Introdução
A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, de evolução lenta, que se manifesta principalmente por meio de sinais e sintomas dermatoneurológicos.¹,² Quando diagnosticada e tratada tardiamente, pode gerar incapacidades físicas nas mãos, pés e olhos, resultantes do comprometimento dos nervos periféricos; em estágios mais avançados de manifestação clínica, pode-se observar comprometimento neural troncular, capaz de trazer repercussões como parestesias e plegias musculares.3 Estima-se que entre 1 a 2 milhões de pessoas no mundo possuam deformidades e deficiências resultantes da hanseníase.4
Em virtude dessas deformidades e deficiências, frequentemente, pessoas com hanseníase são vítimas de estigma e discriminação. O estigma, um fator importante relacionado ao atraso do diagnóstico, facilita a transmissão da infecção na família e entre a comunidade, razão porque foi introduzido na ‘Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020’ como um indicador para monitorar a discriminação das pessoas afetadas pela doença.5
Mesmo sendo uma doença antiga, a hanseníase permanece como um problema de Saúde Pública, uma vez que o controle da transmissão é difícil de ser alcançado em alguns países, incluindo o Brasil. Em 2015, foram diagnosticados 210.758 casos novos em 136 países, constituindo uma taxa de detecção mundial de 3,2 por 100 mil habitantes. O Sudeste Asiático foi a região que notificou maior número de casos novos (156.118), seguido pelas Américas (28.808) e África (20.004).6
Em 2015, o Brasil apresentou prevalência de 1,01/10 mil habitantes e taxa de detecção de casos novos de 14,07 por 100 mil habitantes. Nesse mesmo ano, o estado do Pará contava com taxa de detecção geral de 35,34 casos em cada 100 mil habitantes, considerada ‘muito alta’, ficando apenas atrás de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, no cenário nacional. O estado paraense também apresentou elevada taxa de detecção de casos novos em menores de 15 anos (13,32/100 mil hab),7 sinalizando a existência de circuitos de transmissão ativos.2
Destaca-se que, além dos elevados valores dos indicadores apresentados pelo estado, 67,8% dos casos detectados pertenciam à classificação operacional multibacilar7 e 5,7% apresentavam grau de incapacidade física (GIF) 2,7 um indicador de tempo prolongado de adoecimento e de maior possibilidade de transmissão na comunidade, o que aumenta o risco de adoecimento, principalmente entre os contatos intradomiciliares de doentes multibacilares. Esses contatos apresentam risco 6 a 10 vezes maior de adquirir a hanseníase, quando comparados com a população geral.8 A distribuição e propagação da endemia hansênica têm relação estreita com as condições socioeconômicas e culturais, devidas a condições precárias de habitação, baixa escolaridade e, ademais, movimentos migratórios que facilitam a transmissão da doença. Nos países endêmicos, observam-se diferenças na prevalência da doença entre regiões; no caso de grandes cidades, essas diferenças manifestam-se entre os espaços intraurbanos, concentrando-se nos locais de maior pobreza.9
Nesse sentido, o estudo da distribuição espacial da hanseníase permite a identificação de grupos residentes em áreas que ofereçam maior risco de adoecer, de forma a poder auxiliar no planejamento, implementação, monitoramento e avaliação de ações voltadas para a prevenção e controle da doença.9
O objetivo deste estudo foi analisar a associação ecológica entre a condição de carência social e a taxa de detecção da hanseníase no estado do Pará, Brasil, no ano de 2013.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico transversal, que teve como unidades de análise as Regiões de Integração do estado do Pará.
O Pará é composto por 144 municípios. No período de realização deste estudo, o estado possuía 143 municípios. Territorialmente, é a 2º maior Unidade da Federação brasileira, com extensão de 1.247.955,381 km2;10 além do que, o Pará se diferencia pelas características geográficas de seu território, composto por áreas ribeirinhas, às quais o deslocamento e acesso pelos profissionais de saúde torna-se difícil.11 O estado é o 9º mais populoso do país, o mais populoso da região Norte do Brasil, com população estimada de 8.272.724 habitantes para o ano de 2016. O rendimento mensal domiciliar per capita da população residente no Pará era de R$708,00 em 2016.10
O presente estudo tem como base o recorte territorial das 12 Regiões de Integração do estado do Pará. Essa divisão, homologada pelo Decreto Estadual nº 1.066, de 19 de julho de 2008, foi criada com o intuito de melhor visualizar o estado como um todo, viabilizar a aplicação e monitoramento das ações do governo, das políticas econômicas e sociais, sejam no nível estadual, federal ou municipal, além de tornar mais próximas as diversas comunidades do território, dada sua dimensão geográfica.12
O número de casos novos de hanseníase foi obtido do banco de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), referente ao ano de 2013. No que diz respeito às estimativas populacionais dos municípios paraenses, foram utilizadas as informações da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2013.
A taxa de detecção de hanseníase (TDH) foi calculada pela divisão do número de casos novos confirmados de hanseníase em residentes do município sobre a população total do mesmo município e período, por 100 mil habitantes.9 A partir do TDH, os municípios foram classificados de acordo com a endemicidade da doença: baixa (<2,00); média (2,00 a 9,99); alta (10,00 a 19,99); muito alta (20,00 a 39,99); ou hiperendêmica (≥40,00).13
Para caracterização socioeconômica dos municípios, utilizaram-se variáveis obtidas do Censo Demográfico de 2010, disponíveis no sítio eletrônico do IBGE.14 Foram selecionadas variáveis em duas dimensões:
(i) saneamento básico
percentual de domicílios sem água encanada;
percentual de domicílios sem coleta regular de lixo;
percentual de domicílios sem rede de esgoto sanitário; e
percentual de domicílios sem banheiro; e
(ii) socioeconômicas
densidade demográfica (habitantes/km2);
percentual de pessoas responsáveis pelo domicílio com renda mensal de até 1 salário mínimo ou sem rendimento; e
percentual de chefes de família analfabetos e/ou com até um ano de estudo.
A partir dessas variáveis, foi construído o índice de carência social (ICS), por meio da técnica multivariada de análise fatorial (AF) com o auxílio do programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 20.0 (Estados Unidos da América , 2012), com o objetivo de criar um índice que refletisse a condição de vida da população residente em cada município do Pará.
A análise fatorial - AF - é um conjunto de métodos estatísticos, os quais, em certas situações, permitem explicar o comportamento de um número relativamente grande de variáveis observadas em termos de um número relativamente pequeno de variáveis latentes ou fatores. Essa análise pode ser entendida como uma técnica estatística exploratória, destinada a resumir as informações - contidas em um conjunto de variáveis - em um conjunto de fatores - sendo o número de fatores, geralmente, bem menor que o número de variáveis observadas.15 A AF busca a redução dos dados e a criação de indicadores que representam as variáveis originais.16 Para verificar a adequação do modelo da AF, foi utilizada a medida estatística de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), cujos valores variam de 0 a 1: quanto mais próximo esse valor de 1, mais adequada é a utilização da técnica.17 Posteriormente, foi examinada a matriz de correlação inteira a partir do teste de esfericidade de Bartlett, com o intuito de avaliar a hipótese de a matriz das correlações ser a matriz-identidade. Finalmente, foi analisada a matriz anti-imagem, que fornece a medida de adequação da amostra (MAA): quanto mais próximo de 1 o valor da MMA, mais adequada é a utilização da técnica.16
O critério varimax, em linhas gerais, tem como fundamento a busca da matriz ortogonal, a qual, por sua vez, baseia-se na tentativa de encontrar fatores com grandes variabilidades, ou seja: encontrar para um fator fixo um grupo de variabilidades altamente correlacionadas com o fator. Já a comunalidade é a proporção da variância de uma variável que é compartilhada com os fatores comuns na análise de fatores.
Inicialmente, o modelo foi composto por oito variáveis, referentes a duas dimensões: de saneamento básico; e socioeconômicas. Foram retiradas do modelo as variáveis ‘densidade demográfica’ e ‘domicílio sem esgotamento sanitário’, por apresentarem baixo valor de MAA e comunalidade. Novamente, foi construído um modelo com as demais informações; a partir do método de componentes principais, foram obtidos dois fatores, e após a obtenção desses fatores, foi possível calcular os escores fatoriais multiplicando-se cada um dos valores das variáveis originais pelos respectivos pesos fatoriais; assim, obteve-se o ICS considerando-se os escores dos fatores 1 e 2.18
A partir do ICS, foi possível caracterizar os municípios, de forma que quanto menor seu valor, melhor a condição de vida da população. Os municípios foram classificados a partir do percentil (P): aqueles com valores da soma dos escores fatoriais abaixo do P30 foram classificados como ‘bom’; os de valores entre o P30 e o P70 foram classificados como ‘regular’; e os com valores superiores ao P70 foram classificados como ‘ruim’, sendo este último estrato representativo do pior agrupamento em relação à condição de carência social da população.18
Para a análise espacial, calculou-se o índice de Moran global19 e local bivariável para os valores do ICS e TDH por municípios, objetivando identificar padrões espaciais associados à distribuição de duas variáveis (ICS e TDH), esperando-se que as variáveis espaciais aleatórias não apresentem dependência em relação a seus vizinhos. Este método difere do Moran global univariável, cujo objetivo é identificar padrões associados à distribuição apenas de uma variável. Para visualização de áreas de prioridade, foram construídos, para o período, mapas temáticos com as classificações e Moran Map.
O índice de Moran global detecta a existência de autocorrelação espacial, isto é, avalia quanto o valor observado dos indicadores no município está correlacionado com os valores dos vizinhos. Esse índice fornece um valor único, variando de -1 a 1. O Moran Map, representação do índice de Moran local, situa onde os municípios são classificados, dentro dos quatro quadrantes ou como não significativos estatisticamente.20 Para este estudo, cada conglomerado geográfico com autocorrelação espacial significativa estatisticamente, identificado no interior de cada quadrante, foi denominado de agrupamento.
Utilizou-se para a análise estatística espacial o programa de livre acesso GeoDa versão 1.4.1 (Chicago, EUA, 2010). Os mapas foram gerados no programa ArcGis versão 10.0 (Califórnia, EUA, 2013).
O estudo utilizou apenas dados secundários, sem identificação dos sujeitos, e foi realizado em conformidade com os princípios éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
A estratificação do estado do Pará por Região de Integração, de acordo com a intensidade do risco de adoecer em função da avaliação da taxa de detecção da hanseníase, relativamente ao ano de 2013, está apresentada na Tabela 1. De acordo com a classificação de risco, observa-se que dos 143 municípios, 25 (17,5%) foram classificados com risco hiperendêmico, destacando-se a região de integração do Araguaia, onde quase metade (7/15) de seus municípios apresentavam essa intensidade de risco (Tabela 1).
Região de integração | População | Classificação da intensidade do risco de adoecer por hanseníase a,b | Índice de carência social | Total | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Baixa | Média | Alta | Muito alta | Hiperendêmica | Ruim | Regular | Bom | |||
Araguaia | 510.370 | 1 | - | 3 | 4 | 7 | 2 | 5 | 8 | 15 |
Baixo Amazonas | 700.454 | 2 | 7 | 2 | - | 1 | 2 | 7 | 3 | 12 |
Carajás | 615.805 | 1 | - | 1 | 7 | 3 | 2 | 7 | 3 | 12 |
Guamá | 643.890 | 5 | 5 | 5 | 3 | - | 2 | 8 | 8 | 18 |
Lago de Tucuruí | 387.313 | - | - | - | 4 | 3 | 2 | 3 | 2 | 7 |
Marajó | 517.050 | 3 | 4 | 6 | 2 | 1 | 9 | 5 | 2 | 16 |
Metropolitana | 2.112.361 | - | 2 | 3 | - | - | - | - | 5 | 5 |
Rio Caeté | 489.435 | 4 | 6 | 4 | 1 | - | 6 | 7 | 2 | 15 |
Rio Capim | 639.192 | 1 | 4 | 4 | 3 | 4 | 6 | 5 | 5 | 16 |
Tapajós | 243.031 | - | 1 | - | 3 | 2 | 3 | 1 | 2 | 6 |
Tocantins | 789.953 | - | 2 | 6 | 3 | - | 4 | 5 | 2 | 11 |
Xingu | 350.876 | - | 1 | 1 | 4 | 4 | 6 | 3 | 1 | 10 |
Total | 7.999.730 | 17 | 32 | 35 | 34 | 25 | 44 | 56 | 43 | 143 |
a) Endemicidade da doença: baixa (<2,00); média (2,00 a 9,99); alta (10,00 a 19,99); muito alta (20,00 a 39,99); ou hiperendêmica (≥40,00)/100 mil hab.
b) Municípios que não notificaram casos de hanseníase no período: (i) Bannach (Araguaia); (ii) Faro e Terra Santa (Baixo Amazonas); (iii) Palestina do Pará (Carajás); (iv) Colares, Magalhães Barata, Maracanã, São João da Ponta e Terra Alta (Guamá); (v) Afuá, Melgaço, Santa Cruz do Ararí (Marajó); (vi) Bonito, Peixe-Boi, Santa Luzia do Pará e Santarém Novo (Rio Caeté); e (vii) Irituia (Rio Capim).
Considerando-se as informações de 143 municípios, aplicou-se a AF utilizando o método de componentes principais para a extração dos fatores e, posteriormente, rotação ortogonal pelo método varimax. O valor de KMO igual a 0,73 indica a adequação da amostra à técnica e o nível de significância do teste de esfericidade de Bartlett (p<0,001) conduz à rejeição da hipótese de que as variâncias são iguais, o que respalda o emprego da AF para a extração dos fatores e a estimação dos escores fatoriais (Tabela 2).
Fator | Variável | KMO a | Bartlett (p) | % de variância | Carga fatorial | MAA b | Comunalidade |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | % de domicílios sem banheiros | 0,86 | 0,757 | 0,76 | |||
% de domicilios sem coleta de lixo | 0,81 | 0,706 | 0,71 | ||||
% de pessoas responsáveis pelo domicílio com renda mensal de até 1 salário mínimo ou sem rendimento | 0,73 | <0,001 | 54,23 | 0,91 | 0,859 | 0,86 | |
% de chefes de família analfabetos e/ou com até um ano de estudo | 0,69 | 0,694 | 0,69 | ||||
2 | % de domicílios sem abastecimento de água | 24,85 | 0,97 | 0,938 | 0,94 |
a) KMO: medida estatística de Kaiser-Meyer-Olkin.
b) MAA: medida de adequação da amostra.
Foram obtidos dois fatores que explicam 79,2% da variância total dos dados. A escolha das variáveis que compõem cada um dos fatores é feita a partir das cargas fatoriais, de forma que o Fator 1 possui quatro cargas fatoriais significativas, e o Fator 2, uma. O primeiro fator, denominado de ‘infraestrutura e renda’, englobou as seguintes variáveis: domicílio sem banheiro; domicílio sem coleta de lixo; pessoa responsável pelo domicilio com renda mensal de até 1 salário mínimo ou sem rendimento; e chefe de família analfabeto e/ou com até um ano de estudo. O segundo fator tem como variável definidora o ‘abastecimento de água’, mesmo nome dado ao fator (Tabela 2).
De acordo com o ICS, observa-se que em 2013, 44 municípios (30,8%) apresentam o índice de carência social ruim, 56 (39,2%) um índice regular, e 43 municípios (30,1%) tiveram seu ICS classificado como bom.
A região do Marajó foi a que obteve maior proporção de municípios na classificação ruim do ICS (20,5%). As regiões do Baixo Amazonas e Carajás tiveram 14 dos seus municípios com ICS regular, e a região Metropolitana teve todos os seus municípios classificados com bom ICS (Tabela 1).
A Figura 1 mostra, pela análise espacial, a classificação quanto ao índice de carência social e a taxa de detecção dos casos de hanseníase no estado do Pará, onde se observou que o índice de carência social teve três tipos de classificação: bom, regular e ruim. Destaca-se a região do Marajó, com 9 dos 16 municípios classificados como ICS ‘ruim’. Vale ressaltar que a região metropolitana foi a única com índice de carência social na classificação ‘bom’.
Ao analisar o mapa que ilustra as taxas de detecção, é possível visualizar que no sul do estado, concentraram-se os municípios com classificação hiperendêmica, enquanto no norte, encontram-se municípios com média ou alta taxa de detecção de hanseníase.
A autocorrelação espacial entre TDH e ICS no estado do Pará foi significativa (p<0,05). O índice de Moran apresentou uma autocorrelação positiva, com o valor do índice igual a 0,0631, superior ao valor esperado - de -0,0070 -, indicando que municípios com elevada (ou baixa) frequência do índice de carência social e elevada (ou baixa) frequência de casos de hanseníase estiveram espacialmente associados a outros municípios de mesma característica. O valor p=0,042 é inferior ao nível de significância de 5%, o que indica a rejeição da hipótese nula de independência espacial.
A Figura 2 apresenta o resultado do Moran Map para as ocorrências de hanseníase e o índice de carência social no estado do Pará. Verifica-se que os municípios Bagre, Capitão Poço, Senador José Porfirio e Portel se mostraram significativos para o padrão espacial alto-alto, ou seja, municípios que apresentaram alto índice de carência social também apresentaram alta taxa de detecção de hanseníase. No entanto, os municípios de Ananindeua, Bannach, Belém, Benevides, Marituba, Santo Antônio do Tauá, Santa Bárbara e São Caetano de Odivelas referiram-se ao padrão baixo-baixo. Para o padrão baixo-alto, classificaram-se os municípios de Almerim, Afuá, Anajás, Augusto Correa, Breves, Bragança, Capanema, Concórdia do Pará, Curralinho, Gurupá, Garrafão do Norte, Melgaço, Muaná, Nova Esperança do Piriá, Santa Cruz do Arari, Santa Luzia do Pará, São Sebastião da Boa Vista e Viseu, e para o padrão alto-baixo, apresentaram-se os municípios Água Azul do Norte, Canãa dos Carajás, Curionópolis, Goianésia do Pará, Parauapebas e Dom Eliseu.
Discussão
O estudo demonstrou existir associação espacial entre a ocorrência de hanseníase e o índice de carência social, e que os municípios localizados ao sul do estado foram classificados como hiperendêmicos para hanseníase, enquanto no norte do Pará, a TDH variou de média a alta. Cabe destacar que nenhuma região do estado apresentou TDH baixa, confirmando a endemia do agravo. Quanto à condição social, a região do Marajó se destacou pelo número de municípios com ICS ‘ruim’, e a Metropolitana, por ser a única que apresentou ICS ‘bom’.
A distribuição dos casos de hanseníase na região não é homogênea, uma vez que existem quatro áreas distintas de risco da ocorrência de hanseníase, graduadas em níveis de detecção médio, alto, muito alto e hiperendêmico. A heterogeneidade espacial também foi verificada para o conjunto do Brasil,21,22 onde existem áreas com praticamente nenhuma transmissão da doença e outras com taxas de detecção extremamente elevadas, o que direcionou o Programa Nacional de Controle da Hanseníase a priorizar suas intervenções em clusters de doença altamente endêmica.23 Historicamente, a hanseníase se distribui de forma heterogênea no território, no qual fatores socioeconômicos e ambientais se mostram importantes preditores da doença.24
Outro estudo realizado no estado do Pará, no período 2004-2006, também identificou que a endemia se encontra distribuída de forma heterogênea, com maior distribuição no sul e sudeste do estado,25 tanto que a região do Araguaia (sudeste paraense) se destacou por apresentar-se predominantemente hiperendêmica no presente estudo. Contudo, existem municípios com elevada carga da doença no nordeste e sudeste paraense, e na área metropolitana de Belém, provavelmente devido ao elevado fluxo migratório provocado pela região economicamente mais desenvolvida do Pará,25 como também pela busca por atendimento especializado.11
Vale ressaltar, ademais, que o Pará não apresentou nenhuma área de baixo risco de detecção da doença, o que já era de se esperar, tendo em vista que o estado possui histórico de alta carga de hanseníase. Entretanto, no longo prazo, existe perspectiva de mudança em relação a esse indicador: a atual intensificação de atividades de busca ativa de casos no estado, principalmente entre menores de 15 anos de idade e seus contatos intradomiciliares, mediante a realização anual da Campanha Nacional de Hanseníase e Geo-Helmintíases em Escolares.
A Região Amazônica, por si só, tem a menor densidade populacional (4,12 indivíduos/km²) do país, enquanto apresenta o maior número de pessoas por domicílio. Tal realidade é reflexo direto da pobreza, que obriga parentes e outras pessoas a viverem juntos por longos períodos de tempo, geralmente em condições de saneamento precárias. Estudo realizado no município de Castanhal, também no Pará, no período de 2004 a 2010, identificou que a densidade média do agregado familiar era ainda maior nas residências que possuíam um caso de hanseníase, sugerindo que as melhorias nas condições de vida socioeconômica devem ser parte da estratégia global de controle da hanseníase.26
Tal contexto torna desafiador o controle dessa endemia para as entidades sanitárias responsáveis pelos programas de combate e controle da doença, nos diversos níveis de governo.
Quanto ao ICS, destacou-se a região do Marajó, onde a maioria dos municípios apresentaram o índice de carência social ‘ruim’. Tal região tem sua história fortemente marcada pela resistência popular aos avanços dos processos de exploração da população e dos recursos naturais, e por um desenvolvimento econômico que não se fez acompanhar de melhorias das condições de vida da população pobre.27 Por sua vez, a região metropolitana de Belém destacou-se por apresentar predominância de ICS ‘bom’, o que pode ser decorrente da capital e região adjacente possuir maior concentração de bens e serviços no estado.
No presente estudo, o índice de Moran mostrou relação de dependência entre o ICS e a TDH, o que já era esperado. Embora a hanseníase possa atingir indivíduo pertencente a qualquer classe social, sua incidência é maior nos segmentos mais empobrecidos da sociedade, dada a presença de condições socioeconômicas desfavoráveis e, consequentemente, condições precárias de vida e saúde que facilitam a contaminação e a propagação do bacilo causador da doença.28
Estudo realizado no município de Fernandópolis, São Paulo, no período de 2009 a 2010, também verificou a existência de uma relação estatisticamente significativa entre a hanseníase e o índice de desenvolvimento humano (IDH), atribuída à organização dos serviços de saúde locais e à presença de fatores que favorecem a manutenção da endemia associada à situação de exclusão social a que estão expostos os indivíduos.29
Para se conseguir o controle e possível eliminação da hanseníase, o estado do Pará deve focar as ações nos municípios de maior índice de carência social, planejando atividades que realmente possam responder as necessidades de saúde da população, necessidades estas diferentes segundo os contextos socioeconômico, ambiental, politico, cultural e epidemiológico dos territórios. A Política Nacional de Promoção da Saúde tem como objetivo geral promover a qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde relacionados a seus determinantes e condicionantes.30
Nesta pesquisa, por se tratar de um estudo ecológico transversal, existe a limitação de se verificar a ocorrência dos eventos em um único momento de tempo, além de não se poder traduzir as associações, identificadas em nível coletivo, no plano individual. Outrossim, o uso de fonte de dados secundários também pode gerar limitações em relação à quantidade, qualidade e processamento das informações. Há ainda a limitação da própria técnica utilizada (índice de Moran global), que expressa a autocorrelação espacial considerando-se apenas o primeiro vizinho; contudo, a TDH e o ICS podem ser influenciados por outras formas de associação, como estilo, condição de vida e falta de informação sobre esse tipo de endemia. Além disso, ressalta-se que não houve notificação em 17 municípios do estado do Pará no ano de 2013, o que pode ter comprometido a avaliação realizada no estudo.
Nesse sentido, faz-se necessária a realização de novos estudos sobre a temática, utilizando-se da abordagem prospectiva, na qual essas limitações podem ser minimizadas. O controle da hanseníase é uma tarefa que não pertence apenas ao setor Saúde, deve ser pensada de forma integrada com a Assistência Social, conforme sugerem os resultados do presente estudo, segundo o qual a precariedade de condições sociais também torna o indivíduo vulnerável à infecção e consequente adoecimento.
Tais achados contribuem para substanciar o conhecimento em hanseníase disponível na atualidade, principalmente por se tratar de um estudo realizado no estado do Pará, onde, apesar da endemicidade observada, pesquisas que abordem a temática ainda são escassas, e poucas as produções regionais sobre o tema que verificam a relação entre as condições sociais e a taxa de detecção do agravo.
O presente estudo pode contribuir para o planejamento das políticas de saúde no estado. A identificação das regiões com a população sob maior risco de adoecer fornece subsídio científico para a intensificação das ações de vigilância nessas localidades, favorecendo a redução dos custos mediante ações direcionadas às distintas realidades epidemiológicas no estado, além de apontar para a articulação intersetorial entre Saúde e Assistência Social, com ações voltadas para o controle da hanseníase no Pará.