Introdução
estatística de mortalidade é uma das ferramentas mais utilizadas nas análises da situação de saúde da população. O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), principal fonte de dados sobre óbitos no Brasil, vem se aperfeiçoando de modo progressivo e consistente. Em 2011, sua cobertura era de 96,1% e na maioria dos estados das regiões Sul e Sudeste já havia alcançado 100%.1 Igualmente, a qualidade do diagnóstico da causa básica do óbito tem melhorado, haja vista a redução na proporção dos óbitos classificados como devidos a causas mal definidas. Entre 1980 e 1986, em média, 21,2% do total de óbitos no Brasil eram classificados nesse grupo de causas. Desde então, essa proporção passou a decrescer, alcançando 14,3%, 10,4% e 5,8%, respectivamente em 2000, 2005 e 2014.2
Entre as ações apontadas como importantes para a melhoria do SIM, destacam-se iniciativas do Ministério da Saúde, a exemplo da inserção do Programa ‘Redução do percentual de óbitos com causa mal definida’ no Plano Plurianual 2004-2007, definindo como meta a redução da proporção desses óbitos para menos de 10% a partir de 2006, especialmente no Norte e Nordeste do país, regiões onde esse percentual encontrava-se em torno de 20% em alguns municípios. Para a instituição da investigação do óbito com causa mal definida - que deve ser realizada nas unidades de saúde, cartórios, Instituto Médio Legal (IML) e Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) -, foi elaborado um manual específico. Além dessas orientações sobre como proceder a tal investigação, foram disponibilizados os modelos da Ficha de Investigação de Óbitos e do formulário ‘Autópsia Verbal’ (AV). Esta estratégia de investigação, estabelecida no país em 2008, consiste na realização de entrevistas domiciliares padronizadas com pessoas próximas do falecido, buscando esclarecer a causa da morte em áreas geográficas onde o SIM apresenta baixa cobertura e a informação sobre óbitos não é confiável. As informações obtidas nessas entrevistas devem ser analisadas por médicos (generalistas) certificadores.3,4 Outras importantes medidas tomadas pelo Ministério foram: (i) a criação da Rede Nacional de Serviços de Verificação de Óbitos em 2006, com a finalidade de elucidar a causa de óbitos naturais com ou sem assistência médica, que não tivessem um diagnóstico preciso;5 e (ii) a regulamentação de incentivos financeiros para implantação e manutenção de ações e serviços públicos estratégicos de vigilância em saúde, inclusive para os SVOs.4
Entre 1990 e 2004, as cinco grandes regiões do Brasil apresentaram redução na proporção dos óbitos por causas mal definidas, especialmente o Nordeste (77,4%) e o Centro-Oeste (60,5%).6 Progressivamente, com o emprego das ações descritas no parágrafo anterior, vários estados da federação passaram a exibir resultados favoráveis àquele indicador, inclusive redução nos índices de subnotificação. Por exemplo, em uma amostra de municípios da macrorregião Nordeste de Minas Gerais, no ano de 2007, a AV permitiu o esclarecimento de 87,0% das causas de óbitos investigados e detectou 206 óbitos que não haviam sido registrados no SIM.7 Em Fortaleza, estado do Ceará, mesmo já se dispondo de SVO e de IML, a aplicação da metodologia de autópsia verbal reduziu de 21,7% para 6,1% a proporção dos óbitos por causas mal definidas, no período de 2003 a 2008.8
Salienta-se, entretanto, que a despeito do decréscimo obtido na mortalidade por causas mal definidas no Brasil, sua magnitude ainda pode ser reduzida se comparada aos níveis apresentados pelos Estados Unidos, Canadá, México e Chile, países onde a participação de óbitos assim classificados já era de 1,6%, 1,2%, 1,7% e 2,6%, respectivamente, no ano de 2012.9
No estado do Tocantins, situado na região Norte do Brasil, a proporção de óbitos por causas mal definidas era de 28,6% em 1998.2 As atividades do SVO no estado tiveram início nesse mesmo ano, porém atrelado ao IML, e somente em 2007 o serviço foi implantado oficialmente.10
Já se encontra estabelecido que a avaliação em saúde é fundamental para orientar os processos de implantação, consolidação e reformulação das práticas, programas e políticas públicas do setor, além de informar sobre o cumprimento das metas estabelecidas.11 A possibilidade de contribuir com a identificação de padrões na evolução dos níveis dos indicadores de morbimortalidade e na estrutura de suas causas demonstra a importância e utilidade dos estudos de séries temporais para a avaliação da tendência do evento investigado e do impacto produzido por possíveis intervenções. O presente estudo teve como objetivo avaliar a tendência temporal dos óbitos por causas mal definidas no estado de Tocantins e em sua capital, Palmas.
Métodos
A partir da informação sobre os óbitos de residentes no Tocantins e na capital Palmas, realizou-se um estudo epidemiológico empregando duas diferentes tipologias: (i) estudo ecológico de série temporal, de 1998 a 2014; e (ii) estudo descritivo, transversal, com análise individual das características dos óbitos por causas mal definidas, entre 1998 e 2014. Neste último ano, Tocantins apresentava índice de Gini de 0,468 e uma população estimada de 1.497.000 habitantes, dos quais 265.409 residentes em Palmas.12,13
Os dados sobre os óbitos foram extraídos do SIM, disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) (acesso em 01/02/2017), enquanto aqueles referentes aos óbitos necropsiados provieram do SVO de Palmas. As causas de óbitos mal definidas correspondem ao Capítulo XVIII da 10a Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), na qual, sob a denominação de ‘Sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório não classificados em outra parte’, compreendem as categorias R00 a R99.14
Calculou-se a mortalidade proporcional (%) por causas mal definidas, ano a ano, para Tocantins e Palmas, cujos valores foram representados em uma curva linear. A análise da evolução temporal dessa mortalidade foi realizada mediante a descrição da magnitude e flutuações daquele indicador, sua variação percentual (D%) ano a ano, e pela variação da razão entre os óbitos por causas mal definidas e aqueles com causas definidas.
A tendência temporal foi avaliada com o emprego da Regressão Linear Segmentada,15 tendo a mortalidade proporcional por causas mal definidas como variável dependente (Y) e o ano-calendário como variável independente (X), admitindo p<0,05. Esse tipo de regressão permite o ajuste de múltiplos modelos lineares aos dados para diferentes intervalos de X, e testa se um ou mais pontos devem ser adicionados ao modelo, pelo método de permutação de Monte Carlo. No modelo final, cada ponto de inflexão indica uma mudança na tendência. Para essa análise, utilizou-se o software Joinpoint Regression versão 4.1.0.
Foram calculadas as frequências absoluta e relativa (%) das características sociodemográficas dos óbitos por causas mal definidas de acordo com sexo (masculino; feminino), faixa etária (em anos: 0-14; 15-29; 30-59; 60 e mais), raça/cor da pele (branca; preta; parda; indígena; amarela), escolaridade (em anos de estudo: nenhum; 1-11; 12 e mais) e estado civil (solteiro; casado; viúvo; outro). Com relação aos óbitos necropsiados encontrados no SVO de Palmas, foram considerados aqueles referentes ao ano de 2014 por apresentarem melhor completitude, e analisados apenas para o estado do Tocantins como um todo, em razão do pequeno número de óbitos (119). Sobre estes, foram calculadas as frequências das mesmas variáveis sociodemográficas citadas, acrescidas de renda familiar (em salários mínimos: <1; 1-2; 3-4; 5-8; 9 e mais) e local de residência (Palmas; Porto Nacional; outros municípios; outros estados). Porto Nacional foi selecionado em virtude de ser o segundo município com maior número de necropsias realizadas. No cálculo das proporções relativas aos estratos de cada variável, foram excluídos os óbitos cuja informação sobre a variável era ignorada.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Parecer nº 2.088.282) e recebeu anuência da Secretaria de Saúde do Estado do Tocantins (SES/Tocantins) para acesso às bases de dados do SVO, conforme estabelece a Portaria nº 796/2014 da SES/Tocantins, que regulamenta a pesquisa científica nas unidades de saúde daquele estado.
Resultados
Mortalidade por causas mal definidas no Tocantins
Em 1998, os óbitos por causas mal definidas constituíam 28,6% (n=1.173) do total de óbitos de residentes no estado do Tocantins, ocupando a primeira posição entre todos os grupos de causas; 53,8% deles não receberam assistência médica. Em 2014, a proporção de óbitos por esse grupo de causas reduziu-se a 3,3% (n=236) (queda de 88,5%) e passou a ocupar a 7ª posição; do total correspondente a este último ano, 5,9% não receberam assistência médica, representando redução de 89,0% ao longo do período estudado (dados não apresentados).
As maiores variações anuais positivas da mortalidade proporcional por causas mal definidas foram observadas em 2008 (25%) e 2007 (20,0%). Reduções mais acentuadas ocorreram em 2006 (-45,5%), 2003 (-44,1%), 2002 (-40,7%) e 2010 (-38,6%). Entre o início e o final do período de estudo, a razão entre os óbitos por causas mal definidas e aqueles com causas definidas passou de 0,76 para 0,03 - embora a queda tenha sido maior a partir de 2003 (0,07), quando o valor dessa razão foi, em média, de 0,04 (Tabela 1 e Figura 1).
Ano | Tocantins | Palmas | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | MPa (%) | D% b | OCMD/OCDc | n | MPa (%) | D% b | OCMD/OCDc | |
1998 | 1.173 | 28,6 | xd | 0,76 | 67 | 20,2 | x d | 0,25 |
1999 | 1.050 | 24,6 | -14,0 | 0,33 | 32 | 8,3 | -58,9 | 0,09 |
2000 | 926 | 21,2 | -13,8 | 0,27 | 24 | 5,5 | -33,7 | 0,06 |
2001 | 951 | 19,9 | -6,1 | 0,25 | 36 | 7,9 | 43,6 | 0,09 |
2002 | 569 | 11,8 | -40,7 | 0,13 | 9 | 1,8 | -77,2 | 0,02 |
2003 | 327 | 6,6 | -44,1 | 0,07 | 9 | 1,8 | - | 0,02 |
2004 | 255 | 5,0 | -24,2 | 0,05 | 1 | 0,2 | -88,9 | 0,00 |
2005 | 276 | 5,5 | 10,0 | 0,06 | 7 | 1,4 | 600,0 | 0,01 |
2006 | 155 | 3,0 | -45,5 | 0,03 | 3 | 0,6 | -57,1 | 0,01 |
2007 | 201 | 3,6 | 20,0 | 0,04 | 8 | 1,5 | 150,0 | 0,01 |
2008 | 262 | 4,5 | 25,0 | 0,05 | 21 | 3,5 | 133,3 | 0,04 |
2009 | 268 | 4,4 | -2,2 | 0,05 | 8 | 1,2 | -65.7 | 0,01 |
2010 | 173 | 2,7 | -38,6 | 0,03 | 5 | 0,7 | -41,7 | 0,01 |
2011 | 204 | 3,1 | 14,8 | 0,03 | 14 | 1,8 | 157,1 | 0,02 |
2012 | 209 | 3,1 | - | 0,03 | 15 | 1,9 | 5,8 | 0,02 |
2013 | 229 | 3,3 | 6,5 | 0,03 | 18 | 2,1 | 10,5 | 0,02 |
2014 | 236 | 3,3 | - | 0,03 | 22 | 2,4 | 14,3 | 0,02 |
a) MP: mortalidade proporcional.
b) D%: variação anual de mortalidade proporcional.
c) OCMD/OCD: razão entre o número de óbitos por causas mal definidas e por causas definidas.
d) x: dado omitido.
A análise de regressão linear segmentada indicou tendência de declínio da mortalidade por causas mal definidas, com pontos de inflexão nos períodos 1998-2004 e 2004-2014, apresentando declives (variação percentual anual média no período), respectivamente, de -4,14 (p=0,001) e -0,14 (p=0,324).
Entre os óbitos por causas mal definidas ocorridos no estado e que tinham essa informação registrada, a proporção no sexo masculino foi de 57,4% em 1998, e de 68,1% em 2014. Em cada um desses dois anos, predominaram a faixa etária de 60 anos e mais (64,1% e 55,3%), raça/cor da pele parda (51,9% e 62,5%), estado civil solteiro (42,2% e 39,8%) e nenhuma escolaridade (95,5% e 42,1%); em 2014, porém, 54,1% dos óbitos por causas mal definidas eram de falecidos com 1-11 anos de escolaridade, e apenas 4,5% eram da raça/cor da pele indígena (Tabela 2). Em 1998, as variáveis que apresentaram maiores percentuais de informação ignorada ou não registrada foram raça/cor da pele (85,5%), escolaridade (80,1%) e estado civil (47,6%); e em 2014, escolaridade (32,6%) e estado civil (21,2%).
Características | Tocantins | Palmas | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1998 (N=1.173) | 2014 (N=236) | 1998 (N=67) | 2014 (N=22) | |||||
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Sexo | ||||||||
Masculino | 671 | 57,4 | 158 | 68,1 | 34 | 51,5 | 17 | 77,3 |
Feminino | 499 | 42,6 | 74 | 31,9 | 32 | 48,5 | 5 | 22,7 |
Total | 1.170 | 100,0 | 232 | 100,0 | 66 | 100,0 | 22 | 100,0 |
Faixa etária (em anos) | ||||||||
0-14 | 94 | 8,3 | 19 | 8,4 | 6 | 11,0 | - | - |
15-29 | 54 | 4,8 | 16 | 7,1 | 5 | 9,3 | 4 | 19,0 |
30-59 | 258 | 22,8 | 66 | 29,2 | 13 | 24,1 | 9 | 42,9 |
≥60 | 726 | 64,1 | 125 | 55,3 | 30 | 55,6 | 8 | 38,1 |
Total | 1.132 | 100,0 | 226 | 100,0 | 54 | 100,0 | 21 | 100,0 |
Raça/cor da pele | ||||||||
Branca | 76 | 29,5 | 45 | 20,1 | 9 | 22,5 | 7 | 33,3 |
Preta | 34 | 13,2 | 29 | 12,9 | 5 | 12,5 | 4 | 19,0 |
Parda | 134 | 51,9 | 140 | 62,5 | 24 | 60,0 | 10 | 47,7 |
Indígena | 7 | 2,7 | 10 | 4,5 | - | - | - | - |
Outra | 7 | 2,7 | - | - | 2 | 5,0 | - | - |
Total | 258 | 100,0 | 224 | 100,0 | 40 | 100,0 | 21 | 100,0 |
Escolaridade (em anos de estudo) | ||||||||
Nenhuma | 336 | 95,5 | 67 | 42,1 | 13 | 86,6 | 2 | 20,0 |
1-11 | 12 | 3,4 | 86 | 54,1 | 1 | 6,7 | 6 | 60,0 |
≥12 | 4 | 1,1 | 6 | 3,8 | 1 | 6,7 | 2 | 20,0 |
Total | 352 | 100,0 | 159 | 100,0 | 15 | 100,0 | 10 | 100,0 |
Estado civil | ||||||||
Solteiro | 401 | 42,2 | 74 | 39,8 | 20 | 38,5 | 6 | 35,3 |
Casado | 386 | 40,6 | 39 | 21,0 | 18 | 34,6 | 2 | 11,8 |
Viúvo | 147 | 15,5 | 40 | 21,5 | 12 | 23,1 | 1 | 5,9 |
Outro | 16 | 1,7 | 33 | 17,7 | 2 | 3,8 | 8 | 47,0 |
Total | 950 | 100,0 | 186 | 100,0 | 52 | 100,0 | 17 | 100,0 |
a) Excluídos os óbitos cuja informação sobre a variável era ignorada.
Dos 3.089 óbitos classificados como devidos a causas mal definidas entre 2007 e 2014 no Tocantins, 1.307 cadáveres foram encaminhados ao SVO do estado, onde todos foram necropsiados. Os demais (1.782) permaneceram sem esclarecimento das causas básicas de óbito e, desses, 159 (8,9%) eram de residentes em Palmas.
Em 2014, dos 139 municípios do Tocantins, 17 (12,2%) ainda apresentavam proporção de óbitos por causas mal definidas igual ou superior a 10%. Todos esses 17 municípios eram municípios de pequeno porte: 3 somavam populações entre 10.579 e 16.016 habitantes; e 14, entre 7.236 e 10.091 habitantes.
Na Tabela 3, verifica-se que, dos 119 óbitos submetidos à necropsia em 2014, 53,8% eram do sexo masculino, 16,0% tinham 60 e mais anos de idade, 53,1% eram da cor da pele parda, 36,7% contavam com ensino fundamental incompleto, 33,0% tinham renda entre 1 e 2 salários mínimos, 48,7% residiam em Palmas e 7,6% em Porto Nacional.
Características | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 64 | 53,8 |
Feminino | 55 | 46,2 |
Total | 119 | 100,0 |
Faixa etária (em anos) | ||
0-14 | 10 | 4,3 |
15-29 | 7 | 4,3 |
30¬-59 | 44 | 8,4 |
≥60 | 53 | 16,0 |
Total | 114 | 100,0 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 31 | 27,4 |
Preta | 22 | 19,5 |
Parda | 60 | 53,1 |
Total | 113 | 100,0 |
Escolaridade | ||
Nenhuma | 27 | 24,8 |
Ensino fundamental incompleto | 40 | 36,7 |
Ensino fundamental completo | 12 | 11,0 |
Ensino médio incompleto | 8 | 7,3 |
Ensino médio completo | 14 | 12,8 |
Ensino superior completo | 8 | 7,4 |
Total | 109 | 100,0 |
Renda familiar (em salários mínimos) | ||
<1 | 31 | 27,0 |
1-2 | 38 | 33,0 |
3-4 | 29 | 25,2 |
5-8 | 12 | 10,4 |
≥9 | 5 | 4,4 |
Total | 115 | 100,0 |
Local de residência | ||
Palmas | 58 | 48,7 |
Porto Nacional | 9 | 7,6 |
Outros municípiosb | 44 | 37,0 |
Outros estadosc | 8 | 6,7 |
Total | 119 | 100,0 |
a) Foram incluídos apenas os óbitos com informação registrada sobre cada variável.
b) De nenhuma a quatro necropsias por município do interior do estado do Tocantins.
c) Referem-se aos estados do Pará, Mato Grosso e Goiás, vizinhos ao Tocantins.
Fonte: Ficha de Atendimento do Serviço Social, aplicada às famílias enlutadas no SVO de Palmas, TO.
Nota:
Total de óbitos por causas mal definidas em Tocantins em 2014 = 1.173.
Mortalidade por causas mal definidas em Palmas
Do total dos óbitos de residentes em Palmas, 20,2% (n=67) e 2,4% (n=22) tiveram as causas classificadas como mal definidas, respectivamente em 1998 e 2014 (redução de 88,1%). Esse grupo de causas de óbito ocupava a 1ª posição, quando comparado a todos os grupos de causas, e 53,7% não receberam assistência médica; em 2014, os óbitos por causas mal definidas passaram a ocupar a 12ª posição e não houve registro de óbito sem assistência médica (dados não apresentados).
Variações anuais positivas da mortalidade proporcional por causas mal definidas ocorreram, principalmente, em 2011 (157,1%), 2007 (150,0%) e 2008 (133,3%), e as maiores reduções em 2004 (-88,9%), 2002 (-77,2%) e 2009 (-65,7%). Flutuações mais elevadas resultaram de pequenos valores nessa mortalidade. Considerando-se apenas o ano inicial (1998) e o final (2014) do período selecionado, houve um declínio de 92,0% (de 0,25 para 0,02) na razão entre os óbitos por causas mal definidas e aqueles com causas definidas (Tabela 1 e Figura 1).
A análise de regressão linear segmentada indicou que a tendência de queda da mortalidade proporcional por causas mal definidas foi significante, estatisticamente, apenas no período 1998-2000, quando a variação percentual anual média no período foi de -7,92 (p<0,005). O outro ponto de inflexão ocorreu em 2000-2014, sendo a variação de -0,17 (p=0,138); ou seja, esta queda não foi significante estatisticamente, indicando certo grau de estabilidade.
No ano de 1998, em Palmas, 51,5% desses óbitos com a informação registrada eram do sexo masculino, 55,6% se encontravam na faixa etária de 60 anos e mais, 86,6% não tinham escolaridade, 60,0% eram pardos e 38,5% solteiros. Em 2014, 77,3% dos óbitos por causas mal definidas notificados em Palmas eram do sexo masculino, 42,9% tinham 30-59 anos de idade, 60% contavam 1-11 anos de escolaridade, 47,7% eram pardos e 35,3% solteiros (Tabela 2). Em 1998, raça/cor da pele (40,3%) e escolaridade (77,6%) foram as variáveis com maior proporção de informação ignorada/não registrada; e em 2014, escolaridade (68,8%), estado civil (46,9%) e raça/cor da pele (34,4%).
Discussão
No período de 1998 a 2014, houve um acentuado e significante declínio na mortalidade proporcional por causas mal definidas, no Tocantins e em Palmas, especialmente nos cinco primeiros anos desse período. Apesar da melhoria observada no ano de 2014, alguns municípios do estado ainda apresentavam elevada proporção de óbitos por esse grupo de causas, bem como campos da Declaração de Óbito (DO) sem preenchimento da informação. Também foi expressiva a redução desses óbitos sem assistência médica, principalmente em Palmas, onde, em 2014, não houve registro de mortes nessa categoria entre aqueles classificados como causas mal definidas. A maioria dos óbitos no grupo de causas aqui analisado era de indivíduos do sexo masculino, idosos e de baixa escolaridade.
De modo geral, a tendência de queda exibida pela mortalidade por causas mal definidas no Tocantins foi semelhante à observada para o Brasil como um todo, sobretudo a partir do final dos anos de 1990.16-18 A meta de menos de 10% definida pelo Ministério da Saúde como aceitável para essa mortalidade para as regiões Norte e Nordeste do Brasil3 foi atingida a partir de 1999, em Palmas, e em 2003 no Tocantins. Patamares mais baixos vêm sendo alcançados de modo mais consistente, particularmente na capital, desde 2010, quando os valores dessa mortalidade passaram a ficar mais próximos aos de alguns países desenvolvidos.9 Apesar do avanço apresentado, o valor médio do indicador no Tocantins evidencia que as ações voltadas para melhoria da qualidade das informações sobre mortalidade necessitam ser intensificadas, principalmente nos 17 municípios onde a proporção dos óbitos por causas mal definidas ainda não atingiu a meta preconizada. Como muitos desses municípios são de pequeno porte populacional, uma das hipóteses para explicar esse achado pode ser a baixa cobertura e/ou qualidade de assistência médica, problemas que, sabidamente, se refletem no diagnóstico da causa básica do óbito. Outra hipótese, igualmente plausível, seria a existência de entraves operacionais e de fluxo no encaminhamento dos falecidos para o SVO de Palmas.
Não foi possível dispor de documentos que comprovassem, efetivamente, a consecução de iniciativas com o objetivo de reduzir a proporção de óbitos por causas mal definidas no Tocantins, à exceção da implantação do SVO em 1998.10 Entretanto, de acordo com informações verbais de técnicos da Secretaria de Saúde, desde 2008 o estado: (i) realiza busca ativa de óbitos e nascidos vivos; (ii) aderiu ao formulário ‘Autópsia Verbal’ para investigação de óbitos por causa mal definidas; (iii) passou a monitorar tais investigações, (iv) capacita médicos e codificadores das causas de óbitos para o adequado preenchimento da DO; e (v) faz parcerias com núcleos hospitalares, para análise de prontuários e definição da causa básica dos óbitos.
Durante o período observado, ocorreram progressos na atenção à saúde no Brasil no que tange à organização da estrutura, ampliação do acesso, avanços na quantidade e qualidade dos recursos humanos, assim como na incorporação de novas práticas de cuidados primários, entre outros. É possível que também no Tocantins tenham ocorrido tais melhorias, as quais, por certo, se refletem na qualidade da informação,19 sendo plausível supor que a tendência de declínio dessa mortalidade decorra de tais intervenções. Entretanto, se a estratégia, de fato, está sendo adotada, não está resultando na cobertura desejada, pois ainda foi observado um percentual elevado de informações não preenchidas em vários campos das DOs por causas mal definidas, em 2014.
As características sociodemográficas apresentadas pelos óbitos por causas mal definidas, incluindo aqueles necropsiados, estão em consonância com a literatura, a exemplo da predominância de óbitos de idosos, indivíduos do sexo masculino, de raça/cor da pela negra e baixa escolaridade.20-22 A maior proporção do sexo masculino pode refletir uma questão de gênero, a envolver tanto o uso abusivo de bebidas alcoólicas23,24 como a menor busca por atenção médica de parte dos homens. A maior frequência de negros (pardos e pretos) pode retratar a estrutura da composição racial da população do estado12 e a desigualdade racial e social existente no país, haja vista a maioria desses óbitos ser de analfabetos e de baixa renda;25 características que predominam na população brasileira também podem refletir as baixas condições socioeconômicas dos indivíduos cuja causa de óbito foi classificada como mal definida, conforme observado neste estudo e também por outros autores.26
O fato de a maioria dos óbitos necropsiados ser de residentes em Palmas, possivelmente, deve-se à localização da sede do SVO nessa capital, facilitando o acesso ao serviço. Porto Nacional dista 65km e um de seus bairros fica a 8km da capital, situação que deve facilitar o envio dos falecidos com causas mal definidas para o SVO de Palmas.
Embora todos os óbitos encaminhados a esse SVO, em 2014, tenham sido necropsiados e a causa básica elucidada, o número de necropsias realizadas ainda é pequeno, representando apenas cerca de 10% dos óbitos por causas mal definidas registrados no SIM para Tocantins. E, ainda que a cobertura do SIM no estado já fosse de 92,8% em 2014, não se descarta a possibilidade de sub-registro de óbitos, especialmente daqueles por causas mal definidas, um fato a contribuir para o aumento desse percentual.
Salienta-se que os resultados do presente estudo podem estar afetados pelo sub-registro e subnotificação dos óbitos, não completitude e/ou inexistência de dados do SVO para os anos anteriores a 2014, além da não disponibilidade de documentos que comprovem a realização de ações capazes de contribuir para a redução dos óbitos por causas mal definidas. Em que pesem tais limitações, resulta evidente que a mortalidade por esse grupo de causas apresentou um marcante e contínuo declínio, possivelmente em decorrência de ações voltadas para a melhoria da qualidade das informações sobre os óbitos implementadas em Tocantins e, sobretudo, em Palmas, cidade que em 2010 já investigava mais de 90% desses óbitos.18
Os achados aqui apresentados evidenciam que atualmente, dispõe-se de dados de mortalidade de melhor qualidade, adequados para subsidiar análises sobre a situação de saúde do Tocantins e revelar um perfil epidemiológico mais próximo da realidade do estado. Tal avanço permite aos serviços de saúde planejar ações e atividades com base em informações mais fidedignas, e assim obter maior eficiência e efetividade nas ações a serem implementadas.