras, em concentração e forma farmacêutica.8
Nas internações que evoluíram para óbito, a classe terapêutica mais envolvida foi a de fármacos não especificados. A identificação correta da classe terapêutica envolvida na intoxicação permite a administração de antídotos, medidas de suporte ou descontaminação.28 Dificuldades no diagnóstico correto e, consequentemente, no tratamento adequado podem estar associadas ao maior envolvimento desses fármacos com a mortalidade apresentada.
Não foi possível realizar a correspondência de algumas classes terapêuticas a uma categoria ATC, de modo que essas intoxicações não puderam ser classificadas. Devido à CID-10 ser menos específica que a ATC, por não ser voltada para medicamentos e sim para diagnósticos, uma parte importante das informações sobre as intoxicações é perdida. Houve predomínio de intoxicações por medicamentos de ação no sistema nervoso central (categoria N) e dos antibióticos e antiparasitários (respectivamente, categorias J e P), em acordo com a literatura.29
A principal limitação do estudo consiste na definição das classes terapêuticas (ATC) a partir do diagnóstico registrado por códigos da CID-10 na AIH, cujo razão de enfoque é a doença e não o medicamento. Algumas classes terapêuticas agruparam distintos medicamentos, impedindo uma análise mais aprofundada dos dados. O uso da classificação CID-10 pode levar a generalizações perigosas e não apontar claramente o risco sanitário de certos medicamentos para as faixas de idade mais vulneráveis. Desse modo, a análise pela ATC a partir da classificação CID-10 significou um esforço no sentido de aproximar o estudo ao campo da terapêutica medicamentosa, permitindo uma melhor identificação dos medicamentos envolvidos nessas intoxicações.
Não se exclui um possível viés de mensuração, já que o diagnóstico registrado na AIH pode não refletir o quadro clínico do indivíduo internado. No entanto, essa limitação é inerente aos estudos envolvendo sistemas de informações em saúde. É possível que o número de internações por intoxicações medicamentosas no Brasil de 2003 a 2012 seja maior, considerando-se que essas internações podem ser atendidas em unidades de saúde não filiadas ao SUS. Apesar disso, não foram encontradas outras pesquisas no Brasil com a mesma abordagem, para comparação com o presente estudo.
A predominância de diagnósticos envolvendo classes terapêuticas indeterminadas chama a atenção. Isso pode estar relacionado a internações em que a intoxicação medicamentosa não foi confirmada, tratando-se de uma suspeita médica, incerteza sobre a classe terapêutica envolvida ou dificuldades em classificar o quadro clínico com algum dos códigos da CID-10.
Para superar esse cenário, nos casos de diagnóstico inespecífico sobre intoxicações na AIH, recomenda-se a geração pelo próprio sistema de um campo que permita a inserção de mais informações a respeito dos sinais e sintomas e das suspeitas médicas quanto ao medicamento ou medicamentos envolvidos. Tal informação complementaria o diagnóstico, e facilitaria o monitoramento das classes terapêuticas mais envolvidas em intoxicações.
Além dessas medidas, restringir o acesso das crianças aos medicamentos é muito importante, por meio do fomento à cultura de segurança doméstica entre os pais e responsáveis. Neste mesmo intuito, faz-se também necessário discutir a adoção de embalagens especiais de proteção à criança nos medicamentos, de modo a evitar ou reduzir a ocorrência de intoxicações.30
Se medidas educacionais são importantes para o aumento da segurança doméstica, medidas regulatórias sobre o uso racional são essenciais para a diminuição das intoxicações medicamentosas. Outrossim, a utilização da classificação CID-10 como uma proxy para determinar a classificação da ATC pode ser um caminho para outros estudos sobre intoxicações. Ao utilizar uma classificação voltada ao campo da terapêutica, esses estudos poderão oferecer aos gestores do Sistema Único de Saúde novas evidências e dados mais confiáveis sobre as classes terapêuticas envolvidas nas intoxicações.
Em conclusão, verificou-se que a maior proporção de intoxicações medicamentosas, como também dos óbitos por elas causados, atribuiu-se a classe terapêutica inespecífica, o que limita a análise dos dados encontrados. Não obstante, entre as intoxicações com classe terapêutica definida, os medicamentos atuantes sobre o sistema nervoso central foram os principais responsáveis por intoxicações, seguidos pelos analgésicos/antitérmicos não opióides e pelos antibióticos sistêmicos, os quais são frequentemente utilizados em doenças prevalentes na faixa etária menor de cinco anos.