Introdução
A raiva é uma antropozoonose transmitida ao homem pela inoculação do vírus rábico presente na saliva ou secreções de um mamífero infectado, principalmente pela mordedura.1 Essa doença continua a ser um problema de Saúde Pública, devido às sérias consequências clínicas, elevada letalidade e custos decorrentes do tratamento pós-exposição e da assistência médica.2
No Brasil, de 2009 a 2011, ocorreram 592 mil atendimentos antirrábicos humanos por ano.3 Esta frequência aumentou no período de 2011 a 2016, com 3.628.549 atendimentos antirrábicos humanos notificados no país, especialmente no Sudeste e Nordeste, regiões onde houve maior número de registros: 1.433.773 e 998.008 notificações, respectivamente.4
Sempre que houver suspeita de exposição ao vírus, a profilaxia da raiva humana constituirá a principal medida de controle, sendo necessário o preenchimento da ficha de notificação de atendimentos antirrábicos humanos, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).5 O esquema profilático de pós-exposição é composto por condutas que vão desde uma simples lavagem do local da agressão, com água e sabão, até o tratamento completo com soro e vacina.6 A dose da vacina independe da idade, sexo ou peso do paciente.7 A instituição de profilaxia pós-exposição deve ser adequada mediante anamnese completa e criteriosa do caso, segundo as Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana.8
Uma análise dos acidentes por animais potencialmente transmissores da raiva possibilita a avaliação e o aprimoramento dos serviços de assistência e de vigilância epidemiológica, fornecendo subsídios para indicação segura e correta do tratamento profilático e direcionamento das ações preventivas e de controle, tanto individuais como coletivas.2
Considerando-se a importância e a necessidade de subsidiar as informações epidemiológicas e ações de vigilância e controle da raiva humana, buscou-se analisar a prevalência da profilaxia antirrábica humana pós-exposição inadequada, em pacientes vítimas de agressão por animal no Ceará, no período de 2007 a 2015.
Métodos
Foi realizado um estudo de prevalência baseado em dados secundários, mediante informações das fichas de notificação de acidentes causados por animais potencialmente transmissores da raiva registrados no Sinan, do setor de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, no período de 1º de janeiro de 2007 a 31 de dezembro de 2015.
O estado do Ceará, situado na região Nordeste do Brasil, tem uma população de quase 9 milhões de habitantes e uma área de, aproximadamente, 149 mil km², dividida em 184 municípios. O sistema da Saúde Pública cearense é composto por hospitais municipais e estaduais, totalizando 164 unidades hospitalares com internação e 2.198 sem internação, além de 652 unidades básicas de saúde (UBS).9
De acordo com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014 existiam 944 mil domicílios (35,2%) com cães no Ceará, e 725 mil (28%) com gatos. Desses domicílios, 76,3% tiveram os animais vacinados contra a raiva naquele mesmo ano.9
As variáveis analisadas neste estudo foram:
a) características sociodemográficas
- faixa etária (em anos: <1, 1 a 19, 20 a 39, 40 a 59, 60 e mais);
- sexo (masculino, feminino);
- raça/cor (parda, branca, preta, amarela, indígena);
- escolaridade (analfabeto, ensino fundamental I, ensino fundamental II, ensino médio, ensino superior); e
- zona de residência (urbana, rural, periurbana);
b) do ferimento
- tipo de exposição (contato indireto, arranhadura, lambedura, mordedura, outro);
- local do ferimento (mãos/pés, membros inferiores, membros superiores, cabeça/pescoço, tronco, mucosa), apresentação do ferimento (único, múltiplo, sem ferimento); e
- profundidade da lesão (superficial, profunda, dilacerante);
c) do animal agressor
- espécie (canina, felina, quiróptera, outras); e
- condição do animal (sadio, suspeito, raivoso, morto/desaparecido); e
d) tipo de tratamento (observação, observação e vacina, vacina, soro e vacina, outros).
Para definir se a conduta utilizada foi adequada ou inadequada ao tipo de exposição sofrida pelo paciente, foram criadas as variáveis ‘conduta leve’ e ‘conduta grave’, com base nas Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana.8
Conduta leve foi definida pela presença de ferimentos superficiais pouco extensos, geralmente únicos, em tronco e membros. Foram considerados acidentes graves: ferimentos na cabeça, face, pescoço, mão, polpa digital e/ou planta do pé; ferimentos profundos, múltiplos ou extensos, em qualquer região do corpo; lambedura de mucosas; e ferimento profundo causado por unha de animal.7,10 Dessa forma, com o intuito de avaliar as condutas profiláticas adotadas em cada atendimento, foi criada a variável ‘conduta profilática adequada’, considerada como o desfecho deste estudo, resultante das características descritas nas classificações como ‘condutas leves’ ou ‘condutas graves’. Essa classificação incluiu variáveis relacionadas ao tipo de ferimento, localização e profundidade da lesão, tipo de exposição, espécie e condição do animal agressor, além da instituição ou não de tratamento vacinal. Os atendimentos que não seguiram o protocolo do Ministério da Saúde ou apresentaram dados em branco ou incompletos foram considerados inadequados, seja pela ausência, seja pelo excesso no tratamento.
Os coeficientes de prevalência dos acidentes por animais potencialmente transmissores da raiva foram padronizados pelo método direto, e a população-padrão utilizada como denominador foi a população do Ceará no ano de 2010, de acordo com o censo demográfico do IBGE. A população residente estimada para cada ano proveio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).9
Os dados foram exportados, e analisados pelo software Stata versão 11.2 (Stata Corp LP, College Station, TX, EUA). Para testar as associações de interesse, foram calculadas as razões de prevalência (RP) com intervalo de confiança de 95% (IC95%) e realizados o teste do qui-quadrado de Pearson ou o teste exato de Fisher, com nível de significância de 5%. A distribuição espacial dos coeficientes de incidência foi elaborada utilizando-se o programa ArcGis versão 9.2.
O projeto do estudo foi submetido à plataforma Brasil e recebeu aprovação mediante parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará em 6 de abril de 2017 - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 64830316.0.0000.5054 -, acorde com os princípios da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012 (autonomia, não maleficência, beneficência, justiça e equidade). O estudo foi baseado em dados secundários do Sinan, sem identificação dos indivíduos pesquisados.
Resultados
No período de 2007 a 2015, foram registrados 231.694 atendimentos de acidentes causados por animais potencialmente transmissores da raiva no estado do Ceará. Desse total, 222.036 (95,8%) apresentaram condutas inadequadas quanto ao tratamento profilático antirrábico preconizado pelo Ministério da Saúde. Ademais, observou-se incompletude nas fichas de notificação dos acidentes por animais potencialmente transmissores da raiva, com um total de 142.562 campos sem informação ou ignorados, sendo identificada maior proporção dessas faltas nas variáveis ‘escolaridade’ (32,9%) e ‘profundidade da lesão’ (11,5%).
O intervalo de 2010 a 2011 apresentou um maior acréscimo nos coeficientes padronizados de prevalência de condutas inadequadas, passando de 24,64 (2010) para 36,54 por 10 mil habitantes (2011). O maior valor desse coeficiente foi observado no ano de 2015: 41,58 atendimentos por 10 mil hab.(Figura 1).
O número de condutas inadequadas foi mais frequente na faixa etária de 1 a 19 anos (n=82.545; 37,6%). Não houve diferença entre os sexos, com RP=0,99 (IC95% 0,99;1,00), apenas uma razão de prevalência um pouco maior para a raça amarela, de 1,02 (IC95% 1,01;1,02). Pessoas com ensino fundamental I completo tiveram prevalência ligeiramente maior que as referidas aos demais níveis de escolaridade, com significância estatística (RP=1,01 - IC95% 1,01;1,02). A zona de residência urbana deteve o maior quantitativo de condutas profiláticas inadequadas (n=143.691; 70,3%) e apresentou prevalência 7% maior (IC95% 1,05;1,08) do que a zona periurbana dos municípios do Ceará (Tabela 1).
Variáveis | Conduta adequada | Conduta inadequada | RPb | IC95% c |
---|---|---|---|---|
na (%) | na (%) | |||
Idade em anos (229.362) | ||||
<1 | 100 (4,2) | 2.295 (95,8) | 1,00 | - |
1-19 | 4.015 (4,6) | 82.545 (95,4) | 0,99 | 0,99;1,00 |
20-39 | 2.238 (4,0) | 54.158 (96,0) | 1,00 | 0,99;1,01 |
40-59 | 1.842 (3,8) | 46.542 (96,2) | 1,00 | 0,99;1,01 |
≥60 | 1.395 (3,9) | 34.232 (96,1) | 1,00 | 0,99;1,01 |
Sexo (231.679) | ||||
Masculino | 5.057(4,1) | 118.579 (95,9) | 0,99 | 0,99;1,00 |
Feminino | 4.601 (4,3) | 103.442 (95,7) | 1,00 | - |
Raça/cor da pele (213.150) | ||||
Parda | 6.551 (4,1) | 153.866 (95,9) | 1,00 | 1,00;1,01 |
Branca | 1.976 (5,0) | 37.896 (95,0) | 1,00 | - |
Preta | 459 (4,7) | 9.332 (95,3) | 1,00 | 0,99;1,01 |
Amarela | 66 (3,4) | 1.897 (96,6) | 1,02 | 1,01;1,02 |
Indígena | 51 (4,6) | 1.056 (95,4) | 1,00 | 0,99;1,02 |
Escolaridade (155.524) | ||||
Analfabeto | 439 (4,8) | 8.754 (95,2) | 1,00 | - |
Ensino fundamental I | 3.454 (3,8) | 88.277(96,2) | 1,01 | 1,01;1,02 |
Ensino fundamental II | 1.410 (5,0) | 26.955 (95,0) | 0,99 | 0,99;1,00 |
Ensino médio | 976 (4,6) | 20.057 (95,4) | 1,00 | 0,99;1,01 |
Ensino superior | 225 (4,3) | 4.977 (95,7) | 1,00 | 0,99;1,01 |
Zona de residência (213.946) | ||||
Urbana | 6.007 (4,0) | 143.691 (96,0) | 1,07 | 1,05;1,08 |
Rural | 3.200 (5,2) | 58.942 (94,8) | 1,05 | 1,04;1,07 |
Periurbana | 210 (10,0) | 1.896 (90,0) | 1,00 | - |
a) A diferença numérica entre as variáveis deve-se aos registros ignorados e em branco, excluídos em todas as análises.
b) RP: razão de prevalência.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan (atualizado em 10/04/2017).
A característica de ferimento que apresentou maior prevalência de condutas inadequadas foi a exposição por mordedura (RP=1,03 - IC95% 1,02;1,03). Os ferimentos localizados nas mãos/pés, com 86.169 notificações (38,4%), foram mais frequentes e 1,06 vez mais prevalentes quanto às inadequações de condutas (IC95% 1,06;1,07) (Tabela 2).
Variáveis | Conduta adequada | Conduta inadequada | RPa | IC95% b |
---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | |||
Exposição | ||||
Contato indireto | ||||
Sim | 334 (12,9) | 2.259 (87,1) | 0,91 | 0,89;0,92 |
Não | 9.306 (4,2) | 212.075 (95,8) | 1,00 | - |
Arranhadura | ||||
Sim | 1.861 (5,1) | 34.578 (94,9) | 0,99 | 0,98;0,99 |
Não | 7.782 (4,1) | 180.323 (95,9) | 1,00 | - |
Lambedura | ||||
Sim | 187 (4,1) | 4.316 (95,9) | 1,00 | 0,99;1,01 |
Não | 9.452 (4,3) | 210.109 (95,7) | 1,00 | - |
Mordedura | ||||
Sim | 7.728 (3,9) | 189.521 (96,1) | 1,03 | 1,02;1,03 |
Não | 1.928 (6,6) | 27.381 (93,4) | 1,00 | - |
Outro | ||||
Sim | 35 (2,2) | 1.587 (97,8) | 1,02 | 1,01;1,03 |
Não | 9.581 (4,3) | 212.045 (95,7) | 1,00 | - |
Local de ferimento (234.834)c | ||||
Mãos/pés | ||||
Sim | 834 (1,0) | 86.169 (99,0) | 1,06 | 1,06;1,07 |
Não | 8.799 (6,9) | 119.216 (93,1) | 1 | - |
Membros inferiores | ||||
Sim | 6.178 (7,7) | 74.439 (92,3) | 0,95 | 0,94;0,95 |
Não | 3.470 (2,6) | 130.738 (97,4) | 1 | - |
Membros superiores | ||||
Sim | 2.429 (6,5) | 34.942 (93,5) | 0,97 | 0,97;0,98 |
Não | 7.210 (4,1) | 169.805 (95,9) | 1 | - |
Cabeça/pescoço | ||||
Sim | 71 (0,5) | 14.139 (99,5) | 1,04 | 1,04;1,05 |
Não | 9.563 (4,8) | 190.337 (95,2) | 1 | - |
Tronco | ||||
Sim | 918 (7,3) | 11.655 (92,7) | 0,97 | 0,96;0,97 |
Não | 8.715 (4,3) | 192.812 (95,7) | 1 | - |
Mucosa | ||||
Sim | 78 (2,5) | 2.982 (97,4) | 1,02 | 1,01;1,03 |
Não | 9.562 (4,5) | 201.252 (95,5) | 1 | - |
Apresentação do ferimento (234.834)c | ||||
Único | 9.174 (7,1) | 120.614 (92,9) | 1 | - |
Múltiplo | 448 (0,6) | 77.890 (99,4) | 1,07 | 1,06;1,07 |
Sem ferimento | 24 (1,9) | 1.225 (98,1) | 1,05 | 1,05;1,06 |
Profundidade da lesão (209.239) | ||||
Superficial | ||||
Sim | 9.142 (8,8) | 94.645 (91,2) | 0,92 | 0,91;0,92 |
Não | 465 (0,5) | 99.713 (99,5) | 1 | - |
Profunda | ||||
Sim | 471 (0,5) | 95.905(99,5) | 1,09 | 1,08;1,09 |
Não | 9.034 (8,7) | 95.252 (91,3) | 1 | - |
Dilacerante | ||||
Sim | 78 (0,9) | 8.998 (99,1) | 1,04 | 1,04;1,05 |
Não | 9.378 (5,1) | 175.853 (94,9) | 1 | - |
a) RP: razão de prevalência.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Os totais superam a quantidade de indivíduos analisados devido ao fato de a mesma pessoa sofrer mais de um tipo de agressão/ferimento, bem como aos registros ignorados e em branco.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan (atualizado em 10/04/2017).
Os ferimentos múltiplos apresentaram maior prevalência de condutas inadequadas (RP=1,07 - IC95% 1,06;1,07) quando comparados aos ferimentos únicos. Outra característica a referir as condutas profiláticas inadequadas como mais prevalentes foram os ferimentos profundos (RP=1,09 - IC95% 1,08;1,09). Deve-se destacar que alguns pacientes podem ter mais de um tipo de exposição e localização da lesão (Tabela 2).
Os cães foram os principais animais agressores (n=162.243; 70,0%) e os acidentes por eles causados estiveram associados à maior proporção de condutas inadequadas (69,6%; 154.505/221.943); entretanto, as pessoas agredidas por outros tipos de animais apresentaram 1,05 vez maior prevalência de inadequações (RP=1,05 - IC95% 1,04;1,05) quando comparadas àquelas que sofreram agressão por cães. Outros tipos de animais agressores incluíram primatas, herbívoros domésticos, raposas, gambás, capivaras, suínos, bovinos, equinos, coelhos, lagartos, jumentos, cotias, javalis e ovelhas.
A condição de animal sadio foi a mais frequente no que se refere às condutas inadequadas observadas (71,3%). Os atendimentos às vítimas de animais na condição de morto/desaparecido apresentaram maior prevalência (RP=1,05 - IC95% 1,05;1,06) quando comparados aos casos de agressão por animais sadios.
O tratamento prescrito de observação com vacinas apresentou maior proporção de atendimentos (48,1%), porém menor razão de prevalência de condutas inadequadas (RP=0,95 - IC95% 0,94;0,95) quando comparado com a indicação de apenas observação do animal agressor por dez dias. Já a prescrição de vacinas foi o tratamento de maior prevalência de conduta inadequada (RP=1,03 - IC95%1,02;1,03). Houve interrupção de tratamento em 8.151 (6,1%) casos, com alta prevalência de inadequações (RP=1,05 - IC95% 1,04;1,05) (Tabela 3).
Variáveis | Conduta adequada | Conduta inadequada | RPa | IC95% b |
---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | |||
Espécie de animal (231.604) c,d | ||||
Canina | 7.738 (4,8) | 154.505 (95,2) | 1,00 | - |
Felina | 1.902 (3,5) | 53.020 (96,5) | 1,01 | 1,01;1,02 |
Quiróptera | 2 (0,2) | 1.129 (99,8) | 1,04 | 1,04;1,05 |
Outrase | 16 (0,1) | 13.289 (99,9) | 1,05 | 1,04;1,05 |
Condição do animal (212.616)d | ||||
Sadio | 8.190 (5,4) | 144.682 (94,6) | 1,00 | - |
Suspeito | 1.391 (4,0) | 33.055 (96,0) | 1,01 | 1,01;1,02 |
Raivoso | 20 (1,0) | 1.949 (99,0) | 1,04 | 1,04;1,05 |
Morto/desaparecido | 32 (0,1) | 23.297 (99,9) | 1,05 | 1,05;1,06 |
Tipo de tratamento (224.296)d | ||||
Observação | 400 (2,8) | 14.038 (97,2) | 1,00 | - |
Observação + vacina | 8.752 (7,8) | 103.235 (92,2) | 0,95 | 0,94;0,95 |
Vacina | 42 (0,1) | 64.058 (99,9) | 1,03 | 1,02;1,03 |
Soro + vacina | 357 (1,4) | 25.931 (98,7) | 1,01 | 1,01;1,02 |
Outrosf | 77 (1,0) | 7.406 (99,0) | 1,02 | 1,01;1,02 |
Interrupção do tratamento | ||||
Sim | 164 (2,0) | 7.987 (98,0) | 1,05 | 1,04;1,05 |
Não | 8.215 (6,6) | 116.352 (93,4) | 1,00 | - |
a) RP: razão de prevalência.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Variável na qual foi aplicado o teste exato de Fisher.
d) A diferença de número entre as variáveis é devido aos registros ignorados e em branco excluídos em todas as variáveis.
e) Outros tipos de animais: primatas, herbívoros domésticos, raposas, gambás, capivaras, suínos, bovinos, equinos, coelhos, lagartos, asininos, cotias, javalis e ovelhas.
f) Outros tipos de tratamento: pré-exposição, dispensa de tratamento e esquema de reexposição.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan (atualizado em 10/04/2017).
A não indicação do soro apresentou um percentual de 85,2% e uma prevalência 5% maior de inadequações nas condutas (IC95% 1,05;1,06), quando comparada à indicação de soro nos tratamentos.
Os municípios de Guaramiranga, Jijoca de Jericoacoara e Jaguaruana, localizados nas regiões centro-norte, noroeste e nordeste do Ceará, apresentaram os maiores coeficientes de prevalência de atendimentos com condutas inadequadas por 10 mil hab.: 222,26, 131,45 e 115,05, respectivamente. Pouco mais da metade dos municípios (54,3%) apresentou coeficientes de prevalência baixos, com valores entre 0,10 e 29,88 atendimentos inadequados por 10 mil hab. Os menores valores foram registrados no município de Poranga (2,83 por 10 mil hab.), localizado na região oeste, e em Altaneira (2,91 por 10 mil hab.) e Umari (6,05 por 10 mil hab.), estes localizados na região sul do Ceará (Figura 2).
Discussão
O presente estudo evidenciou que, no estado do Ceará, de 2007 a 2015, houve mais de 90% de atendimentos a acidentes causados por animais potencialmente transmissores da raiva apresentando condutas inadequadas, quando comparados ao tratamento profilático antirrábico preconizado pelo Ministério da Saúde. Entre as inadequações de condutas observadas, os indicadores apontam a mordedura como o tipo de exposição mais frequente, além de prevalecerem os ferimentos múltiplos, profundos, localizados nas mãos/pés, e a prescrição de vacinas como o tipo de tratamento pós-exposição adotado.
No período estudado, provavelmente as inadequações das condutas aumentaram devido à alta rotatividade de profissionais médicos ou enfermeiros, e à ausência de ações educativas. Os achados deste estudo sugerem uma possível insegurança nas prescrições por parte dos profissionais da saúde. Na maioria dos casos, esses profissionais costumam indicar mais doses do que as necessárias ao tipo de exposição do paciente, desconsiderando os aspectos epidemiológicos de cada atendimento de acidentes por animais potencialmente transmissores da raiva.11
Estes resultados se assemelham aos encontrados nos Estados Unidos, precisamente na cidade de Carolina, onde foi observada inadequação na indicação de tratamento em 98% dos atendimentos antirrábicos, no período de 1995 a 2003. Entre os casos que receberam tratamento, para 40% ele não era necessário, e entre aqueles não tratados, 6,3% deveriam ter recebido tratamento.12 As condutas inadequadas e insuficientes podem propiciar o desenvolvimento da raiva humana, devido ao tratamento deficiente do esquema vacinal ou do soro antirrábico.18
Em contraposição, alguns estudos realizados no Brasil apontam que as condutas antirrábicas adotadas de forma inadequada tiveram proporções com variação de 3,8% a 24,7%. Observou-se que 96,2%, 93,9% e 92,0% dos atendimentos estavam adequadamente indicados nas cidades de Porto Alegre (2006), Curitiba (2010) e Maringá (1997), respectivamente, demonstrando percentual reduzido de inadequação.1,10,11
No Sul do país, não há notificações de casos de raiva humana desde 1987, sendo o Paraná o primeiro estado brasileiro a controlar a raiva.11 Essa maior prescrição de tratamentos antirrábicos, possivelmente, atribui-se ao medo do adoecimento; entretanto, as condutas adequadas já proporcionam uma prevenção correta da doença.
Considerando-se o elevado risco de exposição à raiva, as condutas adotadas no estado do Ceará relacionadas aos casos de lesões graves devem adotar uma profilaxia correta, prescrita e monitorada segundo as normas do Ministério da Saúde.8
Ressalta-se a importância da completude e consistência no preenchimento das fichas de notificação de acidentes causados por animais potencialmente transmissores da raiva, enquanto subsídios para a indicação da conduta profilática mais adequada para cada caso.5
Em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, no ano de 2002, 49,4% das 723 pessoas atendidas não realizaram o tratamento antirrábico completo por não se ter instituído uma busca ativa pelo serviço de saúde local.13 Ressalta-se que a busca ativa dos faltosos é uma das ações preconizadas na vigilância da raiva humana, para a condução do tratamento com melhores resultados e qualidade.14 A não instituição de tratamento ou seu não cumprimento podem resultar em pacientes vítimas de raiva.15
Os profissionais de saúde devem ser constantemente capacitados e supervisionados quanto à condução dos tratamentos dos acidentes com animais potencialmente transmissores da raiva e à proteção do paciente mediante a adoção racional dos imunobiológicos, sempre realizando uma investigação epidemiológica criteriosa de cada caso, além do preenchimento de todos os campos da ficha de notificação do Sinan.5,6,14
Houve predominância de condutas antirrábicas inadequadas em pessoas com baixo nível escolar, nas categorias de analfabetos e com ensino fundamental I completo.6,16 Os fatores sociais funcionam como facilitadores para a dispersão do vírus em uma área, como também revelam: quanto menor o desenvolvimento local, maior a promiscuidade na relação homem/animal, e menores os cuidados sanitários.15
No Ceará, destacou-se como local de residência dos casos a zona urbana, fato também observado nos estados de Santa Catarina17 e Paraná, no período de 2002 a 2007.10 O aumento da população animal em logradouros públicos pode ser considerado uma ameaça à Saúde Pública, dada a possibilidade de agressões e transmissão de zoonoses.9
O controle da raiva urbana em cães e gatos no Ceará é feito, principalmente, por meio de campanhas de vacinação antirrábica coordenadas pela Secretaria da Saúde do Estado, de acordo com as recomendações do Ministério da Saúde. Na campanha realizada em 2016, o Ceará apresentou uma cobertura de 89,5% de cães vacinados.18 O Ministério da Saúde recomenda, como meta a ser cumprida, 80% dos cães imunizados anualmente.11,19 No entanto, o Ceará ainda é considerado um estado com risco de transmissão para a raiva humana, pois não há homogeneidade na vacinação canina entre os municípios, tampouco manutenção do registro de casos: o último caso de raiva, o qual evoluiu para óbito, data de outubro de 2016, no município de Iracema, região centro-leste do estado (latitude -5.80; longitude -38.30).20
A vacinação dos animais susceptíveis, o controle da população canina e a profilaxia pós-exposição constituem importantes estratégias para redução de riscos de ocorrência da raiva.21
Os municípios de Santana do Acaraú e Acarape, na região centro-norte do Ceará, apresentaram elevados coeficientes de incidência de atendimentos com condutas inadequadas. Trata-se de um achado que se soma às reduzidas taxas de coberturas na campanha de vacinação antirrábica animal de 2016.18 Já os municípios de Pentecoste e Guaramiranga, embora com elevadas incidências de condutas profiláticas inadequadas, apresentaram taxas de coberturas vacinais de 93,2% e 100,9%,18 respectivamente, acima da meta preconizada pelo Ministério da Saúde. Nesses municípios, recomenda-se controlar a população canina onde há alto registro de acidentes por animais potencialmente transmissores da raiva.22
Apesar de o cão ter sido o principal animal agressor, outras espécies apresentaram maior prevalência de condutas inadequadas, possivelmente porque alguns animais citados não são potenciais transmissores da raiva, como o coelho e o hamster, e não necessitam de tratamento profilático.8,23 No Brasil, no período de 2000 a 2009, foram confirmados três casos de raiva humana transmitida por herbívoros; nas três situações, a transmissão ocorreu pela manipulação direta da saliva, sem agressão por estes animais.24
As condutas inadequadas decorrentes de acidentes a envolver animal na condição de morto/desaparecido foram as mais prevalentes; outro achado preocupante, pois, provocado por um animal nessa condição, o acidente é considerado grave e exige um tratamento pós-exposição completo com vacinas de cultivo celular e/ou aplicação do soro antirrábico até a terceira dose da vacina, conforme as Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana publicadas pelo Ministério da Saúde.8
A prevalência aumentada das condutas inadequadas em animais na condição de morto/desaparecido sugere que os profissionais de saúde, ao indicarem a conduta profilática, não levam em consideração a condição do animal agressor, como foi observado em estudo realizado no Sudeste do Brasil, onde a instituição da profilaxia pós-exposição foi realizada com base tão somente nas características dos ferimentos.25
No presente estudo, o tipo de exposição por mordedura foi o mais frequente. De acordo com pesquisas realizadas em 2006 na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul,1 e em 2011 na cidade de Primavera do Leste, Mato Grosso,13 a população reconhece nesse tipo de exposição um grande risco de contaminação pelo vírus da raiva, devido às várias portas de entrada - o que não acontece nos casos de arranhaduras, lambeduras ou contato indireto.
Os ferimentos múltiplos nas mãos/pés7,26,27 apresentaram a maior proporção de inadequações. Nesses casos, o local do ferimento e a profundidade da lesão em terminações nervosas facilitam a virulência do agente etiológico, potencializam o risco envolvido e impõem a necessidade de tratamento completo, com soro e vacina antirrábica.8 Além do mais, observou-se que os ferimentos dilacerantes e profundos foram considerados fatores de proteção para condutas inadequadas; geralmente causados por animais considerados suspeitos, tais casos caracterizam acidentes graves.10 Essas características de proteção - local do ferimento e profundidade da lesão -, também detectadas em estudo realizado no estado do Paraná, diminuíram em 82% e 64%, respectivamente, o risco de conduta inadequada.10
A prescrição associada às vacinas no tratamento antirrábico pós-exposição apresentou um maior percentual,17 embora seja uma conduta indicada somente para cães e gatos passíveis de observação, devido ao período de incubação da raiva, ou nos casos de acidentes leves,8,23 portanto não recomendada para os acidentes graves classificados no estudo em tela.
A indicação do soro antirrábico apresentou maior prevalência de inadequações. O soro deve ser utilizado apenas nos seguintes casos: acidente grave em que o animal (cão ou gato) tenha desaparecido, morrido ou se tornado raivoso; acidente com animal clinicamente suspeito de raiva no momento da agressão; ou acidente grave provocado por animal silvestre ou de produção.7 Entretanto, a falta de integração entre os profissionais de saúde prescritores do esquema antirrábico e os veterinários, na verificação dos animais agressores, não confere a segurança necessária para contraindicar a administração de imunobiológicos.
Os profissionais de saúde que prescrevem o tratamento, provavelmente por insegurança, realizam a profilaxia antirrábica sem seguir o protocolo do Ministério da Saúde.6,21 A indicação de uso dos insumos deve obedecer às características do acidente, levando sempre em consideração o tipo de exposição, o ferimento e as condições do animal agressor,8,27 para que não sejam prescritos tratamentos desnecessários, os quais, além de causarem riscos à saúde, podem gerar desperdícios aos cofres públicos e até mesmo desabastecimentos das redes de imunobiológicos.2,17
Este estudo pode contribuir para o programa de controle da raiva humana no Ceará, na medida em que foram apresentadas as características das condutas profiláticas inadequadas adotadas, enfatizando-se a necessidade de melhoria na atenção às pessoas agredidas e a implementação das ações de educação em saúde específicas, dirigidas aos profissionais e à população.
A pesquisa apresentou limitações relacionadas ao uso de dados secundários, principalmente na consulta às fichas de notificação dotadas de campos com algumas informações ausentes ou incompletas, e preenchimentos considerados inadequados. Contudo, essas dificuldades não implicaram perdas nas informações.
A elevada indicação de tratamentos antirrábicos humanos com prescrição de condutas inadequadas sugere a necessidade de melhor avaliação do perfil epidemiológico de cada caso, criteriosa observação do animal agressor, além de contínuo atendimento às Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana, proporcionando um aprimoramento na qualidade dos registros de acidentes causados por animais potencialmente transmissores da raiva e favorecendo a decisão de se instituir, ou não, a profilaxia antirrábica de forma adequada e segura, sem risco ao paciente.