Introdução
As microcefalias congênitas são descritas como anomalias neurológicas, nas condições em que o encéfalo não se desenvolve adequadamente e o perímetro cefálico (PC) aferido no recém-nascido mostra-se inferior ao esperado para a idade gestacional e o sexo correspondente.1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) define microcefalia como PC menor que -2 desvios-padrão (PC<-2DP), de acordo com o sexo e a idade gestacional ao nascer.2 Tais parâmetros são determinados a partir de análises populacionais e padronização de técnicas de aferição, e conseguinte elaboração de cálculos e gráficos de referência: a curva de Fenton para os nascidos pré-termo (menos de 37 semanas de gestação); e as curvas OMS/2006 para os nascidos a termo (entre 37 e 42 semanas de gestação).1,3
A microcefalia pode estar associada a vários fatores ambientais e/ou genéticos. Entre os fatores ambientais, encontram-se hipóxia perinatal, infecções congênitas por STORCH (sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose e herpes-virose de tipo 2), exposição intrauterina à radiação ionizante, abuso de álcool e/ou drogas, e fenilcetonúria materna. Entre os fatores genéticos, citam-se as alterações monogênicas (mendelianas), anomalias cromossômicas ou distúrbios multifatoriais (poligênicos). Alguns exemplos de síndromes genéticas que cursam com microcefalia são as síndromes de Seckel, Smith-Lemli-Optiz, Apert, Crouzon, Saethre-Chotzen, Pfeiffer e Carpenter.4,5
Para os casos de microcefalia secundária à infecção congênita, são descritos sinais neurológicos como calcificação cerebral, atrofia cerebral, digenesia do corpo caloso, ventriculomegalia e lisencefalia. Os métodos de identificação dessas alterações por imagem são a ultrassonografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética.1,6-8 A maioria das microcefalias são acompanhadas de alterações motoras e cognitivas, que variam segundo o acometimento encefálico.2
A prevalência de microcefalia com PC inferior a três desvios-padrão (PC<-3DP) para idade e sexo, no mundo, entre os anos de 1995 e 2008, foi de 5,9 casos por 100 mil nascidos vivos.9,10 Para o mesmo período, a prevalência de microcefalia foi de 3,7/100 mil na América Latina e de 5,1/100 mil no Brasil, segundo o Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC).9,10 Pesquisa com dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) indicou, para o período de 2000 a 2014, uma média anual de 164 casos de microcefalia; porém, em 2015, foram registrados 1.608 casos, com prevalência de 54,6/100 mil nascidos vivos.11
Em outubro de 2015, seis meses após a confirmação da transmissão autóctone do vírus Zika nos estados do Nordeste brasileiro,12 constatou-se um aumento inesperado da ocorrência de microcefalias, principalmente em Pernambuco, mediante confirmação de 40 casos em crianças nascidas a partir de agosto de 2015.13 Pesquisas contemporâneas também observaram um aumento da ocorrência de microcefalia no país, em comparação aos anos anteriores, principalmente na região Nordeste.1,14 Com base nas evidências levantadas pelas investigações epidemiológicas, o Ministério da Saúde do Brasil foi pioneiro em apontar a implicação do vírus Zika no surto de microcefalia e, ainda em novembro de 2015, declarou a situação como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN).1,13,14
Em 17 de janeiro de 2016, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) informou que outros 17 países do continente americano haviam confirmado transmissão local do vírus Zika.15 Frente à forte suspeita da relação entre o vírus Zika e o aumento das microcefalias, o Comitê Internacional de Regulação de Emergências em Saúde, convocado pela OMS e reunido em 1o de fevereiro de 2016, declarou que o evento constituía uma Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).15
Este estudo teve como objetivo descrever a ocorrência e as características dos casos de microcefalia no estado do Piauí, Brasil, durante a epidemia do vírus Zika em 2015-2016.
Métodos
Trata-se de estudo descritivo dos casos de microcefalia confirmados para relação com processo infeccioso, entre nascidos vivos no Piauí, no período de 1o de janeiro de 2015 a 26 de janeiro de 2016. A investigação deu-se no período de 25 de janeiro a 15 de fevereiro de 2016, conduzida por equipes do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí.
O Piauí, localizado na região Nordeste do Brasil, é composto por 224 municípios. Em 2015, o estado possuía uma população de 3.204.028 habitantes segundo as estimativas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo ano, foram registrados 49.253 nascidos vivos no Sinasc.1,11
Foram utilizados dados do Sinasc e do Registro de Eventos em Saúde Pública (RESP). O Sinasc, desde 1990, é a fonte oficial do Ministério da Saúde sobre os registros de nascimentos, alimentada pela Declaração de Nascido Vivo (DNV). Desde sua implantação, o sistema dispõe de alta especificidade para microcefalia, definida como PC<-3DP das curvas apropriadas para sexo e idade, denominada pela OMS como microcefalia grave. A notificação via DNV compete ao médico que acompanhou o parto, mediante preenchimento do campo reservado à descrição da presença de malformações congênitas, com posterior registro segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), relativo à malformação identificada (campo 34 da DNV). Já a posterior digitação no Sinasc fica restrita aos profissionais cadastrados no sistema. O RESP foi criado em novembro de 2015, com o objetivo de detectar suspeitos de microcefalia e investigar a infecção durante gestação, e consiste de formulário disponível na internet para qualquer profissional de saúde notificar microcefalias, dispondo de critérios mais sensíveis de captação (PC menor ou igual a 32cm, para ambos os sexos). Os profissionais foram orientados a registrar microcefalias detectadas desde 1o de janeiro de 2015, antes da criação do RESP.1,2
Com o objetivo de aumentar a cobertura dos registros de casos de microcefalia, realizou-se busca ativa em prontuários da Maternidade Dona Evangelina Rosa (MDER), centro de referência estadual para atendimento e diagnóstico de casos de microcefalia, e da Clínica Santa Fé (CSF), maior maternidade privada do Piauí.
Em ambos hospitais, a aferição do perímetro cefálico no momento do nascimento foi realizada por um pediatra, utilizando fita métrica. Detectada a microcefalia, uma segunda avaliação era feita em 48 horas. Confirmado o caso, ele era registrado no Sinasc e no RESP,1 e encaminhado para acompanhamento na MDER (hospital de referência), passando pela avaliação de pediatras e neurologistas capacitados para aplicação dos critérios do Ministério da Saúde.1 Os casos confirmados também foram encaminhados para estimulação precoce e acompanhamento psicossocial familiar, via referência.
Os dados dos prontuários foram registrados em formulário semiestruturado, com informações pertinentes à mãe e ao bebê. Foram incluídas as seguintes variáveis:
a) socioeconômicas, demográficas e clínicas da mãe - nome; idade (em anos); data do primeiro pré-natal; escolaridade (série escolar concluída); ocupação (campo aberto); endereço residencial; número de gestações e de abortos (espontâneos ou induzidos) anteriores; presença de exantema ou febre durante a gravidez (sim ou não), com as respectivas datas -;
b) demográficas, antropométricas e clínicas do nascido vivo - nome; sexo (masculino, feminino); data de nascimento; idade gestacional (em semanas); Apgar de primeiro e quinto minutos; perímetro cefálico ao nascer e após 48 horas de nascido (em centímetros); perímetro torácico (em centímetros); peso ao nascer (em gramas); comprimento ao nascer (em centímetros); momento de detecção da microcefalia (intraútero ou pós-parto); local do parto (MDER ou CSF); tipo de parto (normal ou cesáreo) -;
c) resultados de exames laboratoriais para mãe e nascido vivo - marcadores sorológicos e detecção de antígenos para dengue, chikungunya, zika e STORCH (reagente, não reagente, não realizado); foi realizada testagem de anticorpos (IgM, IgG, imuno-histoquímica e teste de neutralização por redução em placas [PRNT]), de antígenos (isolamento viral e cultura bacteriana) e de biologia molecular (reação em cadeia de polimerase [PCR]) em amostras humanas de sangue ou líquor -;
d) sinais detectados nos nascidos vivos por meio de exames de imagem (ultrassonografia, tomografia computadorizada ou ressonância magnética) realizados em todos os casos suspeitos - lesões de calcificação, ventriculomegalia, lisencefalia, atrofia cerebral e digenesia do corpo caloso (presença ou ausência) -;
Foram consideradas as seguintes definições de caso:
1. Caso de microcefalia: nascido vivo com menos de 37 semanas de idade gestacional (IG), apresentando medida do perímetro cefálico abaixo do percentil 3 da curva de Fenton ou recém-nascido com 37 semanas ou mais de IG, apresentando medida do perímetro cefálico menor ou igual a 32cm ao nascer.1-3
2. Caso suspeito para microcefalia relacionada a processo infeccioso: recém-nascido com microcefalia diagnosticada e registrada em prontuário clínico, independentemente da causa básica da lesão, atendido em uma das principais referências estaduais de atendimento (MDER ou CSF) no período de 24 de novembro de 2015 a 26 de janeiro de 2016.
3. Caso confirmado para microcefalia relacionada a processo infeccioso: caso suspeito que apresente alterações sugestivas de infecção por qualquer método de imagem e/ou com diagnóstico laboratorial específico e conclusivo para vírus Zika ou qualquer outro agente infeccioso (STORCH), identificado em amostras do recém-nascido ou da mãe.
4. Caso descartado para microcefalia relacionada a processo infeccioso: caso suspeito com resultados laboratoriais ou de imagem sem alteração sugestiva de infecção por qualquer método de imagem ou por critérios clínicos após investigação (reclassificação do caso de microcefalia após nova avaliação clínica).
5. Caso inconclusivo para microcefalia relacionada a processo infeccioso: caso suspeito que, finalizada a investigação, não apresentou resultados laboratoriais, de imagem ou registros pós-avaliação clínica que possibilitassem a classificação do caso como relacionado a processo infeccioso.
Para o cálculo da prevalência mensal de microcefalia no Piauí, utilizou-se como numerador a soma do número de casos de microcefalia registrados no Sinasc (Código Q.02 da CID-10), no RESP e resultante da busca ativa em prontuários. O denominador constituiu-se do número de nascidos vivos registrados no Sinasc a cada mês. A prevalência foi calculada por 10 mil nascidos vivos.
Para descrição das características dos casos de microcefalia relacionada a processo infeccioso, utilizaram-se dados dos prontuários dos casos confirmados de microcefalia e de suas mães, obtidos nos hospitais supracitados. Os programas adotados foram o Epi Info™ 7.1.5.0, o Microsoft Excel® 2010 e o Tabwin® 3.6b.
Por se tratar de ações de vigilância epidemiológica desenvolvidas por profissionais vinculados a serviços de saúde, no âmbito da situação de emergência em Saúde Pública, o estudo foi isento de submissão a Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Foram observados os aspectos éticos constantes na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 510, de 7 de abril de 2016. Os resultados foram apresentados de modo agregado, garantindo o sigilo individual. O acesso aos dados foi obtido mediante o consentimento das instituições envolvidas.
Resultados
A prevalência estimada para todo o período foi de 13,6 casos/10 mil nascidos vivos. Observou-se aumento da ocorrência de casos de microcefalia a partir de setembro de 2015, com pico em dezembro de 2015 para os casos captados no Sinasc e no RESP, e pico em janeiro de 2016 para os casos da busca ativa hospitalar. Em dezembro de 2015, a prevalência chegou a 75,9/10 mil segundo o Sinasc e 91,6/10 mil segundo o RESP; e em janeiro de 2016, 84,3/10 mil com base na busca ativa hospitalar (Figura 1).
a) Opas: Organização Pan-Americana da Saúde.
b) Sinasc: Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos.
c) Resp: Registro de Eventos em Saúde Pública.
d) Eclamc: Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas.
Atenderam à definição de caso suspeito para microcefalia relacionada a processo infeccioso 75 nascidos vivos investigados: 24 estavam registrados tanto no RESP como Sinasc, 34 somente no RESP, três somente no Sinasc e 14 não se encontravam registrados em nenhum dos bancos consultados. Afinal, foram classificados 34 casos confirmados para microcefalia relacionada a processo infeccioso, 20 foram descartados e 21 foram classificados como inconclusivos por não possuírem resultados de exames laboratoriais e de imagem e registros clínicos em prontuário que permitissem sua classificação como relacionados a processo infeccioso.
Os casos de microcefalia confirmada como relacionada a processo infeccioso nasceram a partir da semana epidemiológica 39 de 2015; nas semanas epidemiológicas subsequentes, a notificação de casos foi contínua, com maior concentração entre outubro e novembro de 2015 (Figura 2).
Dos 34 casos confirmados, 24 residiam em Teresina e dois em Timon, município do Maranhão, vizinho a Teresina. Os demais oito casos residiam nas cidades de Altos, Barra, Brasileira, Itainópolis, Piripiri, Porto, Ribeiro Gonçalves e União (dados não apresentados em tabela).
As mães dos casos confirmados tinham mediana de idade de 25 anos com intervalo interquartil (IIQ) de oito anos, 34 apresentaram gravidez única e 22 tiveram parto cesáreo. Dez mães referiram ter apresentado exantema na gravidez, seis delas no primeiro trimestre de gravidez. Oito mães apresentaram febre durante a gravidez, cinco delas no primeiro trimestre de gestação. Sete mães apresentaram exantema e febre concomitantes e sem causa definida, cinco delas com manifestação no primeiro trimestre de gestação (dados não apresentados em tabela).
Dos nascidos vivos confirmados para microcefalia relacionada a processo infeccioso (n=34), 21 eram do sexo feminino, com mediana de idade gestacional de 38 semanas (IIQ=3). O PC ao nascer teve mediana de 29 centímetros (IIQ=2), e o PC medido após 48 horas do parto teve mediana de 33 centímetros (IIQ=3). O perímetro torácico teve mediana de 24 centímetros (IIQ=3). As medianas de peso e comprimento ao nascer foram, respectivamente, de 2.372 gramas (IIQ=712) e 43 centímetros (IIQ=2) (dados não apresentados em tabela).
Entre as mães que realizaram exames laboratoriais para detecção de dengue, chikungunya e vírus Zika, foram identificados dois resultados IgM reagentes: um para dengue e outro para chikungunya. Não foram obtidos resultados positivos para o vírus Zika. Quanto aos nascidos vivos, os exames laboratoriais para dengue, chikungunya e vírus Zika foram realizados em 11 investigados, com resultado IgM reagente para o vírus Zika em um exame de um único indivíduo (Tabela 1).
Reagente/realizado | Exames das mães | Exames dos nascidos vivos | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Dengue n | Chikungunya n | Zika n | Dengue n | Chikungunya n | Zika n | |
IgMa | 1/17 | 1/15 | 0/1 | 0/11 | 0/11 | 1/1 |
PCRb | - | - | 0/8 | - | - | 0/6 |
Antígeno NS1 | 0/7 | - | - | 0/5 | - | - |
Isolamento viral | - | - | - | - | - | - |
PRNTc | - | - | - | - | - | - |
a) IgM: imunoglobulina M.
b) PCR: teste de reação em cadeia de polimerase.
c) PRNT: teste de soroneutralização por redução em placas.
Já entre as mães que fizeram os exames preconizados para investigação de STORCH, houve confirmação de um caso de toxoplasmose e outro de sífilis. Onze nascidos vivos realizaram tais exames, resultando em um resultado positivo para sífilis no teste treponêmico (FTA-ABS) (Tabela 2).
Reagente/realizado | Sífilis | Toxoplasmose | Rubéola | Citomegalovírus | Herpes | |
---|---|---|---|---|---|---|
n | n | n | n | n | ||
Mães | IgMa | - | 1/19 | 0/16 | 0/16 | 0/14 |
IgGb | - | 9/16 | 15/18 | 16/17 | 15/16 | |
VDRLc | 3/17 | - | - | - | - | |
FTA-absd | 1/3 | - | - | - | - | |
PCRe | - | - | - | - | - | |
Nascidos vivos | IgMa | - | 0/11 | 0/11 | 0/11 | 0/11 |
IgGb | - | 4/10 | 5/10 | 10/11 | 9/11 | |
VDRLc | 1/11 | - | - | - | - | |
FTA-absd | 1/1 | - | - | - | - | |
PCRe | - | - | - | - | - |
a) IgM: imunoglobulina M.
b) IgG: imunoglobulina G.
c) VDRL: teste não treponêmico para anticorpos de doenças venéreas.
d) FTA-abs: teste de absorção de anticorpos treponêmicos fluorescentes.
e) PCR: teste de reação em cadeia de polimerase.
Foram realizados exames de imagem em 34 nascidos vivos com microcefalia: sete foram submetidos a ultrassonografia transfontanelar, 34 a tomografia computadorizada e dois a ressonância magnética. Identificou-se 34 bebês com calcificações, 23 com atrofias cerebrais, 14 com lisencefalias, 12 com ventriculomegalias e seis com digenesia. Quatro nascidos vivos apresentaram mais de um exame de tomografia computadorizada, realizada em períodos diferentes, totalizando 38 exames (Tabela 3).
Sinais | USG TF a | TC b | RM c |
---|---|---|---|
n=7 | n=38 d | n=2 | |
Calcificações | 5 | 28 | 1 |
Ventriculomegalia | 4 | 7 | 1 |
Lisencefalia | 1 | 12 | 1 |
Atrofia cerebral | 5 | 16 | 2 |
Disgenesia do corpo caloso | - | 6 | - |
a) USG TF: ultrassonografia transfontanelar.
b) TC: tomografia computadorizada.
c) RM: ressonância magnética.
d) 4/34 dos nascidos vivos confirmados fizeram dois exames de tomografia computadorizada, totalizando 38 resultados.
Discussão
Os achados demonstram um surto de microcefalia em nascidos vivos no Piauí, a partir de setembro de 2015. A prevalência durante o surto foi 2,6 vezes maior que a prevalência no Brasil e 3,7 vezes maior que na América Latina, quando comparada à apresentada no estudo do ECLAMC referente ao período de 1995 a 2008.9 Esses aumentos deram-se posteriormente ao comunicado da OPAS sobre a confirmação da circulação do vírus Zika no Brasil e ao surgimento de casos nos estados vizinhos.16
O aumento das microcefalias no Piauí é consistente com surtos em estados vizinhos, como Pernambuco, Paraíba e Bahia.17,18 Além disso, a introdução do vírus Zika foi anterior ao aumento das microcefalias no Sinasc, uma vez que a literatura aponta que o vírus circula no Brasil desde outubro de 2014.12,13 A confirmação laboratorial da infecção no primeiro trimestre de gestação fortaleceu a hipótese de possível vínculo entre a doença do vírus Zika e os casos de microcefalia.19
Em 2015, a maior incidência de casos prováveis de dengue no Piauí ocorreu em abril20 e a maior prevalência de microcefalia em dezembro, tendo transcorrido um período de nove meses entre os dois eventos. Sendo os quadros clínicos semelhantes, fator somado à não implantação da vigilância do vírus Zika no Brasil naquele tempo, é possível que em 2015 os casos de infecção por Zika tenham sido notificados como casos prováveis de dengue, reforçando a hipótese de possível infecção das mães dos bebês microcéfalos no primeiro trimestre de gravidez.19,21 O fato de a infecção pelo vírus Zika não ter sido expressiva no Piauí, em seu início, pode estar relacionado com a infestação do mosquito Aedes aegypti nos municípios do estado, especialmente na capital, Teresina, onde se apresentava satisfatória: índice de infestação predial abaixo de 1,0. Diferentemente, as capitais dos estados vizinhos encontravam-se em situação de alerta, com índices de infestação predial entre 1,0 e 3,9.22
Outro fator importante a considerar foi a presença de indicadores laboratoriais para infecção recente, tanto para dengue como para chikungunya e STORCH, nas mães dos nascidos vivos investigados, embora se verificasse ausência de expressão desses eventos nos filhos.
Um recém-nascido foi IgM reagente para Zika, sugerindo associação entre microcefalia e infecção prévia pelo vírus. A amostra sanguínea foi coletada com 21 dias de vida do neonato e os dados de IgG para Zika, tanto na mãe como na criança, ausentes, além do fato de a mãe da criança não apresentar febre e exantema na gravidez; no entanto, a possibilidade de infecção recente do neonato não foi descartada. Vale lembrar que, segundo a literatura, infecções fetais por dengue ou chikungunya são raras, geralmente não teratogênicas. As mães apresentaram alta frequência de anticorpos IgG para STORCH (cerca de 94% daquelas que realizaram exames laboratoriais), o que, possivelmente, contribuiu para a não transmissão vertical dessas doenças.17,19,23-25 E embora apenas 10/34 mães investigadas tivessem manifestado sintomas de exantema e febre na gravidez, a possível infecção assintomática pelo vírus Zika aparece como hipótese para o achado de microcefalia em seus filhos.12,17
Este estudo contribui com a validação dos achados de imagem para identificação de casos de microcefalia por processo infeccioso, uma vez que 33/34 casos de microcefalia de origem infecciosa foram identificados por imagem, e somente um foi confirmado por exames laboratoriais. Estudos já evidenciavam a possibilidade de os exames de imagem serem um indicativo anterior às confirmações por achados laboratoriais dos casos de microcefalia por processo infeccioso, evidência ratificada nesta investigação.6
A prevalência calculada - com a devida cautela - pode ser considerada fidedigna, face ao método de captação de casos pelos bancos de dados, isso porque o monitoramento dos casos passa pelo adequado preenchimento e análise desses bancos junto aos locais de atendimento às gestantes, que necessitam de pessoal capacitado para a análise pautada em outros registros (por exemplo, SIM versus Sinasc, ou até mesmo RESP versus Sinasc). Estudo realizado em Teresina no ano de 2002 mostrou a confiabilidade dos registros de nascidos vivos no Sinasc como boa,26 podendo servir de parâmetro de captação dos casos. Entretanto, outra pesquisa de âmbito nacional mostrou que 40% dos casos de anomalias congênitas identificadas não foram notificados no Sinasc, recomendando-se cautela no uso destas informações sobre nascidos vivos no Brasil, para esta variável.26,27
Este estudo alerta sobre a baixa qualidade do atendimento pré-natal realizado no Brasil, em particular no Nordeste: metade das mães aqui investigadas não realizaram os exames laboratoriais preconizados na gravidez, corroborando estudos que descrevem o pré-natal no país como parcialmente adequado, haja vista a não realização das consultas mínimas e dos exames requeridos, com reflexo na morbimortalidade materno-infantil.28-30
Como uma primeira limitação do estudo, houve dificuldade de coleta de informações devido à difícil leitura ou falta de dados nos prontuários revisados, prejudicando a classificação dos casos (principalmente quanto à oportunidade de coleta das amostras maternas no pré-natal e no pós-parto) e reduzindo o número casos que poderiam ser analisados: foram 21 recém-nascidos com dados inconclusivos, de um montante de 75 investigados. Para minimizar essa limitação, foram priorizadas revisões por profissionais de saúde, além de consultas aos clínicos prescritores para solução de dúvidas.
Outra limitação a ser mencionada foi a dificuldade de obtenção de diagnóstico dos processos infecciosos, dadas as diferentes oportunidades de coleta dos exames, tanto nos nascidos vivos como nas mães, impactando os resultados apresentados ao não permitir saber, precisamente, se a infecção da mãe atingiu o feto. Procurou-se neutralizar essa dificuldade com criteriosa revisão dos sinais clínicos. Para minimizar a limitação decorrente das reações cruzadas entre arbovírus nos testes diagnósticos, consideraram-se os exames realizados no Laboratório Central de Saúde Pública do Piauí, referência estadual.
Conclui-se que houve um surto de microcefalia, possivelmente provocado pela introdução do vírus Zika no Piauí. Esta conclusão se sustenta na relação temporal entre a ocorrência das epidemias de Zika e microcefalia e a detecção de infecção pelo vírus Zika em um neonato. As microcefalias foram detectadas via diagnóstico clínico e de imagem, com registro nos sistemas de informações em saúde oficiais - Sinasc e RESP -, a despeito das dificuldades para se fechar um diagnóstico via exames laboratoriais.
Foram feitas as seguintes recomendações à Secretaria do Estado de Saúde do Piauí: (I) monitoramento da tendência das microcefalias e de outras anomalias congênitas via análises comparadas do Registro de Eventos em Saúde Pública - RESP - e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos - Sinasc -; (II) capacitação dos serviços para registro nesses sistemas; (III) investigação da infecção pelo vírus Zika nas gestantes com exantema e nos nascidos vivos microcéfalos; e (IV) inclusão da pesquisa de infecção pelo vírus Zika no pré-natal. Recomenda-se, ademais, a realização de outros estudos ecoepidemiológicos sobre prevalência e competência das arboviroses na infecção humana, concomitante com o desenvolvimento de estudos de coorte destinados a medir o risco de infecção pelo vírus Zika, ou aferir fatores associados a manifestações de microcefalia ou outras malformações congênitas.