Introdução
Em abril de 2015, o vírus Zika foi identificado no Brasil como o agente etiológico de uma doença exantemática aguda disseminada no nordeste do Brasil.1-2 Em outubro do mesmo ano, o Ministério da Saúde do Brasil alertou sobre uma epidemia de microcefalia possivelmente associada aos casos de infecção pelo vírus Zika em gestantes. Em 2016, começaram a ser publicados casos com alterações radiológicas sugestivas de infecção congênita pelo vírus Zika.2-6
Entre outubro de 2015 e dezembro de 2016, foram notificados 10.867 casos suspeitos de síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika (SCZ) no Brasil, 2.366 deles confirmados.7 A maior parte desses casos (64,6%) encontrava-se na região Nordeste do país, com destaque para os estados de Pernambuco, Bahia, Paraíba e Ceará.7
Embora o espectro clínico da SCZ ainda não esteja completamente elucidado, achados sobre os danos neurológicos, oftalmológicos e ortopédicos já foram bem descritos.3,6,8-10 Entretanto, poucas publicações abordaram os aspectos auditivos associados à infecção congênita pelo vírus Zika.11-12 Estudo recente, envolvendo lactentes com microcefalia em Pernambuco, relatou proporção de perda auditiva sensorioneural, uni ou bilateral, de 4/69,13 compatível com as perdas auditivas causadas por infecções virais congênitas. Entretanto, os casos que envolvem perda auditiva por infecção viral congênita, neurossensorial, geralmente bilateral, grave e profunda são muitas vezes indetectáveis ao nascimento, uma vez que tal perda pode ser progressiva.14
Como a síndrome congênita pelo vírus Zika ainda apresenta características não completamente elucidadas, exames de triagem e avaliação auditiva devem ser estimulados, de forma periódica e criteriosa, nas crianças acometidas.
O objetivo desse trabalho foi descrever os resultados da triagem auditiva em crianças com SCZ atendidas em Fortaleza, Ceará.
Métodos
Foi realizado estudo transversal descritivo envolvendo crianças com SCZ, acompanhadas em um hospital de referência em pediatria localizado em Fortaleza, capital do estado do Ceará, região Nordeste do Brasil.
Foram consideradas elegíveis para o estudo crianças com SCZ atendidas durante o II Mutirão de Zika Congênita, realizado nos dias 2 e 3 de dezembro de 2016. Foram critérios de inclusão no estudo: (a) casos com diagnóstico confirmado de SCZ, conforme critérios adotados pelo Ministério da Saúde do Brasil;15 e (b) casos notificados como confirmados pela Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, que apresentavam microcefalia ao nascimento e sinais clínico-epidemiológico-radiológicos compatíveis com SCZ, com resultado negativo para sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes (TORCH).
Foram critérios de exclusão: (a) obstrução ceruminosa do meato acústico externo; (b) sintomas de gripe ou resfriado que comprometessem o exame; e (c) presença de comportamentos que impedissem a realização adequada dos exames de triagem auditiva, tais como choro, gritos e movimentação excessiva de cabeça e corpo.
Para a investigação da audição, optou-se pela realização de uma triagem auditiva, com procedimentos rápidos e simples que identificassem aquelas crianças com necessidade de futura investigação diagnóstica, para confirmação do tipo e grau de perda auditiva.
Os exames da triagem auditiva foram aplicados em todas as crianças, por uma fonoaudióloga especialista em audiologia e com experiência em avaliação audiológica infantil. Foram realizados os seguintes exames: imitanciometria, emissões otoacústicas transientes (EOAT), reflexos acústicos e reflexo cócleo-palpebral (RCP).
Estes exames foram selecionados considerando-se que os bebês com SCZ apresentam grande irritabilidade, o que dificulta bastante a realização de exames que necessitem de tempo prolongado em sono natural.
Os equipamentos utilizados foram: otoscópio mini-Heine para meatoscopia, agogô para pesquisa de RCP, equipamento de registro de emissões otoacústicas evocadas modelo OtoRead de marca Interacoustics e imitanciômetro modelo AD250H, também de marca Interacoustics. Todos os equipamentos foram previamente calibrados, conforme normas técnicas recomendadas internacionalmente, e os exames realizados em sala silenciosa, climatizada, com a criança dormindo ou com estado comportamental considerado calmo.
Na imitanciometria, foi utilizada a classificação da curva timpanométrica sugerida por Jerger:16
‘A’ - mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular, quando os valores da complacência se encontram entre 0,3 e 1,6ml e pressão entre +100 e -100daPa;
‘Ar’ - baixa mobilidade do sistema tímpano-ossicular, quando os valores da complacência se encontram menores que 0,3ml e pressão entre +100 e -100daPa;
‘Ad’ - hipermobilidade do sistema tímpano-ossicular, quando os valores da complacência se encontram maiores que 1,6ml e pressão entre +100 e -100daPa;
‘B’ - ausência de mobilidade do sistema tímpano-ossicular, quando os valores da complacência e pressão não são mensuráveis; e
‘C’ - pressão de ar da orelha média desviada para pressão negativa, quando os valores da complacência se encontram entre 0,3 e 1,6ml e pressão entre -200 e -100daPa.
Após a classificação da curva timpanométrica, os resultados foram divididos em dois grupos: normal (curva timpanométrica tipo ‘A’) e alterado (curva timpanométrica tipo ‘Ar’, ‘Ad’, ‘C’ ou ‘B’). Como critério de análise do reflexo, foi utilizada a sonda de 226Hz. Nos casos que apresentaram alteração de curva timpanométrica tipo ‘B’, não foi realizado o exame de EOAT, visto que esse tipo de curva caracteriza presença de secreção, impossibilitando a captação das emissões. Essas crianças foram encaminhadas para o otorrinolaringologista.
Posteriormente à avaliação do tipo da curva timpanométrica, foi realizada a pesquisa do reflexo acústico ipsilateral, classificado como ‘presente’ ou ‘ausente’ - presente, quando o reflexo foi desencadeado entre 70 e 100dB acima do limiar em pelo menos duas frequências, incluindo a frequência de 1.000 e 2.000Hz.17
Após a avaliação das condições da orelha média, foi realizada a investigação da função coclear (orelha interna), mais especificamente das células ciliadas externas (CCE), por meio do exame de emissões otoacústicas transientes. Esse resultado foi classificado como “passou” ou “falhou” - “passou”, quando apresentou respostas em pelo menos três bandas de frequência, incluindo a frequência de 4kHz; e com relação ao sinal, ruído igual ou maior que 6dB.18
Em seguida, foi investigado o reflexo cócleo-palpebral (RCP). A classificação usada foi ‘presente’ ou ‘ausente’ - presente, quando ao percutir o instrumento agogô em breve e forte intensidade, a criança apresentou movimento rápido de abrir e fechar as pálpebras.19
As crianças que apresentaram sinais de alterações ou falha, em qualquer um dos procedimentos de triagem, foram encaminhadas ao médico otorrinolaringologista, por escrito, para posterior reteste da triagem auditiva ou avaliação audiológica diagnóstica para confirmação de perda auditiva.
Os dados complementares foram coletados por meio de entrevistas realizadas com as mães das crianças ou responsáveis presentes no momento do atendimento, empregando-se questionário semiestruturado, elaborado pela equipe de fonoaudiólogos do hospital pediátrico de referência no Ceará. As entrevistas foram realizadas pela equipe de fonoaudiólogos presentes durante o mutirão. Algumas variáveis foram conferidas no prontuário, entre elas a idade gestacional, perímetro cefálico, exames realizados (TORCH), presença de sintomas durante a gestação e trimestre do aparecimento desses sintomas.
Foram consideradas as seguintes variáveis:
a) relacionadas à mãe e à criança:
- idade gestacional ao nascimento (em meses);
- exames realizados (sorologia para TORCH: positivo; negativo);
- tipo de parto (normal; cesáreo);
- sexo da criança (masculino; feminino);
- presença de sintomas durante a gestação (exantema e/ou febre);
- trimestre de aparecimento de exantema na gestação (primeiro, segundo, terceiro); e
- perímetro cefálico (em cm);
b) resultados da imitanciometria de cada orelha (pressão entre -200 e +200daPa) e complacência (entre 0 e 3ml) (normal; alterado);
c) reflexo estapediano (RE) ipsilateral de cada orelha (nas frequências: 500; 1.000; 2.000; 4.000kHz) (presente; ausente);
d) resultado do exame de emissões otoacústicas evocadas transientes (EOAT) de cada orelha (nas frequências: 1; 1,5; 2; 3; 4kHz) (presente; ausente);
e) reflexo cócleo-palpebral (agogô) (presente; ausente); e
f) conduta prescrita pelo fonoaudiólogo (encaminhamento ao otorrinolaringologia; ou para diagnóstico auditivo pelo potencial evocado auditivo de tronco encefálico e potencial auditivo de estado estável; ou retestar - EOAT).
O instrumento de coleta de dados foi submetido a um estudo-piloto, para testar a compreensão das questões e a aplicabilidade ao público específico. Os profissionais foram capacitados e tiveram a supervisão de um fonoaudiólogo experiente, durante os atendimentos. Antes da digitação dos dados, os questionários foram revisados. Para a entrada dos dados e checagem da consistência, foi utilizado o software Epi Info.
As variáveis relacionadas ao parto (tipo de parto, presença de sintomas durante a gestação e trimestre dos sintomas), à criança (sexo, idade gestacional e perímetro cefálico) e aos aspectos audiológicos (tipo de curva timpanométrica, resultado do reflexo estapediano, resultado das EOATs e reflexo cócleo-palpebral) foram comparadas, entre as crianças com confirmação de SCZ por critério laboratorial e aquelas com confirmação por critérios clínico-epidemiológico-radiológicos. Para melhor compreensão dos resultados da investigação da audição, os dados foram separados por orelha, e correlacionados com os exames realizados.
A média do perímetro cefálico ao nascimento (PC), proveniente do prontuário e checada com os pais, foi calculada dividindo-se o número de medidas de PC pelo número de crianças que tinham valor da medida informado. Tanto a média como o desvio-padrão foram calculados utilizando-se o Epi Info.
Os dados foram digitados e analisados utilizando-se o Epi Info. A associação entre os resultados da triagem auditiva, o critério de confirmação e os aspectos clínico-epidemiológicos foram analisados em tabelas de contingência, estimando-se a razão de prevalência e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As associações foram verificadas pelo teste exato de Fisher, adotando-se nível de significância de 5%.
O estudo faz parte da pesquisa sobre análise das alterações biopsicossociais que acompanham os casos de embriopatia pelo vírus Zika no Ceará, aprovado em 24 de setembro de 2016 por meio do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 57109816.7.0000.5042: Protocolo nº 1.743.023. Os responsáveis pelas crianças foram orientados sobre a pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Após a triagem, as crianças participantes foram encaminhadas para realização do potencial evocado auditivo de tronco encefálico, atendimento por otorrinolaringologista, reteste das emissões otoacústicas transientes e/ou realização do potencial evocado auditivo de estado estável, conforme indicação.
Resultados
Compareceram para acompanhamento no mutirão 73 crianças. Destas, 23 foram excluídas por apresentarem obstrução ceruminosa do meato acústico externo, e outras cinco por estarem gripadas e com comportamentos que impediam a realização dos exames. Foram avaliadas 45 crianças, 27 do sexo feminino (Figura 1).
O perímetro cefálico médio ao nascimento foi de 29,4cm (desvio-padrão: 2,34cm) e a idade média no momento da avaliação, de 10 meses (amplitude: 1;20). Em relação à gestação, 32 crianças nasceram a termo e 26 de parto cesáreo. Nas 30 mães que referiram a presença de exantema durante a gestação - 20 delas -, esse sintoma foi relatado no primeiro trimestre.
Onze casos tiveram confirmação laboratorial da presença de ZIKV, os demais foram encerrados pela Secretaria da Saúde do Estado por critério clínico-epidemiológico-radiológico. Mesmo com maior prevalência de relatos de sintomas de infecção pelo vírus Zika durante a gestação nas mulheres que foram confirmadas pelo critério clinico-epidemiológico, assim como nos outros aspectos relacionados ao parto ou à criança, nenhuma variável analisada apresentou diferença estatisticamente significativa em relação ao critério de confirmação (Tabela 1).
Variáveis | Confirmação laboratorial | Clínico-epidemiológico- radiológico | RPa | IC95% b | p-valor |
---|---|---|---|---|---|
n | n | ||||
Gestante relatou sintomas de Zika durante a gestação | |||||
Sim | 6 | 26 | - | - | - |
Não | 5 | 8 | 0,49 | 0,18;1,32 | 0,163 |
Trimestre da gestação de início dos sintomas de infecção pelo vírus Zika | |||||
Primeiro | 3 | 18 | - | - | - |
Outros | 3 | 8 | 0,52 | 0,13;2,18 | 0,390c |
Idade gestacional ao nascimento | |||||
Pré-termo | 1 | 8 | - | - | - |
A termo | 10 | 26 | 0,40 | 0,06;2,73 | 0,416c |
Tipo de parto | |||||
Cesáreo | 6 | 23 | - | - | - |
Normal | 5 | 11 | 0,66 | 0,24;1,83 | 0,483 |
Sexo da criança | |||||
Feminino | 5 | 22 | - | - | - |
Masculino | 6 | 12 | 0,56 | 0,20;1,55 | 0,304 |
a) RP: razão de prevalência.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Teste exato de Fisher.
O exame de imitanciometria foi realizado em 44 das 45 crianças. Não foi possível realizar o exame em uma delas porque apresentou estado comportamental choroso e estava irritada. Assim, para a orelha direita, 16 crianças foram diagnosticadas dentro da normalidade (curva do tipo ‘A’) e 28 falharam na triagem timpanométrica (12 do tipo ‘Ar’ e 16 do tipo ‘C’). Para a orelha esquerda, 22 crianças foram diagnosticadas dentro da normalidade (curva do tipo ‘A’) e 22 com falhas (12 do tipo ‘Ar’; dez do tipo ‘C’). Nota-se um maior número de falhas na orelha direita (Tabela 2).
Exames audiológicos | n | % |
---|---|---|
Imitanciometria (orelha direita) | ||
Alterado | 28 | 63,6 |
Normal | 16 | 36,4 |
Imitanciometria (orelha esquerda) | ||
Alterado | 22 | 50,0 |
Normal | 22 | 50,0 |
Reflexo estapediano (orelha direita) | ||
Ausente | 12 | 27,3 |
Presente | 32 | 72,7 |
Reflexo estapediano (orelha esquerda)¥ | ||
Ausente | 11 | 25,0 |
Presente | 33 | 75,0 |
EOAT da orelha direita | ||
Falhou | 11 | 25,6 |
Passou | 32 | 74,4 |
EOAT da orelha esquerda& | ||
Falhou | 12 | 27,9 |
Passou | 31 | 72,1 |
RCP& | ||
Ausente | 6 | 14,0 |
Presente | 37 | 86,0 |
EOAT: emissões otoacústicas transientes.
RCP: reflexo cocleopalpebral.
* Teste exato de Fisher.
& 43 crianças avaliadas.
¥ 44 crianças avaliadas.
O exame do reflexo acústico ipsilateral foi realizado em 44 das 45 crianças. Em uma delas, o exame não foi realizado porque ela apresentou estado comportamental choroso e estava irritada. Na orelha direita, 32 crianças apresentaram presença de reflexo acústico e outras 12 apresentaram ausência desse reflexo. Entre essas 12 crianças que não apresentaram reflexo acústico na orelha direita, dez apresentaram alteração na orelha média, sendo três do tipo ‘Ar’ e sete do tipo ‘C’. No lado esquerdo, 33 crianças apresentaram presença de reflexo e apenas 11 apresentaram ausência, oito destas com curva timpanométrica alterada: cinco do tipo ‘Ar’ e três do tipo ‘C’ (Tabela 2).
Entre as 43 das 45 crianças nas quais foi realizado exame de emissões otoacústicas evocadas transientes (EOAT), 30 “passaram” nas duas orelhas, nove “falharam” nas duas orelhas e quatro “falharam” em apenas uma orelha (sendo uma na orelha direita e três na orelha esquerda) (Tabela 2 e Tabela 3).
Exames audiológicos | Timpanometria | |||
---|---|---|---|---|
Direita | Esquerda | |||
Alterada n | Normal n | Alterada n | Normal n | |
Emissões otoacústicas transientes | ||||
Falhou | 10 | 1 | 9 | 3 |
Passou | 17 | 15 | 12 | 19 |
Reflexo estapediano | ||||
Ausente | 10 | 2 | 8 | 3 |
Presente | 18 | 14 | 14 | 19 |
Os exames EOAT e timpanometria foram realizados em 43 das 45 crianças: 13/43 falharam na triagem, sendo necessário repeti-los. Considerando-se apenas a orelha direita, 32 “passaram” nas EOAT. Entre as que “falharam”, uma apresentou curva timpanométrica normal e dez apresentaram alteração. Já para a orelha esquerda, 31 crianças “passaram”; das 12 que “falharam”, nove apresentam alteração na curva timpanométrica e três apresentaram curva timpanométrica normal (Tabela 2 e Tabela 3).
Das 43 crianças avaliadas quanto ao reflexo cócleo-palpebral (RCP), 37 apresentaram respostas presentes. Entre as seis que apresentaram resposta ausente, cinco apresentaram alteração na curva timpanométrica - quatro, bilateral; e uma à direita -; apenas uma criança apresentou ausência de RCP e curva timpanométrica normal (Tabela 2 e Tabela 3).
Discussão
A maioria das crianças com SCZ avaliadas apresentaram função coclear íntegra, no nível de células ciliadas externas, e alterações de orelha média compatíveis com crianças de desenvolvimento normal para a idade e sem SCZ.
Os achados apontaram que os tipos de curva mais frequentes foram ‘Ar’ e ‘C’. Sabe-se que a privação sensorial decorrente de alterações na orelha média, agravada pelo número e pela duração dos episódios da doença, pode afetar a percepção da fala e dificultar a compreensão, principalmente em ambiente ruidoso, e até mesmo prejudicar o desenvolvimento da linguagem da criança.20 Um estudo realizado com crianças menores de dois anos, com desenvolvimento normal, também encontrou alta prevalência (68,4%) de exames de timpanometria compatíveis com alteração de orelha média (tipo ‘B’ e tipo ‘C’). O mesmo estudo destaca o primeiro ano como período de maior incidência de secreção na orelha média.20
A timpanometria consiste na verificação da mobilidade do sistema tímpano-ossicular em função da variação introduzida no meato acústico externo, sendo efetivo na identificação precoce das afecções de orelha média.20,21 Otites de repetição e doenças que acometem a orelha média são muito comuns em crianças e lactentes, razão porque esse exame foi utilizado na investigação da audição.
Associada à pesquisa da curva timpanométrica, foi realizada a pesquisa do reflexo acústico ipsilateral com estímulo de forte intensidade, possibilitando a contração do músculo estapédio e por conseguinte, avaliação da integridade do sistema tímpano-ossicular.19 Esse reflexo foi encontrado na maioria das orelhas, sugestivo de integridade da via auditiva.
Mais da metade das crianças da amostra “passaram” nos exames de emissões otoacústicas evocadas transientes - EOAT - nas duas orelhas, sugerindo que a função coclear no nível de células ciliadas externas estava preservada. Entretanto, mais de um terço “falhou” em pelo menos uma orelha, resultado diferente do estudo realizado em outro município do Nordeste brasileiro, onde, ao se avaliar 23 casos, dois deles apresentaram déficit auditivo.22 Provavelmente, essa diferença se deve à curva timpanométrica, pois a maioria das crianças que “falharam” na EOAT também apresentaram alteração na curva timpanométrica, justificando a ausência de resposta e indicando alteração na condução do som. Ademais, ambos estudos foram realizados com amostras pequenas, demandando ponderação nesse julgamento. Sugere-se, portanto, a ampliação dessa avaliação para um número maior de crianças com SCZ.
Partindo da hipótese de que alterações da função de orelha média podem prejudicar a captação das EOAT - e que a efusão de orelha média é encontrada com frequência em crianças menores de dois anos -, é possível que a ausência das respostas das emissões otoacústicas transientes, na amostra deste estudo, esteja associada a discretas alterações timpanométricas. Não obstante, achados recentes em crianças com SCZ apontaram a possibilidade de a perda auditiva condutiva não estar relacionada com a infecção pelo vírus Zika, uma vez que a perda auditiva causada por infecções virais congênitas seria sensorioneural.12 Essas questões precisam ser revisadas e avaliadas com maior profundidade, em futuros estudos.
Trabalho realizado comparando resultados de EOAT e timpanometria com lactentes sem indicador de risco para perda auditiva apontou maior proporção de alteração timpanométrica no grupo de lactentes com ausência de EOAT,21 corroborando os achados do presente trabalho. Muitas vezes, a otite média por efusão é assintomática e pode passar despercebida, por não apresentar um quadro sintomático tão importante quanto a otite média aguda. Isto pode ocorrer espontaneamente, por uma disfunção da tuba auditiva ou como resultado de um processo infeccioso prévio, entre outros fatores.23
A utilização do potencial evocado auditivo de tronco encefálico-automático (PEATE-A) deveria ser incluída no protocolo de triagem auditiva em crianças acometidas pela SCZ. Trata-se de um procedimento mais preciso na identificação de crianças com possíveis perdas auditivas sensorioneurais, conforme preconiza o Joint Committe on Infant Hearing (JCIH)24 e o Comitê Multiprofissional em Saúde Auditiva (COMUSA).25 No entanto, sabe-se que esses protocolos ainda não estão devidamente implementados no Brasil, assim como a própria triagem auditiva neonatal universal (TANU). Essa implementação contribuiria, e muito, para a identificação, diagnóstico e intervenção nas perdas auditivas em crianças, especialmente naquelas com SCZ.
Entre as crianças da amostra com alteração na orelha média, todas apresentaram ausência de reflexo estapediano ipsilateral. A medida do reflexo acústico na população neonatal e de lactentes, mais uma vez, mostrou ser um método de avaliação adequado e possível, capaz de contribuir com informações sobre a integridade da via auditiva, muito embora esse exame não seja realizado nessa população com frequência.
O presente estudo amplia os conhecimentos sobre possíveis alterações auditivas em crianças com SCZ, necessários para se estabelecer metas de intervenção interdisciplinar, a despeito das limitações desta pesquisa. Entre estas, destaca-se a ausência de informações sobre os limiares auditivos e de um diagnóstico audiológico completo. Contudo, os resultados se referem apenas à etapa da triagem auditiva, com forte indicação da necessidade da complementação de avaliação médica e audiológica que confirme as perdas auditivas transitórias, como as perdas auditivas condutivas, e as perdas auditivas sensorioneurais. Destacam-se, ainda, as limitações relacionadas à conclusão diagnóstica, além das dificuldades de avaliação das crianças com SCZ enquanto se encontrem em estado calmo e sono profundo para a realização de exames eletrofisiológicos comumente utilizados na população infantil, cujo objetivo é determinar o grau e o tipo de perda auditiva. A utilização de sedação e/ou anestésicos pode-se mostrar necessária nesse sentido.
Outras limitações a destacar são o pequeno tamanho da amostra e o fato de apenas um quarto dos casos ter confirmação laboratorial. Todos os demais foram confirmados pela Secretaria da Saúde do Estado do Ceará utilizando-se do critério clínico-epidemiológico-radiológico, após exclusão daqueles com resultados negativos para TORCH. Mesmo assim, foi evidenciado - estatisticamente - que essas crianças tinham o mesmo perfil, diferindo apenas na ausência do exame de comprovação, ao qual muitas mães não tiveram acesso durante o início da epidemia.
Sugere-se que a timpanometria deva ser incluída na triagem auditiva, antes do encaminhamento para o PEATE, visto este ser um exame de difícil acesso pelo Sistema Único de Saúde em algumas regiões do Brasil.
A maioria das crianças com SCZ triadas apresentaram função coclear íntegra, no nível de células ciliadas externas, e alterações de orelha média compatíveis com crianças em desenvolvimento normal para a idade. Sugere-se a realização da triagem auditiva em todas as crianças com a SCZ, logo após o nascimento, e o encaminhamento para diagnóstico médico e audiológico apenas das crianças com falhas, quando se encontram em idade precoce, o que também facilitaria a realização desses procedimentos.
Além disso, a triagem auditiva com a utilização de EOAT e a impedanciométrica, por serem de fácil aplicação, mostraram-se capazes de identificar as crianças a serem encaminhadas para diagnóstico médico e audiológico. Os achados também sugerem a necessidade da ampliação do acesso a serviços de referência em saúde auditiva, que possam dar continuidade ao processo de triagem auditiva no sentido de se conhecer a epidemiologia das perdas auditivas em crianças com síndrome congênita pelo vírus Zika.