Introdução
A esquistossomose, doença parasitária causada pelo Schistosoma mansoni, pode evoluir para a forma crônica - como as formas hepatointestinal, hepática, hepatoesplênica - e formas complicadas - vasculopulmorar, glomerulopatia, neurológica, pseudoneoplásica ou doença linfoproliferativa -, podendo provocar o óbito. Diante de sua magnitude de prevalência e severidade das formas clínicas, a esquistossomose caracteriza-se como um importante problema de Saúde Pública no Brasil.1,2
Na América, existem aproximadamente 1,8 milhão de indivíduos infectados pelo Schistosoma mansoni e 25 milhões sob o risco de contrair a doença.3 De acordo com o Inquérito Nacional de Prevalência da Esquistossomose e das Geo-helmintoses, realizado no período de 2010 a 2014 com 197.564 escolares de 7 a 17 anos, residentes de 521 municípios brasileiros, as grandes regiões Sudeste e Nordeste do país apresentaram as taxas de positividade mais elevadas: 2,35% e 1,27% respectivamente. Os estados de Sergipe (10,7), Pernambuco (3,8), Alagoas (3,4), Minas Gerais (5,8) e Bahia (2,9) foram os que exibiram as maiores proporções de casos positivos nas áreas com população até 500 mil habitantes.4
Pernambuco apresenta uma série histórica (1979-2010) de taxa de mortalidade cerca de cinco vezes maior que a taxa nacional. Dos 185 municípios pernambucanos, 102 são endêmicos para esquistossomose e destes, 46,1% pertencem à mesorregião do Agreste de Pernambuco, 41,2% estão na mesorregião da Zona da Mata Pernambucana e 12,7% na mesorregião metropolitana do Recife.5
No Brasil, a esquistossomose mansônica é tradicionalmente considerada endêmica na região rural. Contudo, tem aumentado o número de casos notificados em localidades litorâneas da região metropolitana do Recife,6-9 assim como em áreas urbanas das cidades de Belo Horizonte, Salvador e Aracaju.10-13
A manifestação de casos da doença em áreas urbanas não atesta a transmissão local do S. mansoni, podendo ser o resultado da migração de pessoas infectadas provenientes de área endêmica.6,11,13,14
Considerando-se a existência de indivíduos infectados pelo S. mansoni em aglomerados urbanos com sistemas de saneamento básico precários, abastecimento de água inadequado e presença do hospedeiro intermediário, identificam-se as condições preditivas para o estabelecimento do ciclo desse parasita. Esses fatores têm sido relatados em algumas localidades urbanas e litorâneas de alguns estados do Brasil.15,16
Desde a década de 1990, são realizadas pesquisas sobre a doença na região metropolitana do Recife.7,8,17,18 Seus resultados indicam o aparecimento sistemático de novos focos de transmissão ativa da esquistossomose em áreas periurbanas e litorâneas, sugerindo o descontrole da doença no estado de Pernambuco.19,20
Uma pesquisa realizada na cidade do Recife, entre 2010 e 2012, identificou 30 criadouros de moluscos vetores em diversas localidades com caramujos. Desses 30 criadouros, quatro possuíam o DNA do S. mansoni. Um inquérito parasitológico realizado no mesmo período, com 2.718 escolares do Recife, identificou cinco casos autóctones de crianças infectadas que nunca haviam saído da capital pernambucana e relataram exposição em épocas de chuvas, quando o peridomicílio é alagado pelas águas dos córregos vizinhos.21
Apesar dessas evidências apontadas e, também, do expressivo número de casos e óbitos por esquistossomose registrados nos sistemas de informações em saúde como atribuídos à cidade do Recife, não é possível afirmar que esteja ocorrendo transmissão da esquistossomose na cidade, uma vez que ainda não foram detectados moluscos vetores eliminando cercárias de S. mansoni.16
O presente estudo objetivou descrever os casos e óbitos por esquistossomose em residentes na cidade do Recife, no período de 2005 a 2013.
Métodos
Estudo epidemiológico descritivo com dados secundários compostos por: (1) óbitos tendo como causa básica esquistossomose (CID-10: B65), registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) entre 2005 e 2013; e (2) casos de esquistossomose notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) entre 2007 e 2013. Foram incluídos apenas os casos e os óbitos residentes na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco.
Os registros do SIM (2005-2013) e do Sinan (2007-2013) foram disponibilizados pela Secretaria de Saúde do Recife. Os dados que constam no SIM e no Sinan foram registrados por meio da declaração de óbito (DO) e fichas de notificação/investigação do caso. Os dois sistemas de informações foram relacionados de modo probabilístico, para verificar se os casos registrados no SIM (2007-2013) haviam sido notificados no Sinan (2007-2013). Como Recife não é uma área endêmica para a esquistossomose, todos os casos deveriam ser registrados no Sinan, segundo a Portaria do Ministério da Saúde GM/MS no 104, de 25 de janeiro de 2011.22 Para essa etapa, foram considerados os óbitos registrados no SIM a partir de 2007, visto que a notificação no Sinan só ocorreu a partir deste ano.
O relacionamento probabilístico entre o SIM (2007-2013) e o Sinan (2007-2013) foi realizado pelo aplicativo OpenRecLink III. Foram utilizadas rotinas automáticas para o processamento dos arquivos, associadas a uma revisão manual dos pares duvidosos visando classificá-los como pares verdadeiros ou falsos, mediante as seguintes variáveis: nome, sexo, data de nascimento, nome da mãe, data do óbito, endereço da residência, número da residência, complemento, número da DO e número da notificação. Adicionalmente, foram realizadas as técnicas de blocagem e pareamento. Para a blocagem, utilizou-se o código soundex do primeiro e do último nome, assim como a variável ‘sexo’. O código soundex é um código fonético, cujas pequenas diferenças na escrita ou pronúncia originam o mesmo código.23 Os parâmetros foram estimados a partir de 20% da fração amostral dos bancos: (i) pelo algoritmo de comparação aproximado para o nome, com o seguinte fator de ponderação, concordância igual a 96,0% e discordância igual a 0,02%; e (ii) pelo algoritmo de comparação, caractere para data de nascimento, com o seguinte fator de ponderação, concordância igual a 94,5% e discordância igual a 1,2%.
Para o pareamento, foram combinados os arquivos para criação de um novo banco com base no arquivo de relacionamento contendo os registros identificados como pares verdadeiros. A existência de subnotificações entre os dois sistemas supracitados foi avaliada manualmente.
Para investigar a autoctonia dos óbitos por esquistossomose na população de estudo, foi realizada busca ativa dos familiares. Foram investigadas a história epidemiológica e os perfis demográfico e socioeconômico dos pacientes que foram a óbito por causa básica de esquistossomose na cidade do Recife, no período de 2005-2013. Foram realizadas entrevistas mediante aplicação de questionários com os familiares dos indivíduos que foram a óbito, para levantar as variáveis sociodemográficas ‘sexo’ (masculino; feminino), ‘local de residência anterior’ (município endêmico, município não endêmico, sem informação), faixa etária (em anos: 30 a 49, 50 a 69, 70 ou mais), escolaridade (analfabeto, ensino fundamental, ensino médio, ensino técnico, ensino superior completo) e tempo de residência no Recife antes do óbito (≤6 meses, >6 meses a 1 ano, >1 a 10 anos, >10 anos, sem informação). Também foram levantadas as variáveis referentes às condições sanitárias dos domicílios: abastecimento de água (rede pública, poço ou nascente, rio, outros) e destino de fezes e urina (sistema de esgoto, fossa, céu aberto, sem informação).
Para os casos notificados no Sinan no período de 2007 a 2013, foi considerada a variável ‘município de infecção’, e para a investigação sobre a autoctonia dos casos, foram levantadas as seguintes variáveis: procedência, residência e possível local de infecção. Foram descartados como casos autóctones aqueles que tiveram qualquer tipo de exposição de risco em localidade endêmica ou não para esquistossomose que não fosse a cidade do Recife, segundo o informante-chave.
No mapa de fluxo dos óbitos (2005-2013), os pontos de origem foram os locais de infecção identificados nas investigações com familiares dos indivíduos que foram a óbito; e os pontos de chegada, a cidade do Recife, visto ser este o local de residência registrado no SIM. Quanto à investigação no SIM sobre o possível local de exposição e infecção para a doença, foram analisados 125 registros de óbitos encontrados, haja vista cinco destes registros pertencerem a outros estados do Brasil.
No mapa de fluxo dos casos do Sinan (2007-2013), os pontos de origem estabelecidos foram os locais de infecção registrados no sistema, e o ponto de chegada, a cidade do Recife.
As análises dos dados foram realizadas pelos programas Epi Info versão 4.6.1, Tab para Windows 32, Wine versão 3.6b e planilhas eletrônicas do Microsoft Office Excel 2010. Foram aplicadas medidas de tendência central e dispersão, bem como frequência para os perfis apresentados em tabelas. Posteriormente, foram construídos mapas de fluxos para representar os pontos de origem e chegada dos indivíduos acometidos pela esquistossomose.
O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 24924613.6.0000.5190, de 27/02/2014 - por cumprir os princípios éticos contidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
De 2005 a 2013, foram identificados no SIM 297 óbitos por causa básica de esquistossomose, e 388 casos de esquistossomose foram notificados no Sinan no período de 2007 a 2013, na cidade do Recife. Durante o período de 2005 a 2013, a média anual de óbitos por esquistossomose no Recife registrados no SIM foi de 33 (desvio-padrão = 5,3) (Tabela 1).
Ano | Sistema de informações | |||
---|---|---|---|---|
Óbitosa | Casosb | |||
n | % | n | % | |
2005 | 31 | 10,4 | - | - |
2006 | 28 | 9,4 | - | - |
2007 | 43 | 14,5 | 30 | 7,7 |
2008 | 35 | 11,8 | 41 | 10,6 |
2009 | 31 | 10,4 | 33 | 8,5 |
2010 | 39 | 13,1 | 49 | 12,6 |
2011 | 35 | 11,8 | 76 | 19,6 |
2012 | 29 | 9,8 | 72 | 18,6 |
2013 | 26 | 8,8 | 87 | 22,4 |
Total | 297 | 100,0 | 388 | 100,0 |
a) Óbitos registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM).
b) Casos registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Na busca dos familiares dos 297 óbitos, foram encontrados 134 (45,1%) informantes, dos quais quatro (1,3%) se recusaram a participar da pesquisa. Assim, 130 indivíduos foram entrevistados. Entre os demais casos, 126 (42,4%) apresentavam endereço incompleto no SIM, 15 haviam mudado de endereço (5,0%) e 22 (7,4%) não foram encontrados em casa após três tentativas.
Dos 388 casos registrados no Sinan no período de 2007 a 2013, 365 não haviam evoluído a óbito até 2013, daí não serem identificados no SIM. Na análise de relacionamento probabilístico entre as notificações dos casos de esquistossomose no Sinan e dos óbitos existentes no SIM, considerando-se o período de 2007 a 2013, apenas 23 - dos 238 óbitos registrados - foram pareados (Figura 1).
p-valor = 0,036
* p-valor se refere à probabilidade de um registro ser identificado em ambos os bancos de dados: Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Logo, com p-valor menor que 0,05, se aceita a hipótese de que o número de registros que foram pareados se refere a uma mesma pessoa.
Segundo os dados levantados nas entrevistas com os familiares, em sua maioria, os óbitos por esquistossomose registrados no SIM entre 2005 e 2013 eram do sexo feminino (51,5%), adultos maiores de 50 anos (89,3%), analfabetos ou com ensino fundamental inconcluso (86,9%), recebiam água pela rede pública (92,3%) e tinham, como destino das fezes, fossa ou céu aberto (83,1%). Os familiares informaram que 90,0% dos indivíduos que evoluíram a óbito residiram, anteriormente, em município não endêmico para a doença e foram para o Recife por razões familiares e oportunidade de trabalho, tendo residido no Recife por mais de dez anos: média de 22 anos (Tabela 2).
Variável | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 67 | 51,5 |
Masculino | 63 | 48,5 |
Faixa etária (em anos) | ||
<30 | 0 | 0,0 |
30-49 | 14 | 10,7 |
50-69 | 46 | 35,4 |
≥70 | 70 | 53,9 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 54 | 41,5 |
Ensino fundamental | 59 | 45,4 |
Ensino médio | 9 | 6,9 |
Ensino técnico | 5 | 3,8 |
Superior completo | 3 | 2,3 |
Tempo de residência no Recife antes do óbito | ||
≤6 meses | 3 | 2,3 |
>6 meses a 1 ano | 1 | 0,8 |
>1 a 10 anos | 7 | 5,4 |
>10 anos | 117 | 90,0 |
Sem informação | 2 | 1,5 |
Local de residência anterior | ||
Município endêmico | 12 | 9,2 |
Município não endêmico | 117 | 90,0 |
Sem informação | 1 | 0,8 |
Abastecimento de água | ||
Rede pública | 120 | 92,3 |
Poço ou nascente | 7 | 5,4 |
Rio | 2 | 1,5 |
Outros | 1 | 0,8 |
Destino de fezes e urina | ||
Sistema de esgoto | 21 | 16,1 |
Fossa | 75 | 57,7 |
Céu aberto | 33 | 25,4 |
Sem informação | 1 | 0,8 |
Dos 125 registros de óbitos encontrados no SIM, cujo local de exposição e infecção foi o estado de Pernambuco, verificou-se que 26 (20,8%) tiveram o município de Recife como local de infecção. Os municípios de Goiana e Palmares foram o local de infecção de sete casos cada. Com relação à divisão por Mesorregião Pernambucana, 50,4% dos casos foram infectados na Zona da Mata, 33,6% na região metropolitana do Recife e 20,8% no Agreste Pernambucano (Figura 2).
A Figura 3 apresenta o mapa de fluxo dos 338 casos registrados no Sinan, dos quais foi possível descrever o fluxo de 276, visto que 112 casos não possuíam o campo ‘município de infecção’ preenchido no sistema de informação. Os mapas de fluxos registram os fluxos internos, pontos de origem e chegada de 63 casos (23,8%) mostrando o município do Recife como local de infecção, seguidos dos fluxos de 15 casos (5,6%) provenientes do município de Jaboatão dos Guararapes. Na Mesorregião Pernambucana, 44,5% dos fluxos pertenciam à Zona da Mata, 42,3% à região metropolitana do Recife e 13,2% ao Agreste Pernambucano (Figura 3).
Discussão
Analisando-se a incidência de casos de esquistossomose registrados no Sinan no período de 2007-2013, foi possível constatar um aumento gradual na captação dos casos com a implantação da notificação compulsória pela Secretaria de Saúde do Recife em 2007. Observou-se, também, que a maioria dos óbitos por esquistossomose registrados para a cidade do Recife no período de 2007 a 2013 (238) não foram notificados no Sinan (215) no momento do diagnóstico, no decorrer do mesmo período de estudo. Essa discordância de informações está em desacordo com a regulamentação da Portaria SVS/MS no 5, de 21 de fevereiro de 2006, e da Portaria GM/MS no 104, de 25 de janeiro de 2011, que recomenda a notificação no Sinan de todos os casos de esquistossomose em áreas não endêmicas.22,24 Essa falha impede a integração das informações para investigação desses óbitos registrados no SIM e denota uma fragilidade no relacionamento entre os sistemas de informações, o que afeta o atendimento e monitoramento do paciente. A notificação e a investigação epidemiológica dos casos de esquistossomose residentes da cidade do Recife são de fundamental importância, visto que tais procedimentos interferem diretamente no planejamento das ações de controle da doença.
Menos de um terço dos indivíduos investigados possuíam plano de saúde, e mesmo os que possuíam também frequentaram a rede pública para as primeiras ações de cuidado com sua saúde, até evoluírem a óbito. Na presente investigação, constatou-se que formas clínicas graves da doença só aparecem nos sistemas de informações em saúde quando os sujeitos falecem e são registrados no SIM, indicando que, em localidades não endêmicas, os profissionais de saúde estão pouco sensíveis à importância do diagnóstico e notificação da esquistossomose, tanto no sistema público como no privado. Estudos demonstram que o correto registro das formas graves da esquistossomose está relacionado com a eficiência dos sistemas e serviços de saúde, e com a qualidade da assistência prestada aos usuários.25
Nesse sentido, o Sinan é um sistema de informação cujos dados deveriam auxiliar nas análises do perfil da morbidade dos agravos, subsidiando a tomada de decisões nos âmbitos municipal, estadual e federal. A informação é a ferramenta desencadeadora da ação na vigilância em saúde, cujo principal objetivo é diminuir os óbitos ocorridos pelas formas graves de esquistossomose.26 Com isso, a identificação e a notificação dos casos de esquistossomose pela rede de saúde em tempo oportuno minimizam as chances de o indivíduo evoluir para óbito e possibilitam as atividades de vigilância no município.
Em um estudo de série de casos no período 2008-2009, realizado por Silva e Domingues27 em 2011, identificou-se 159 pacientes hospitalizados apresentando a forma clínica grave da esquistossomose, 60,3% deles com mais de 50 anos de idade, uma elevação da incidência de pessoas provenientes de Recife e sua região metropolitana (20,1%), sobretudo do município de Jaboatão dos Guararapes (11,9%), e com 3,1% dos casos a mencionar nunca ter tido exposição fora da região metropolitana. O presente trabalho corrobora alguns achados daquele estudo, como a incidência das formas graves na faixa etária acima dos 50 anos, a presença de indivíduos com esquistossomose na região metropolitana e a identificação de casos com possíveis locais de infecção no Recife. Ainda com relação à faixa etária, os resultados se assemelham a outros estudos sobre a esquistossomose realizados no Brasil, cujos indivíduos esquistossomóticos possuíam idade superior aos 50 anos,28 fase da vida quando ainda se considera alguém economicamente ativo.
Chamam a atenção, na atual pesquisa, os relatos dos familiares afirmando que 20,8% dos indivíduos que foram a óbito por esquistossomose nunca viajaram para áreas endêmicas, proporção quase coincidente com os 23,8% de casos notificados no Sinan, para os quais o município de infecção é a cidade do Recife. Todavia, a afirmação da autoctonia dos casos requer cautela, haja vista o possível viés de memória dos informantes; bastaria uma única menção sobre exposição em alguma área endêmica, para que o caso fosse descartado como autóctone pelo presente estudo. As investigações dos óbitos ocorridos no período de 2005 a 2013 foram realizadas em 2015, representando uma lacuna de tempo de dois anos, capaz de levar ao esquecimento do familiar sobre a ida do indivíduo para algum outro município. De todo modo, esses achados são sentinelas para os serviços de saúde, que mediante um caso positivo ou óbito por esquistossomose em Recife, devem investigar e confirmar o local de infecção e desenvolver as ações de assistência e vigilância em saúde.
Sobre as condições sanitárias dos domicílios com portadores da doença que foram a óbito no Recife, constatou-se que 83,9% não possuíam sistema de esgoto, dados mais expressivos do que as estatísticas do Instituto Trata Brasil (2013), cuja conclusão foi de que 35,0% da área do Recife não era coberta com esgotamento sanitário.29
Aliado a isto, o contexto social e econômico das áreas rurais de Pernambuco induz os fluxos migratórios internos e, com eles, casos de esquistossomose a chegar ao Recife em busca de trabalho. Este é um cenário epidemiológico de risco para a transmissão da esquistossomose na cidade do Recife, considerando-se que 12,7% da sua área metropolitana já é endêmica para essa doença.30
Como o número de registros pareados foi pequeno, os dois sistemas de informações precisam ser utilizados de forma integrada para aumentar a sensibilidade do sistema de saúde na identificação dos acometidos pela esquistossomose, reduzir a subnotificação no Sinan e qualificar as causas de óbito no SIM. A notificação e a investigação epidemiológica dos casos de esquistossomose residentes da cidade do Recife são de fundamental importância, enquanto procedimentos que interferem diretamente no planejamento das ações de controle da doença. Esta pesquisa está tendo continuidade, por meio de investigações ambientais no entorno das residências dos óbitos e casos identificados neste estudo, em busca de focos de moluscos vetores e casos autóctones da doença, para esclarecer a transmissão da esquistossomose na cidade do Recife.
A esquistossomose é uma doença negligenciada, com forte determinação social. No caminho de sua superação, cumpre ultrapassar o paradigma biomédico e buscar intervenções populacionais intersetoriais, dentro da visão da Promoção da Saúde. Articulações capazes de empoderar a população e tornar o ambiente socioespacial mais saudável são fundamentais para a mudança do status quo em que se reproduzem socialmente as iniquidades em saúde coletiva no Brasil.