Introdução
Para dimensionar a magnitude da mortalidade perinatal, é essencial o registro sistemático e confiável dos casos, realizado no Brasil pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) a partir das informações provenientes da Declaração de Óbito (DO). Essas informações são relevantes para avaliar as causas de morte, identificar e compreender os fatores de risco envolvidos, subsidiar as prioridades das políticas públicas em saúde e estratégias de prevenção.1,2 Entretanto, em apenas oito Unidades da Federação é possível utilizar a taxa de mortalidade perinatal como um indicador direto das estatísticas vitais, devido à subenumeração dos óbitos fetais e à baixa qualidade dos dados registrados na DO.3
A ausência e a baixa confiabilidade de informações provenientes do SIM dificultam a construção de indicadores e a análise de fatores relacionados à ocorrência do óbito perinatal, especialmente no que diz respeito a características maternas e socioeconômicas. Estudos nacionais1,4-6 destacam a deficiência no preenchimento e a necessidade de melhoria da qualidade das informações disponíveis nas estatísticas vitais oficiais do Brasil. Sua comparação com registros hospitalares em prontuários é um dos mecanismos para avaliação da qualidade da informação, comumente investigada em estudos de confiabilidade e de completitude.7
Na primeira década do século XXI, houve melhoria do nível de adequação das estatísticas vitais em todo o país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.6 Também se observou melhor qualidade das informações disponíveis no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc) - em relação ao SIM -,8 para os bebês que nasceram vivos, quando comparadas às informações dos que nasceram mortos.9
A baixa confiabilidade dos dados para o óbito perinatal disponibilizados no SIM evidencia a necessidade de investigações sobre a qualidade das informações. O objetivo deste estudo foi analisar a completitude e confiabilidade dos dados para os óbitos perinatais constantes no SIM em 2011 e 2012.
Métodos
Estudo descritivo que analisou a qualidade do preenchimento dos dados das Declarações de Óbito perinatais notificados no SIM, em comparação aos dados coletados pela pesquisa ‘Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento’. Trata-se de um estudo nacional de base hospitalar com puérperas e seus recém-nascidos, realizado entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012.
O estudo foi realizado com uma amostra probabilística, selecionada em três estágios. O primeiro estágio teve como objeto o hospital, estratificado por macrorregiões do país (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste), localização (capital; interior) e tipo (público; misto; privado);10,11 dentro de cada estrato, os estabelecimentos tiveram uma probabilidade de seleção proporcional ao tamanho (a cada estabelecimento, dentro de cada estrato, correspondeu o mesmo tamanho amostral de 90 puérperas). No segundo estágio, foi utilizado um método de amostragem inversa para quantificar o tempo necessário para atingir o número de puérperas a serem entrevistadas no hospital (dias necessários para alcançar 90 puérperas em cada estabelecimento). O terceiro estágio tocou às puérperas e seus conceptos (quantidade de puérperas a serem selecionadas por dia, a depender do número de nascidos, de turnos de pesquisa e entrevistadores, por hospital e dia).10
Na primeira fase da investigação, foram realizadas entrevistas face a face com as puérperas, levantaram-se dados de seus prontuários e dos recém-nascidos, e foram fotografadas as cadernetas da gestante. Entrevistas telefônicas foram realizadas 45 dias após o parto, para coleta de dados sobre desfechos maternos e neonatais, incluindo o óbito neonatal.11
Foi considerado óbito perinatal aquele ocorrido antes do nascimento, a partir da 22ª semana de gestação e/ou com peso ao nascer ≥500g até o 6º dia de vida completo.3 Os óbitos foram identificados durante a entrevista com a puérpera, nos prontuários ou, ainda, no seguimento por telefone. Posteriormente, realizou-se linkage dos dados da pesquisa com os do SIM referentes aos anos de 2011 e 2012, para identificar os óbitos perinatais ocorridos nos hospitais participantes da pesquisa e que não foram identificados durante o trabalho de campo, seja por recusa, seja devido à perda por alta precoce. Para fins de análise, foram consideradas as variáveis disponíveis no SIM e na pesquisa:
- sexo do óbito;
- idade materna;
- escolaridade materna;
- número de filhos nascidos vivos;
- número de perdas fetais/abortos;
- tipo de gravidez; tipo de parto;
- duração da gestação;
- morte em relação ao parto;
- peso ao nascer; raça/cor da pele; e
- causa básica da morte.
A partir de 2011, a duração da gestação passou a ser registrada na DO em número de semanas de gestação. Até então, a informação era registrada em seis faixas: menos de 22; 22 a 27; 28 a 31; 32 a 36; 37 a 41; e 42 e mais semanas gestacionais.2 Neste estudo, foram encontradas informações no SIM das duas maneiras, razão por que se optou pelas análises, tanto na forma contínua quanto na categórica. Na pesquisa, a duração da gestação foi obtida por meio de um algoritmo que calculou a idade gestacional ao nascimento, combinando a data da última menstruação e ultrassonografia obstétrica realizada entre 7 e 20 semanas de gestação.12
Completitude, em um sistema de informações, refere-se ao grau de preenchimento de cada campo analisado, mensurada pela proporção entre campos preenchidos e não preenchidos.13 Aqui, a completitude dos dados foi avaliada conforme a classificação proposta por Romero & Cunha:14 excelente (acima de 95%); boa (de 90 a 95%); regular (de 80 a 90%); ruim (de 50 a 80%); e muito ruim (abaixo de 50%). A variável ‘raça/cor da pele’ foi avaliada apenas para os óbitos neonatais precoces, pois esse campo não é preenchido quando se trata de óbito fetal.² Foram aplicados testes estatísticos (qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher) para avaliação das diferenças entre óbitos fetais e óbitos neonatais precoces, quando necessário. Foi considerado o nível de significância estatística de 5%.
A confiabilidade para as variáveis categóricas foi avaliada pelo grau de concordância medido pelo coeficiente Kappa, e para as ordinais, utilizou-se o Kappa ponderado quadrático,15 e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). A concordância foi qualificada pela seguinte escala: pobre (<0,00); fraca (0,00 a 0,20); razoável (0,21 a 0,40); regular (0,41 a 0,60); boa (0,61 a 0,80); quase perfeita (0,81 a 0,99); e perfeita (1,00).16
Para as variáveis contínuas - idade materna, duração da gestação e peso ao nascer -, foi calculado o coeficiente de correlação intraclasse (CCI) e seus respectivos IC95%. Para as variáveis contínuas, também foi utilizado o método proposto por Bland-Altman. Trata-se de um gráfico de dispersão, em que são plotadas as diferenças absolutas (eixo das ordenadas) e as médias das medidas (eixo das abscissas), para avaliar graficamente a magnitude das discordâncias entre as medidas contínuas, limites de concordância, erros ou padrões sistemáticos, e identificar outliers.17
Todas as análises foram realizadas para os óbitos perinatais e seus componentes, fetal e neonatal precoce. Nas análises estatísticas, foram aplicados os pacotes estatísticos SPSS versão 22.0 e MedCalc versão 16.6.4.
O projeto da pesquisa ‘Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento’ foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (n° 92/10), assim como o presente estudo, mediante o Parecer no 1.356.170 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética [CAAE] no 49356915.5.0000.5240), de 8 de dezembro de 2015. A proposta da pesquisa foi apresentada antes de cada entrevista, e as mulheres que concordaram em dela participar, ou os responsáveis pelas puérperas menores de idade, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cuja autorização incluía consulta aos prontuários e ligação telefônica após o puerpério.
Resultados
A amostra final totalizou 23.894 mulheres, selecionadas em 266 hospitais. Foram identificados 425 óbitos perinatais, dos quais 245 (57,6%) fetais; 383 dos 425 óbitos tiveram os dados do SIM avaliados segundo o grau de completitude das informações, uma vez que 42 óbitos (9,9%) participantes da pesquisa não foram identificados no SIM após linkage: 26 óbitos fetais e 16 neonatais precoces. Foram incluídos na análise de confiabilidade 210 óbitos (49,4% do total) que dispunham de informações concomitantes na pesquisa ‘Nascer no Brasil’ e no SIM.
Os óbitos perinatais apresentaram completitude superior a 95% (excelente) para o sexo e a causa básica da morte. Escolaridade materna e número de perdas fetais/abortos tiveram completitude entre 50 e 80%, considerada ruim. Não foram encontradas diferenças significativas de completitude entre os óbitos fetais e neonatais precoces, para as variáveis analisadas (Tabela 1). Houve um caso de óbito fetal classificado como não fetal no SIM, e um de neonatal precoce classificado como fetal.
Variáveis | Óbito perinatal | Óbito fetal | Óbito neonatal precoce | p-valora |
---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | n (%) | ||
Idade materna | 377 (88,0) | 190 (86,8) | 147 (89,6) | 0,392 |
Escolaridade materna | 292 (76,2) | 162 (74,0) | 130 (79,3) | 0,228 |
Número de filhos nascidos vivos | 314 (82,0) | 175 (79,9) | 139 (84,8) | 0,222 |
Número de perdas fetais/abortos | 297 (77,5) | 128 (78,0) | 169 (77,2) | 0,838 |
Duração da gestação | 334 (87,2) | 192 (87,7) | 142 (86,6) | 0,753 |
Tipo de gravidez | 360 (94,0) | 208 (95,0) | 152 (92,7) | 0,350 |
Tipo de parto | 356 (93,0) | 205 (93,6) | 151 (92,1) | 0,562 |
Morte em relação ao parto | 348 (90,9) | 200 (91,3) | 148 (90,2) | 0,717 |
Sexo | 374 (97,7) | 212 (96,8) | 162 (98,8) | 0,311b |
Raça/cor da pele | 137 (83,5) | - c | 137 (83,5) | - c |
Peso ao nascer | 352 (91,9) | 202 (92,2) | 150 (91,5) | 0,783 |
Causa básica da morte | 382 (99,7) | 218 (99,5) | 164 (100,0) | 1,000b |
a) Teste do qui-quadrado de Pearson.
b) Teste exato de Fisher.
c) A variável não foi avaliada, porque este campo da ficha de notificação do SIM não é de preenchimento obrigatório.
Para os óbitos perinatais, observou-se concordância quase perfeita para tipo de gravidez (Kappa=0,942), tipo de parto (Kappa=0,979) e sexo (Kappa=0,947). Ao se avaliar cada componente do óbito perinatal, verificou-se que a duração da gestação, em sua forma categórica, e o número de filhos vivos apresentaram melhor concordância para o óbito fetal do que para o neonatal precoce. A variável que apresentou pior concordância foi o número de perdas fetais/abortos, entre os óbitos fetais, considerada razoável (Kappa=0,348); para os neonatais precoces, essa variável foi classificada como regular (Kappa=0,633) (Tabela 2).
Variáveis | Óbito perinatal (n=210) | Óbito fetal (n=102) | Óbito neonatal precoce (n=108) |
---|---|---|---|
Coeficiente (IC95%) | Coeficiente (IC95%) | Coeficiente (IC95%) | |
Variáveis categóricas e discretas | Coeficiente Kappa | ||
Escolaridade maternaa,h | 0,687 (0,596;0,778) | 0,649 (0,543;0,814) | 0,678 (0,548;0,808) |
Número de filhos nascidos vivosb,h | 0,704 (0,619;0,789) | 0,881 (0,765;0,996) | 0,542 (0,429;0,996) |
Número de perdas fetais/abortosc,h | 0,483 (0,342;0,624) | 0,348 (0,169;0,527) | 0,633 (0,444;0,822) |
Tipo de gravidezd | 0,942 (0,867;1,000) | 1,000 (1,000;1,000) | 0,931 (0,842;1,000) |
Tipo de partoe | 0,979 (0,950;1,000) | 1,000 (1,000;1,000) | 0,960 (0,905;1,000) |
Duração da gestaçãof,h | 0,704 (0,619;0,789) | 0,881 (0,765;0,996) | 0,542 (0,429;0,655) |
Sexog | 0,947 (0,900;0,993) | 0,932 (0,857;1,000) | 0,959 (0,903;1,000) |
Variáveis contínuas | Coeficiente de correlação intraclasse | ||
Idade maternai | 0,999 (0,999;0,999) | 0,998 (0,997-;0,999) | 0,999 (0,999;1,000) |
Peso ao nascerj | 0,972 (0,989;0,989) | 0,990 (0,985;0,994) | 0,978 (0,967;0,985) |
Duração da gestaçãol | 0,673 (0,540;0,768) | 0,448 (0,098;0,667) | 0,925 (0,881;0,953) |
a) número de pares: 168 (perinatal), 82 (fetal) e 86 (neonatal precoce).
b) número de pares: 170 (perinatal), 77 (fetal) e 93 (neonatal precoce).
c) número de pares: 156 (perinatal), 72 (fetal) e 84 (neonatal precoce).
d) número de pares: 198 (perinatal), 94 (fetal) e 102 (neonatal precoce).
e) número de pares: 194 (perinatal), 93 (fetal) e 101 (neonatal precoce).
f) número de pares: 181 (perinatal), 85 (fetal) e 96 (neonatal precoce).
g) número de pares: 193 (perinatal), 90 (fetal) e 103 (neonatal precoce).
h) Kappa ponderado.
i) número de pares: 192 (perinatal), 93 (fetal) e 99 (neonatal precoce).
j) número de pares: 186 (perinatal), 85 (fetal) e 101 (neonatal precoce).
l) número de pares: 132 (perinatal), 59 (fetal) e 73 (neonatal precoce).
O CCI demonstrou menor variabilidade para a idade materna, número de filhos nascidos vivos e peso ao nascer, classificados como de concordância quase perfeita; a duração da gestação em sua forma contínua, apesar de ter apresentado concordância inferior às demais, foi considerada boa (CCI=0,673) para os óbitos perinatais. Observou-se concordância regular para a duração da gestação entre os óbitos fetais (CCI=0,448), e quase perfeita entre os neonatais precoces (CCI=0,925) (Tabela 2).
No gráfico de dispersão Bland-Altman de peso ao nascer, observou-se a maioria dos óbitos perinatais com diferença próxima ao zero e linha da média das diferenças positiva (17,8 gramas), bem distribuídos ao longo do eixo das abscissas, com variabilidade de aproximadamente 1.000g (IC95% -478,7;507,3) e outliers em ambas as direções. Para a variável idade materna, a maioria dos pontos esteve em torno do zero e da média da diferença. Foi observada uma série de pontos próximos do limite do desvio-padrão inferior, indicando subestimativa em 1 ano da variável disponível no SIM (Figura 1).
A variável duração da gestação (Figura 2) apresentou elevada amplitude das diferenças entre as medidas (IC95% -15,4;20,6), para os óbitos fetais. A informação contida no SIM apresentou, em média, subestimação da duração da gestação em relação à idade gestacional calculada pela pesquisa (2,6 semanas). Para os óbitos neonatais precoces, observou-se menor variabilidade entre os limites do intervalo de confiança (IC95% -6,2;5,6), e média das diferenças próxima ao valor zero (-0,3 semana). A concentração de pontos abaixo da diferença zero para gestações com duração média entre 25 e 35 semanas indica superestimação da duração da gestação nos dados do SIM para essa faixa de idade gestacional.
Discussão
Observou-se elevada completitude e confiabilidade dos dados disponíveis no SIM para óbitos perinatais captados pela pesquisa ‘Nascer no Brasil’, não obstantes as discordâncias mais elevadas encontradas para variáveis importantes, como duração da gestação, escolaridade materna e número de filhos nascidos vivos.
Este estudo é oriundo de dados nacionais de nível hospitalar no Brasil, representativo da maioria dos nascimentos ocorridos no país,10 demostrando a validade interna do estudo. Como limitações a sua realização, estão os óbitos perinatais identificados durante o trabalho de campo que não foram encontrados na base do SIM, e aqueles que foram identificados na base do SIM mas não foram identificados durante o trabalho de campo e, portanto, não tiveram entrevista realizada com a puérpera, tampouco acesso aos correspondentes prontuários médicos. Para estes, teve-se acesso, unicamente, às informações contidas no SIM, não sendo possível incluí-las nas análises de confiabilidade, prejudicando a validade externa dos resultados.
Os dados coletados no momento da ocorrência do parto, mediante entrevista direta com a puérpera, acesso aos prontuários hospitalares e cadernetas da gestante, possibilitaram a construção de variáveis mais fidedignas e aptas a comparação com os campos do SIM. Além disso, a avaliação em separado dos óbitos fetais e neonatais precoces permitiu identificar diferenças quanto à confiabilidade dos campos referentes aos antecedentes obstétricos e à duração da gestação, indicando a necessidade de um maior cuidado no preenchimento da DO e na definição do método utilizado para estimação da idade gestacional. A completitude variou entre regular e excelente para a maioria das variáveis analisadas, diferentemente do que foi registrado no SIM em oito estados do Brasil, no ano de 2002, quando se verificaram percentuais de completitude classificados entre os níveis ruim e regular.8 Ao se consultar os registros de óbitos fetais e neonatais precoces no ano de 2007, em municípios da região do município de Ribeirão Preto, São Paulo,18 encontraram-se maiores percentuais de completitude que os observados no presente estudo, para os mesmos campos, exceto para duração da gestação e sexo (89,5 e 99,0% versus 86,6 e 98,8%, respectivamente) entre os óbitos neonatais precoces. Pedrosa et al.19 também encontraram percentuais de completitude inferiores nos dados dos óbitos neonatais precoces registrados no município de Maceió, Alagoas, entre 2001 e 2002, para sexo, peso ao nascer, idade materna, tipo de parto e duração da gestação. Pesquisa realizada no estado de São Paulo em 2008,1 somente com óbitos fetais, observou completitudes superiores apenas para duração da gestação (92,1%) e sexo (98,9%). Recente publicação de estudo avaliativo das tendências de natimortalidade do Brasil entre 1996 e 2012,4 a partir de dados do SIM, encontrou decréscimo importante da incompletitude no período, para idade materna, escolaridade materna, duração da gestação, tipo de gravidez e peso ao nascer.
A escolaridade materna é um importante indicador socioeconômico associado à ocorrência de óbito perinatal.20,21 No entanto, foi o campo que apresentou menor completitude, segundo este trabalho, com 23,8% de informação ausente. Em nível nacional, resultado similar foi apresentado para óbitos fetais em 2012, de 22,4%,4 valor superior aos dos óbitos fetais (18,8%) e neonatais precoces (16,5%) relacionados à sífilis congênita referentes ao biênio 2012-2013.22 Em estudo conduzido no estado de Pernambuco, sobre dados relativos a óbitos fetais ocorridos nos triênios 1999-2001 e 2009-2011,23 o percentual também foi superior a 20% nos dois períodos. Outra variável que intensifica o risco de óbito perinatal18 é a história reprodutiva desfavorável, cuja ausência no sistema foi elevada para número de perdas fetais e/ou abortos (22,5%). Almeida et al.,1 ao analisarem os óbitos fetais no município de São Paulo em 2008, encontraram completitudes inferiores às reveladas aqui.
O comportamento divergente da concordância para o campo duração da gestação, em sua forma contínua e agrupada, entre óbitos fetais e neonatais precoces pode ser reflexo da maneira como a informação foi notificada na DO. A duração da gestação obtida de forma agrupada viabilizaria maior concordância com a informação proveniente da pesquisa, pois cada categoria engloba algumas semanas de gestação, o que ocorreu apenas para os óbitos fetais. Ademais, a informação disponível no SIM foi mais frequente em sua forma agrupada, e nem sempre havia a disponibilidade da informação contínua. O método de cálculo da idade gestacional é outro ponto que pode ser responsável pelas discordâncias encontradas, tendo em vista que se utiliza de um algoritmo para calcular o tempo de gestação, que considera, prioritariamente, a ultrassonografia obstétrica.12 Para o preenchimento da DO, não há indicação de qualquer método preferencial de estimação da idade gestacional, assim como não existe campo para indicação do método escolhido.2
A existência de outliers, com diferenças positivas superiores a 30 semanas de gestação entre os óbitos fetais, interferiram negativamente na concordância e subestimaram as medidas contidas no sistema, podendo indicar erros no preenchimento ou na digitação da DO. Não foram encontrados estudos nacionais ou internacionais que avaliassem a magnitude das discordâncias entre informações obtidas de estatísticas vitais e qualquer outra fonte de informação.
Os achados deste estudo indicam melhoria da confiabilidade dos dados disponibilizados no SIM, comparados aos apresentados por outros estudos nacionais, como o referido estudo descritivo de óbitos neonatais precoces hospitalares em Maceió,19 onde se constatou boa concordância para tipo de parto (Kappa=0,65) e ótima para sexo (Kappa=0,88), enquanto peso ao nascer, idade materna e duração da gestação tiveram Kappa de 0,19, 0,34 e 0,55, respectivamente. Lansky et al.,24 ao compararem as informações disponíveis no SIM com as obtidas de prontuários hospitalares para óbitos perinatais em Belo Horizonte, no ano de 1999, verificaram concordância quase perfeita para as variáveis peso ao nascer (Kappa=0,89) e tipo de parto (Kappa=0,91), e concordância regular para duração da gestação (Kappa=0,46).
O preenchimento da DO acontece muitas vezes de forma inadequada. Como essa é uma prerrogativa exclusivamente médica, atribui-se o fato ao ensino deficiente de preenchimento dos documentos de registros vitais, oferecido durante a graduação do profissional, além da pouca valorização da Declaração de Óbito como um documento de relevância epidemiológica. O preenchimento das informações socioeconômicas, por exemplo, costuma ser repassado a agentes administrativos.13 Em estudo qualitativo, conduzido no município de São Paulo no ano de 2009,25 verificou-se que os médicos identificam a DO em seu aspecto legal, conhecem a importância dos dados para uso epidemiológico e de Saúde Pública, porém dão ênfase ao preenchimento da causa de morte em detrimento dos outros campos, além de relatarem receber auxílio de outros profissionais no preenchimento de informações de identificação e características maternas.
A qualidade da digitação da DO no sistema também pode interferir na qualidade dos dados. O estudo descritivo realizado em Alagoas,19 ao comparar a DO preenchida pelos médicos com a base de dados do SIM de óbitos neonatais precoces hospitalares, constatou omissões dos técnicos encarregados de digitar as declarações, de maneira que a base de dados não refletia as informações reais constantes nos prontuários de óbitos neonatais precoces. É importante para a Saúde Pública um programa de capacitação periódica dos médicos sobre a relevância do preenchimento correto e adequado da DO, bem como dos profissionais responsáveis pela digitação do documento.26 Outro ponto a focar é a qualificação dos profissionais de saúde envolvidos com a vigilância epidemiológica do óbito fetal e infantil, capacitando-os para a investigação do óbito nos municípios, e em nível hospitalar, e inserção ou alteração no sistema de informações revisadas, inclusive para óbitos não notificados, mediante o preenchimento da Declaração de Óbito Epidemiológica.2
Em conclusão, as informações disponibilizadas no Sistema de Informações sobre Mortalidade para os óbitos perinatais mostram-se de qualidade e confiáveis, logo possíveis de serem utilizadas no planejamento e acompanhamento da mortalidade perinatal no país. Não obstante, há necessidade de aprimorar a qualidade de informações importantes para a avaliação da mortalidade perinatal, mediante estratégias que envolvam treinamento e capacitação dos profissionais envolvidos no preenchimento e digitação da Declaração de Óbito.