Introdução
A leptospirose é uma doença febril aguda, potencialmente grave, causada por uma bactéria do gênero Leptospira sp. Ela afeta especialmente o fígado e os rins, causando sintomas como febre, dor de cabeça, dores musculares, náuseas e vômitos. Estes são sintomas comuns a diversas outras doenças infecciosas, mas no caso da leptospirose, podem progredir para formas mais graves e levar à falência múltipla dos órgãos.1,2 A letalidade por leptospirose pode chegar a 20% e ocorre principalmente quando a doença não é devidamente diagnosticada e tratada. Trata-se de uma das zoonoses de maior distribuição geográfica no mundo, mais frequente entre países em desenvolvimento e de clima tropical. Uma grande variedade de animais silvestres e domésticos podem atuar como reservatório para os hospedeiros, porém os roedores, particularmente o rato marrom (Rattus norvegicus), têm sido relacionados à doença com maior frequência.1,2
No Brasil, a leptospirose é uma doença endêmica, tornando-se epidêmica em períodos chuvosos, principalmente nas capitais e áreas metropolitanas, devido a enchentes associadas à aglomeração populacional de baixa renda, condições inadequadas de saneamento e alta infestação de roedores infectados.3,4 A Amazônia Ocidental brasileira apresenta estrutura ecológica e clima tropical bastante favoráveis à disseminação da leptospirose.5 Nessa extensa região, municípios como Rio Branco, Acre, por exemplo, atravessam períodos de inundações praticamente todos os anos, deixando milhares de pessoas desabrigadas ou em situação de constante exposição às águas.6-9
Estudos que relacionam variáveis climáticas e ambientais à incidência da leptospirose na Amazônia são bastante escassos e faltam evidências quantitativas dos riscos climáticos e ambientais na transmissão dessa doença na região.10,11 Sendo assim, dado o padrão diferenciado de inundação urbana e as variações climáticas regionais, o objetivo deste estudo foi analisar a associação de variáveis ambientais com a incidência da leptospirose no município de Rio Branco, AC, Brasil, no período de 2008 a 2013.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico, pelo qual foi analisada a incidência mensal de leptospirose na população residente no município de Rio Branco, capital do estado do Acre (AC), entre 2008 e 2013. O município apresentava, em 2017, população de 383.443 habitantes, dos quais aproximadamente 92,0% viviam em áreas urbanas.6 O clima da região é equatorial, com temperatura anual variando em torno de 25 a 35°C, e apresenta duas estações: uma seca (de maio a setembro) e outra chuvosa (de outubro a abril). Rio Branco está localizada às margens do rio Acre, um dos principais rios da região Norte do país. Quase todos os anos, durante a estação chuvosa, ocorrem inundações em razão das cheias desse rio, causando alagamentos em grande parte da cidade.7-9
O período de tempo do estudo foi selecionado em função da disponibilidade de informações na base de dados adotada, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). As incidências de leptospirose foram analisadas quanto a sua evolução temporal, distribuição em distintas faixas etárias, relação com as médias mensais de variáveis climáticas regionais e oscilações mensais do nível do rio Acre, considerando-se as características climáticas peculiares da região, assim como um padrão diferenciado de inundação urbana e de exposição de populações vulneráveis.
Para este estudo, foram utilizados dados referentes ao número de casos mensais confirmados de leptospirose entre indivíduos residentes no município de Rio Branco, AC. Os casos foram registrados de acordo com o mês do aparecimento dos primeiros sintomas da doença. Foram obtidos dados categorizados por dez faixas etárias, relativos ao período de 1o de janeiro de 2008 a 31 de dezembro de 2013, registrados no Sinan. O sistema está disponível na página eletrônica do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), mantida pelo Ministério da Saúde do Brasil.12 Para as análises, foram calculadas as incidências mensais de leptospirose para cada 100 mil habitantes, estratificadas segundo ano, mês e faixa etária.
As estimativas populacionais foram obtidas junto à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).6 Para os cálculos das incidências mensais, foram utilizadas as estimativas anuais. O denominador utilizado foi o número estimado da população no ano, uma vez que não existe estimativa para os meses. Pela mesma razão, foram utilizadas as estimativas anuais para cada uma das faixas etárias.
Foram utilizadas as seguintes variáveis climáticas: número de dias com precipitação no mês; média mensal da precipitação (em mm); médias mensais das temperaturas máxima, média compensada e mínima (em °C); e média mensal da umidade relativa compensada (em %). Estes dados foram extraídos do banco de informações disponível no sítio eletrônico do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET).13 A variável ambiental utilizada foi a média mensal do nível do rio Acre (em metros), obtida do sistema de informações hidrológicas disponível na página eletrônica da Agência Nacional das Águas (ANA).14
Para as análises de associação entre as variáveis, foram utilizados os modelos generalizados autorregressivos e médias móveis, também chamados de modelos GARMA (Generalized Autoregressive Moving Average), com distribuição binomial negativa (BN) e função de ligação logaritmo.15 Esses modelos, cada vez mais adotados na literatura, especialmente em estudos de séries temporais, permitem modelar a correlação serial existente entre os dados.16,17 Para avaliar qual a melhor ordem do modelo GARMA, foram comparados diversos modelos com ordens distintas pelo critério de informação Akaike, também conhecido como AIC (Akaike Information Criterion).18 Este critério se baseia na escolha do modelo com menor distância de informações do modelo verdadeiro e, portanto, com menor AIC.18 A seleção das variáveis foi feita pelo método backward, que é o procedimento de retirar, por vez, a variável de maior p-valor. Esse procedimento foi repetido até restarem no modelo apenas variáveis significativas.19 Para esse método, foi adotado um nível de 5% de significância. Essas análises foram realizadas pelo programa estatístico R versão 3.0.1, do ano de 2013.
Todos os dados desta pesquisa foram obtidos de fontes secundárias de livre acesso, de forma que não houve necessidade de aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.20
Resultados
Durante o período de seis anos considerado pelo estudo, foram notificados 779 casos de leptospirose no município de Rio Branco. A incidência anual de leptospirose mostrou forte tendência ascendente desde o ano de 2010, quando era de 13,4 casos/100 mil hab., passando para 122,3 casos em 2013, atingindo uma incidência 10 a 60 vezes maior que a do país. Outrossim, observou-se um crescimento geométrico dessas incidências no município a partir de 2011: a incidência anual de leptospirose passou de 30,6 casos/100 mil hab., em 2011, para 71,6 em 2012 e 122,3 em 2013 (Figura 1).
A incidência média mensal de leptospirose, medida entre os anos de 2008 e 2013, mostrou forte aumento exatamente nos meses correspondentes à estação chuvosa na região (outubro-abril): de uma média de 3,9 casos/100 mil hab. no mês de outubro, para 8,1 casos/100 mil hab. em março, quando foi obtida a maior incidência média por essa doença no município. Na estação seca (maio-setembro), a maior média foi obtida no mês de maio, 2,3 casos de leptospirose por 100 mil hab., e a menor média no mês de julho, 1,4 caso/100 mil hab. (Figura 2).
A Figura 3 mostra que indivíduos entre 20 e 39 anos de idade foram os que apresentaram as maiores incidências médias mensais de leptospirose, durante o período de tempo estudado: 49,8 casos/100 mil hab. As crianças com menos de 1 ano de idade e na faixa etária de 1 a 4 anos representam os grupos com as menores incidências médias mensais de leptospirose, respectivamente 2,6/100 mil hab. e 2,0 casos/100 mil hab. Os idosos, principalmente aqueles com mais de 80 anos, representaram a terceira faixa etária com as menores incidências da doença: aproximadamente 10,5 casos mensais por 100 mil hab.
Após as análises de associação, para selecionar o melhor modelo, foram ajustados oito modelos GARMA com ordens distintas, e como critério de seleção utilizou-se o AIC. O modelo escolhido foi o que apresentou o menor valor. Após a aplicação do método backward, foram selecionadas as seguintes variáveis: ano; média mensal do nível do rio Acre; número de dias com precipitação no mês; média mensal da precipitação total; média mensal da umidade compensada; e média mensal das temperaturas mínima, compensada e máxima (Tabela 1).
Variável | Modelo bivariado | Modelo com múltiplas variáveis |
---|---|---|
RTa (IC95% b), p-valorc | RTa (IC95% b), p-valorc | |
Ano | ||
2008 | Intercepto | Intercepto |
2009 | 1,21 (0,57;2,58), 0,624 | 1,26 (0,60;2,65), 0,540 |
2010 | 0,97 (0,41;2,30), 0,948 | 0,97 (0,45;2,09), 0,929 |
2011 | 1,88 (0,86;4,12), 0,116 | 2,16 (1,06;4,42), 0,035 |
2012 | 4,36 (1,87;10,17), <0,001 | 4,22 (2,11;8,45), <0,001 |
2013 | 7,39 (3,11;17,55), <0,001 | 8,00 (4,07;15,71), <0,001 |
Nível do rio (em metros) | 1,10 (1,03;1,17), 0,003 | 1,07 (1,02;1,14), 0,012 |
Número de dias com precipitação no mês | 1,07 (1,00;1,15), 0,049 | 1,04 (1,00;1,07), 0,026 |
Precipitação total | 0,76 (0,58;1,00), 0,047 | - |
Umidade compensada | 0,98 (0,86;1,12), 0,757 | - |
Temperatura mínima | 1,25 (0,54;2,92), 0,604 | - |
Temperatura compensada | 0,73 (0,20;2,64), 0,628 | - |
Temperatura máxima | 1,10 (0,68;1,79), 0,689 | - |
Qd | 0,19 (p=0,050) | 0,19 (p=0,022) |
se | 0,16 (p=0,002) | 0,18 (p=0,001) |
AICf | 399,50 |
a) RT: razão das taxas de incidência.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Probabilidade de significância.
d) Parâmetro da média móvel.
e) Parâmetro de dispersão.
f) AIC: Akaike Information Criterion.
Para o intervalo de tempo considerado, observou-se aumento significativo na incidência de leptospirose a partir do ano de 2011, quantificado como 2,16 vezes maior em 2011 na comparação com 2008 (RT 2,16 - IC95% 1,06;4,42), 4,22 vezes maior em 2012 na comparação com 2008 (RT 4,22 - IC95% 2,11;8,45) e 8,00 vezes maior em 2013, também na comparação com 2008 (RT 8,00 - IC95% 4,07;15,71) (Tabela 1).
O nível do rio Acre influenciou significativamente a ocorrência da leptospirose (RT 1,07 - IC95% 1,02;1,14): cada metro acrescido à média mensal do nível do rio esteve associado a um aumento de 7% na incidência mensal da doença. O número de dias com precipitação no mês também mostrou influência significativa na ocorrência da doença: cada dia a mais de precipitação no mês esteve associado a um aumento de 4% na incidência mensal de leptospirose (RT 1,04 - IC95% 1,00;1,07) (Tabela 1).
O parâmetro da média móvel (Q) apresentou valor significativo e diferente de zero (p=0,050), o que confirma a escolha da ordem do modelo GARMA. O parâmetro de dispersão (s) também foi diferente de zero e significativo (p=0,002), confirmando ser o modelo binomial negativo a escolha mais correta para esta análise (Tabela 1).
Discussão
Os resultados alcançados com as presentes análises mostram que, no município de Rio Branco, a quantidade de dias com precipitação no mês e a média mensal do nível do rio podem interferir na ocorrência da leptospirose, causando aumentos de, respectivamente, 4,0% e 7,0% nas incidências da doença. Essas variáveis podem representar indicadores para a predição de tendências na ocorrência dessa doença, neste e nos demais municípios da Região Amazônica, considerando-se que esses municípios apresentam ambiente e clima bastante semelhantes.
Sabe-se que chuvas fortes e inundações são, de fato, os principais responsáveis pelos surtos epidêmicos de leptospirose em países tropicais e subdesenvolvidos, especialmente quando combinados à poluição do ambiente e à presença de roedores.4,20,21 Entretanto, não se sabia até então o quanto esses fatores poderiam contribuir para esses surtos, especialmente naquela região do país. O Brasil é um país de dimensões continentais e, por conseguinte, ampla diversidade climática e ambiental entre suas diferentes regiões.
Em Rio Branco, essa situação torna-se especialmente preocupante porque as cheias do rio Acre ocorrem praticamente todos os anos.7,8 Durante essas inundações, as leptospiras, que se concentraram no solo durante os períodos secos, se espalham para áreas distantes, atingindo grupos populacionais expostos às águas. Indivíduos residentes em áreas próximas aos focos, geralmente, entram em contato com o agente infeccioso de forma mais rápida e frequente, resultando nos típicos surtos presentes de 3 a 5 semanas após as enchentes, pois o período de incubação da doença costuma ser de 7 a 12 dias.1,4,22,23
Este estudo também mostra que as incidências mensais de leptospirose têm aumentado consideravelmente na região. Entre 2011 e 2013, por exemplo, esse aumento foi geométrico, revelando uma situação de emergência e reforçando a necessidade de uma maior atenção às medidas de prevenção e controle da infecção. Atualmente, a leptospirose é considerada uma doença infecciosa emergente em todo o mundo, devido ao aumento substancial de sua incidência e sua dispersão geográfica.23,24 Pode ter contribuído para sua expansão o fato de a leptospirose ter sido negligenciada nas últimas décadas, dado seu impacto na sociedade ser baixo.24
Importante ressaltar, também, que o presente trabalho associa aspectos de variabilidade climática e ambiental ao estudo da incidência da leptospirose em um contexto amazônico, onde a perspectiva das mudanças climáticas globais pode trazer exacerbação da vulnerabilidade e quadros epidemiológicos bastante preocupantes. Com tais mudanças climáticas em curso, prevê-se intensificação e aumento na frequência dos eventos climáticos e ambientais extremos no mundo.25 Os modelos climáticos projetados para a Região Amazônica apontam para grandes aumentos de temperatura, contribuindo para um possível prolongamento da sobrevivência das bactérias no ambiente, ampliação dos habitat e aumento do número de espécies atuantes como reservatório da bactéria.24-26 Esse aumento da temperatura também poderá influenciar no regime de chuvas e na ocorrência de enchentes na região, devido ao aquecimento da superfície do Oceano Atlântico Sul Tropical,27 levando a uma maior distribuição e exacerbação da leptospirose e das demais doenças de veiculação hídrica, sobretudo em contextos urbanos de vulnerabilidade.22,27
É mister, igualmente, considerar a forma como se deu a urbanização da Amazônia Brasileira e seu papel na geração de condições favoráveis à transmissão da doença.4,28 O aumento da migração do meio rural para o urbano, nas últimas décadas, acarretou um processo de urbanização sem o devido planejamento, um aumento das ocupações populacionais em torno dos rios e igarapés, em aglomerados subnormais, com infraestrutura e saneamento precários, e, como consequência, a instalação de um quadro de vulnerabilidade, reflexo da dimensão socioeconômica da leptospirose.3,11,29
Os resultados desta pesquisa corroboram os da literatura, ao demonstrar que a incidência da leptospirose costuma ser maior em adultos e menor em crianças e idosos.2,30 Crianças têm contato limitado com o solo e água contaminados, principalmente durante a ocorrência de eventos ambientais extremos, quando é comum acontecerem os surtos. Além disso, crianças com menos de 10 anos de idade, normalmente, apresentam reações menos graves à infecção.30 A menor incidência nos idosos deve-se, provavelmente, a uma menor exposição a ambientes contaminados e ao desenvolvimento de um certo nível de imunidade, resultante de exposição prévia em áreas endêmicas.30 Contudo, dados da literatura revelam maior letalidade por leptospirose em idosos.30 Os adultos ficam mais expostos à doença em função de suas atividades laborais, e, por constituírem a população economicamente ativa, seu adoecimento e/ou morte acarreta perda para o trabalho e a produção social.
Sabe-se que estudos envolvendo dados secundários, apesar de fornecerem informações valiosíssimas para estudos ecológicos, estão sujeitos a diversas limitações. Uma das limitações mais importantes para os estudos que analisam séries temporais são as variações na qualidade da coleta e registro dos dados ao longo do tempo, concorrendo para erros em sua análise e na obtenção de resultados mais confiáveis. No presente estudo, utilizou-se um método estatístico que permite modelar vieses, como a correlação serial entre os dados e erros relativos à escolha da ordem dos modelos e de seleção das variáveis.
Estas análises não se basearam em dados socioeconômicos e características geográficas, de maneira que não houve caracterização dos grupos populacionais em situação de vulnerabilidade socioambiental à leptospirose. Também não foram avaliados os progressos alcançados pelos serviços de vigilância e saúde, no acesso e aumento dos testes diagnósticos, o que pode ter contribuído para o impressionante crescimento na incidência basal da doença observado no período em questão.
Não obstante, o estudo conseguiu apresentar, pela primeira vez na Região Amazônica, as variáveis climáticas e ambientais associadas, de fato, à maior incidência da leptospirose e sua intensidade. Esse maior conhecimento sobre a distribuição temporal dos casos, sua relação com o clima e ambiente regionais somado à detecção do alto potencial de transmissão da doença em Rio Branco, pode contribuir para o planejamento e as tomadas de decisão visando à prevenção e mitigação dos impactos climáticos e ambientais na saúde da população da capital do Acre.