Introdução
Condições socioeconômicas têm sido preditoras da heterogeneidade do risco de adoecer e morrer por diferentes causas, no Brasil como em outras partes do mundo.1 A mortalidade precoce é mais frequente entre brasileiros indígenas e pretos, sendo que diferenças socioeconômicas, estendidas por sucessivas gerações, podem explicar nossas iniquidades em saúde.2 A epidemia de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) também se distribui de forma heterogênea no país, interferindo na qualidade e tempo de sobrevida dos indivíduos portadores do HIV, causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (aids).3
Desde a década de 1980, quando o primeiro caso de aids foi identificado no Brasil, a doença se expandiu em diferentes faixas etárias, em ambos os sexos e em todos os estados brasileiros. Porém, a epidemia sofreu modificações no decorrer dos anos, nas cinco grandes regiões brasileiras, difundindo-se para municípios fora de áreas metropolitanas e fazendo aumentar, proporcionalmente, os casos entre populações com baixa renda e escolaridade.3
Todavia, registram-se discrepâncias no acesso ao tratamento antirretroviral e na sobrevida dos pacientes, em todo o país. Um dos determinantes mais evidentes dessa heterogeneidade é a desigualdade social e seu caráter estruturante, não só nos contornos da pandemia de aids como também na identificação dos grupos com evolução desfavorável da doença.4
Indivíduos de nível socioeconômico mais baixo têm maior risco de apresentar doenças oportunistas ou outras complicações, devido a seu estado nutricional, condições de vida e moradia e obstáculos no acesso aos serviços de saúde, ao tratamento antirretroviral e às medidas de prevenção primária e secundária, dificultando o tratamento oportuno de intercorrências da doença e a adesão ao seguimento clínico.5,6 Burch et al. chamaram a atenção para a necessidade de estudos sobre a associação de condições socioeconômicas e prognóstico de aids em regiões onde a assistência e os medicamentos específicos são de livre acesso.6
No Brasil, historicamente marcado pelo trabalho escravo, há evidências de que a raça/cor da pele do indivíduo está associada à desigualdade social e econômica.7 O conhecimento sobre a relação entre mortalidade por aids e as condições socioeconômicas e raciais mostra-se de extrema importância para a análise do papel dos serviços de saúde frente aos direitos dos cidadãos assegurados, independentemente de sexo, raça/cor da pele ou posição social.8 Há controvérsias sobre o acesso da população preta/parda, especialmente dos soropositivos para o HIV, aos serviços de saúde e seu sistema público, o Sistema Único de Saúde (SUS).3,9 O acesso tardio ao seguimento clínico e ao tratamento, influenciado por barreiras cotidianas e pelo racismo institucional, poderia resultar no atraso da assistência aos pacientes e, consequentemente, em um pior prognóstico da doença.9
Análises distintas, segundo períodos da epidemia, permitiram a construção da história da aids no Brasil desde seu início10 e nas décadas seguintes,3,11 com a ampliação da prevenção e assistência aos pacientes e acesso à medicação. É importante recuperar o percurso da epidemia em décadas passadas, utilizando-se dados de base populacional, para registrar o impacto da ampliação do acesso aos serviços de prevenção e assistência.
A sobrevida dos pacientes e o acesso universal à terapia antirretroviral (TARV) têm sido abordados por vários pesquisadores no país, inclusive sob o enfoque das diferenças socioeconômicas. Porém, existe uma escassez de pesquisas que enfoquem a associação entre a raça/cor da pele referida e a evolução da infecção pelo HIV.12 O objetivo deste estudo foi analisar a sobrevida de pessoas com aids e idade de 13 anos ou mais, residentes nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, e sua associação com escolaridade e raça/cor da pele.
Métodos
Estudo de coorte retrospectivo, sobre amostra de prontuários de pacientes com aids e idade de 13 anos ou mais, residentes nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, diagnosticados entre 1998 e 1999, com seguimento de dez anos.
O critério de inclusão no estudo foi a confirmação do caso de aids vigente nos anos de 1998 e 1999, por meio de: contagem de células T-CD4 (menos de 350/mm³, independentemente dos sintomas); e os critérios do Rio de Janeiro/Caracas e dos Centers for Disease Control and Prevention modificado. O critério de óbito não foi considerado no presente estudo.
Da totalidade dos casos notificados nas duas regiões, em 1998 e 1999, foram excluídos: (i) os pacientes dos municípios com menos de 40 notificações no período (18% do total); (ii) aqueles com aids diagnosticada pela primeira vez na mesma semana do óbito; (iii) os notificados a partir de unidade de notificação desconhecida e; (iv) os casos com data do diagnóstico posterior ao óbito ou notificação.3
Foi utilizada amostragem por conglomerados, em dois estágios: municípios, ou grupos de municípios; e pacientes. O sorteio das unidades primárias de amostragem foi feito com probabilidade proporcional ao número de notificações. Os municípios que não referiam o número mínimo de notificações foram agrupados a outros maiores. As frações de amostragem foram de 1/13,4 para a região Sudeste e de 1/6,9 para a região Sul, tendo-se sorteado 18 unidades primárias de amostragem no Sudeste e 10 no Sul. Em uma segunda etapa desse processo, 123 pessoas foram sorteadas no Sudeste e 128 no Sul. Os dados coletados foram ponderados, e a significância de cada paciente, dada pelo inverso da fração de amostragem da região a que ele pertencia, para compensar as diferentes probabilidades de seleção utilizadas nas regiões. As frações de amostragem foram as seguintes:3
Ni = número de casos de aids no município (ou conjunto de municípios)
Tais números permitiriam considerar, estatisticamente, significantes diferenças de 5 e 9 meses de sobrevida mediana entre grupos a serem comparados, em cada região. Para a amostra final, utilizou-se partilha desigual pelos estratos (regiões), com o propósito de diminuir as diferenças entre suas frações de amostragem.
No estudo, a variável dependente foi o tempo de sobrevida dos pacientes, calculado a partir da data do diagnóstico de aids até a data do óbito (falha), e da data do diagnóstico até a data da última visita ao serviço de saúde - ou abandono do seguimento clínico (censura) e término do estudo (censura programada).
As variáveis independentes coletadas foram: sexo, faixa etária (em anos: 13-25, 26-39, 40-59 e 60 e mais), raça/cor da pele referida (preto, pardo, branco, indígena, amarelo); escolaridade (em anos de estudo: 0-4, 5-8 e >8) e categoria de exposição ao HIV, todos reportados no momento do diagnóstico; uso regular de TARV, considerada quando há registro da retirada das medicações pelo paciente nos serviços de saúde, sem ausência há mais de seis meses; e cuidados por equipe multidisciplinar, composta, além do médico e do enfermeiro, de psicólogo, dentista, assistente social, psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta ocupacional e/ou demais profissionais disponíveis nas cidades estudadas.
Os casos foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, e o banco de dados, construído e alimentado com informações sociodemográficas, epidemiológicas e clínicas obtidas dos prontuários dos pacientes em seguimento clínico nos serviços de referência em HIV/aids das cidades sorteadas.3
Foram apresentadas as frequências absolutas e relativas das variáveis independentes, para cada região, segundo escolaridade e raça/cor da pele referida. Foi realizada análise univariada das probabilidades acumuladas de sobrevivência dos pacientes nas diferentes faixas de escolaridade e raça/cor da pele referida.
O coeficiente de letalidade na população estudada foi estimado tomando-se como numerador os óbitos, e como denominador, o total de indivíduos no início das coortes. Foram utilizados o teste de associação qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher, quando necessário, com nível de significância de 5% para a comparação de proporções entre as faixas de escolaridade e raça/cor da pele referida.
Após verificação de proporcionalidade das variáveis selecionadas, por meio do gráfico de Log menos Log, a análise das curvas de sobrevida foi realizada utilizando-se o método Kaplan-Meier e o teste de Log Rank, Breslow e Tarone-Ware (para verificação de proporcionalidade entre as curvas no início, meio e final do segmento de tempo, respectivamente),13 com nível de significância de 5%, e com a probabilidade acumulada de sobrevida em meses segundo cada variável de interesse.
Para calcular a hazard ratio (HR) na análise de sobrevida, foi utilizado o método de Mantel Haenszel. Após análise univariada, foi ajustado o modelo de regressão múltipla de Cox ou modelo de riscos proporcionais, via stepwise com intervalo de confiança de 95%. Tomou-se como pressuposto que a HR para uma variável independente fosse proporcional no decorrer do tempo, permitindo a inclusão de várias covariáveis simultaneamente no modelo múltiplo do tempo de sobrevida.13
Em todos os testes de comparação e análise de sobrevida realizados, foram retiradas, para não confundimento nas análises estatísticas, todas as categorias ‘Sem informação’, ou seja, quando para qualquer variável estudada não houve registro da informação no prontuário. No cálculo de sobrevida segundo a raça/cor da pele referida, foram comparados indivíduos brancos com pretos/pardos, excluindo-se outras categorias devido ao pequeno número de indivíduos.
Na análise estatística, foram utilizados os programas de computação Microsoft Excel 2016 e IBM SPSS Statistics 21 para Windows.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento em DST e Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo - Protocolo nº 15/05, de 20 de junho de 2005 - e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Parecer nº 1.338.512, de 26 de novembro de 2015.
Resultados
Após as exclusões, somaram-se 29.600 casos de aids para a região Sudeste e 8.797 para a região Sul, do que se obteve amostra de 2.214 pacientes em 90 municípios da região Sudeste e 1.280 pacientes em 33 municípios da região Sul. O tamanho amostral foi de 1.484 prontuários de pessoas com aids para a região Sudeste e 898 para a região Sul, de acordo com a população residente de mesma faixa etária com diagnóstico da doença, resultando na amostra final de 2.091 casos de aids na idade de 13 anos ou mais.
A sobrevida acumulada em 108 meses foi menor em pacientes com 60 anos ou mais de idade (36,6%; p<0,001), indivíduos com até quatro anos de escolaridade (59,9%), pretos e pardos (56,3%) e sexo masculino (60,9%) (Tabela 1). Observou-se maior percentual de óbitos em pessoas com exposição sanguínea ao vírus (47,0%) e uso irregular de terapia antirretroviral (78,2%).
Variável | Total (n=2.091) | Óbito (n=753) | Sobrevida acumulada | Valor pa | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | % | ||
Sexo | ||||||
Masculino | 1.357 | 64,9 | 530 | 70,4 | 60,9 | |
Feminino | 734 | 35,1 | 223 | 29,6 | 69,6 | <0,001 |
Faixa etária (em anos) | ||||||
13-25 | 232 | 11,1 | 73 | 9,7 | 68,5 | |
26-39 | 1.210 | 57,9 | 432 | 57,4 | 64,3 | |
40-59 | 608 | 29,1 | 222 | 29,5 | 63,5 | |
≥60 | 41 | 2,0 | 26 | 3,5 | 36,6 | <0,001 |
Escolaridade (em anos de estudo) | ||||||
0-4 | 1.177 | 56,3 | 472 | 62,7 | 59,9 | |
5-8 | 383 | 18,3 | 102 | 13,5 | 73,4 | |
>8 | 151 | 7,2 | 31 | 4,1 | 79,5 | |
Sem informação | 380 | 18,2 | 148 | 19,7 | 61,1 | <0,001 |
Raça/cor da pele referida | ||||||
Branco | 1.095 | 52,4 | 388 | 51,5 | 64,6 | |
Preto/pardo | 419 | 20,0 | 183 | 24,3 | 56,3 | |
Amarelo/indígena | 8 | 0,4 | 2 | 0,3 | 75,0 | |
Sem informação | 569 | 27,2 | 180 | 23,9 | 68,4 | <0,001 |
Categoria de transmissão do HIVb | ||||||
Sexual | 1.388 | 66,4 | 419 | 55,6 | 69,8 | |
Sanguínea | 440 | 21,0 | 207 | 27,5 | 53,0 | |
Sem informação | 263 | 12,6 | 127 | 16,9 | 51,7 | <0,001 |
Uso de terapia antirretroviral | ||||||
Sim | 1.808 | 86,5 | 542 | 72,0 | 70,0 | |
Não | 170 | 8,1 | 133 | 17,7 | 21,8 | |
Sem informação | 113 | 5,4 | 78 | 10,4 | 31,0 | <0,001 |
Outros profissionais de saúdec | ||||||
Sim | 1.404 | 67,1 | 465 | 61,8 | 66,9 | |
Não | 687 | 32,9 | 288 | 38,2 | 58,1 | <0,001 |
Região | ||||||
Sudeste | 1.309 | 62,6 | 459 | 61,0 | 64,9 | |
Sul | 782 | 37,4 | 294 | 39,0 | 62,4 | 0,246 |
a) Valor p do teste do qui-quadrado de Pearson e teste exato de Fisher (para categorias de variáveis com n≤5).
b) HIV: human immunodeficiency virus, ou vírus da imunodeficiência humana.
c) Outros profissionais de saúde aos quais o paciente de aids teve acesso, além do médico e do enfermeiro: psicólogo, dentista, assistente social, psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta ocupacional e/ou demais profissionais disponíveis nas cidades estudadas.
Nota: Para o cálculo do qui-quadrado de raça/cor da pele referida, foram comparados os grupos de brancos e pretos/pardos.
Pacientes com até quatro anos de estudo tiveram menor sobrevivência em 60 meses após o diagnóstico de aids, comparados com indivíduos de outros níveis de escolaridade (Figura 1). Na estratificação por escolaridade, a sobrevida foi semelhante entre brancos e pretos/pardos, embora sempre menor entre os menos escolarizados.
Observam-se, proporcionalmente, mais homens (81,5%), brancos (72,8%) e indivíduos cuja transmissão do HIV ocorreu por via sexual (82,8%), entre aqueles com mais de oito anos de estudo. Em todas as faixas de escolaridade, mais de 80% dos indivíduos faziam uso regular dos antirretrovirais, sendo superior a 90,0% entre os mais escolarizados. Os indivíduos com até quatro anos de estudo tiveram maior acesso a outros profissionais, além do enfermeiro e do médico (72,9%) (Tabela 2).
Variável | Escolaridade (em anos de estudo) | Valor pa | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
0-4 (n=1.177) | 5-8 (n=383) | >8 (n=151) | Sem informação (n=380) | ||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | ||
Sexo | |||||||||
Masculino | 729 | 61,9 | 261 | 68,1 | 123 | 81,5 | 244 | 64,2 | |
Feminino | 448 | 38,1 | 122 | 31,9 | 28 | 18,5 | 136 | 35,8 | <0,001 |
Raça/cor da pele referida | |||||||||
Branco | 592 | 50,3 | 234 | 61,1 | 110 | 72,8 | 159 | 41,8 | |
Preto/pardo | 274 | 23,3 | 53 | 13,8 | 14 | 9,3 | 78 | 20,5 | |
Indígena/amarelo | 5 | 0,4 | 1 | 0,3 | 1 | 0,7 | 1 | 0,3 | |
Ignorado | 306 | 26,0 | 95 | 24,8 | 26 | 17,2 | 142 | 37,4 | <0,001 |
Faixa etária (em anos) | |||||||||
13-25 | 150 | 12,7 | 40 | 10,4 | 5 | 3,3 | 37 | 9,7 | |
26-39 | 695 | 59,0 | 237 | 61,9 | 75 | 49,7 | 203 | 53,4 | |
40-59 | 311 | 26,4 | 98 | 25,6 | 68 | 45,0 | 131 | 34,5 | |
≥60 | 21 | 1,8 | 8 | 2,1 | 3 | 2,0 | 9 | 2,4 | <0,001 |
Categoria de transmissão do HIVb | |||||||||
Sexual | 779 | 66,2 | 285 | 74,4 | 125 | 82,8 | 199 | 52,4 | |
Sanguínea | 310 | 26,3 | 67 | 17,5 | 8 | 5,3 | 55 | 14,5 | |
Ignorada | 88 | 7,5 | 31 | 8,1 | 18 | 11,9 | 126 | 33,2 | <0,001 |
Uso de terapia antirretroviral | |||||||||
Sim | 1.020 | 86,7 | 346 | 90,3 | 137 | 90,7 | 305 | 80,3 | |
Não | 84 | 7,1 | 24 | 6,3 | 9 | 6,0 | 53 | 13,9 | |
Ignorada | 73 | 6,2 | 13 | 3,4 | 5 | 3,3 | 22 | 5,8 | <0,001 |
Outros profissionais de saúdec | |||||||||
Sim | 858 | 72,9 | 271 | 70,8 | 89 | 58,9 | 186 | 48,9 | |
Não | 319 | 27,1 | 112 | 29,2 | 62 | 41,1 | 194 | 51,1 | <0,001 |
Região | |||||||||
Sudeste | 672 | 57,1 | 220 | 57,4 | 89 | 58,9 | 328 | 86,3 | |
Sul | 505 | 42,9 | 163 | 42,6 | 62 | 41,1 | 52 | 13,7 | <0,001 |
a) Valor p do teste do qui-quadrado de Pearson.
b) HIV: human immunodeficiency virus, ou vírus da imunodeficiência humana.
c) Outros profissionais de saúde aos quais o paciente de aids teve acesso, além do médico e do enfermeiro: psicólogo, dentista, assistente social, psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta ocupacional e/ou demais profissionais disponíveis nas cidades estudadas.
Nota: Para o cálculo do qui-quadrado de raça/cor da pele referida, foram comparados os grupos de brancos e pretos/pardos.
A sobrevivência acumulada aos 60 meses e ao final do estudo foi de 71% e 60% em pessoas com exposição sexual e escolaridade entre zero e quatro anos, 83% e 71% para aqueles com cinco e oito anos de escolaridade, e 82% e 69% para os com mais de oito anos de escolaridade (Figura 2). Essa diferença entre as curvas de sobrevida é evidenciada pelo resultado (p<0,001) dos testes de verificação de proporcionalidade Log Rank (Mantel-Cox), Breslow e Tarone-Ware. Para a categoria de exposição sanguínea, em que foram considerados uso de drogas injetáveis, hemofilia, histórico de transfusão e acidente de trabalho com material biológico, a proporcionalidade da sobrevivência foi estatisticamente semelhante entre as categorias de escolaridade, comprovada pelos valores dos testes Log Rank (Mantel-Cox) (p=0,159), Breslow (p=0,122) e Tarone-Ware (p=0,133).
As variáveis que se apresentaram associadas positivamente à maior sobrevida foram: sexo feminino (HR=0,62 - IC95%0,5;0,8), comparado ao sexo masculino; e escolaridade de 5-8 anos (HR=0,6 - IC95%0,5;0,8) e >8 anos (HR=0,4 - IC95%0,3;0,6) (Tabela 3), na comparação com escolaridade de 0-4 anos. As variáveis associadas a menor sobrevida foram: uso irregular de TARV (HR=11,2 - IC95%8,8;14,2); e faixa etária acima de 60 anos (HR=2,5 - IC95%1,4;4,4).
Variável | Univariada | Múltipla | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
HR | IC95% | Valor p | HR | IC95% | Valor p | |
Sexo | ||||||
Masculino | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Feminino | 0,71 | 0,61;0,83 | <0,001 | 0,62 | 0,51;0,75 | 0,013 |
Faixa etária (em anos) | ||||||
13-25 | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
26-39 | 1,12 | 0,87;1,43 | 1,18 | 0,87;1,60 | ||
40-59 | 1,19 | 0,91;1,54 | 1,35 | 0,98;1,87 | ||
≥60 | 2,82 | 1,78;4,44 | <0,001 | 2,48 | 1,41;4,39 | 0,017 |
Raça/cor da pele referida | ||||||
Branca | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Preta/parda | 1,32 | 1,10;1,57 | <0,001 | 1,20 | 0,99;1,47 | 0,074 |
Escolaridade (em anos de estudo) | ||||||
0-4 | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
5-8 | 0,61 | 0,49;0,75 | 0,61 | 0,49;0,77 | ||
>8 | 0,46 | 0,32;0,67 | <0,001 | 0,44 | 0,30;0,65 | 0,014 |
Categoria de transmissão do HIVa | ||||||
Sexual | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Sanguínea | 1,77 | 1,49;2,10 | <0,001 | 1,23 | 0,99;1,52 | 0,066 |
Uso de terapia antirretroviral | ||||||
Sim | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Não | 11,56 | 9,41;14,19 | <0,001 | 11,23 | 8,85;14,25 | 0,012 |
Outros profissionais de saúdeb | ||||||
Sim | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Não | 1,58 | 1,36;1,83 | <0,001 | 1,20 | 0,99;1,46 | 0,068 |
Região | ||||||
Sudeste | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
Sul | 0,99 | 0,86;1,16 | <0,001 | 0,99 | 0,84;1,18 | 0,964 |
a) HIV: human immunodeficiency virus, ou vírus da imunodeficiência humana.
b) Outros profissionais de saúde aos quais o paciente de aids teve acesso, além do médico e do enfermeiro: psicólogo, dentista, assistente social, psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta ocupacional e/ou demais profissionais disponíveis nas cidades estudadas.
Após o ajuste do modelo múltiplo, a sobrevida média para a região Sudeste foi de 84,2 meses (IC95%81,4;87,1), e para a região Sul, de 80,3 meses (IC95%77,1;83,5). A sobrevivência acumulada aos 60 meses ocorreu em 54% dos indivíduos com menos de quatro anos de escolaridade, e em 71% ao fim do período. Sobreviveram 60 meses 82% dos pacientes com cinco a oito anos de estudo, e 86% dos indivíduos com mais de oito anos, na região Sudeste. Entre os pacientes da região Sul com até quatro anos de escolaridade, 69% sobreviveram nos primeiros 60 meses, e 54% até o final do estudo. Sobreviveram 60 meses 79% dos pacientes com escolaridade entre cinco e oito anos, e 86% daqueles com mais de oito anos (dados não expressos em figura ou tabela).
Discussão
O estudo identificou uma sobrevida de 72% em pessoas brancas e de 70% em pretos/pardos no período de 120 meses, associada a maior probabilidade de morte em pessoas com até quatro anos de escolaridade. Em ambas as categorias de exposição, a sobrevida entre os menos escolarizados também foi menor, devido a diferenças na distribuição das variáveis sociodemográficas, epidemiológicas, clínicas e de utilização de serviços de saúde. Entre as principais limitações do estudo, pode-se apontar a abordagem retrospectiva pautada na utilização de dados secundários de prontuários, nem sempre bem preenchidos. Entretanto, informações de base populacional provenientes de amostra da totalidade das notificações de pacientes com aids residentes no Sul e no Sudeste trazem estimadores de sobrevida de amostra representativa de pacientes notificados com aids dessas duas regiões, disponibilizando indicadores de período da epidemia pós-utilização da TARV no país.
Os principais achados do estudo não podem ser generalizados para a realidade atual dos pacientes com aids das regiões estudadas, tampouco de outras populações e regiões brasileiras. Seus dados referem-se ao período de 1998-1999, quando a TARV estava em seu início e os esquemas medicamentosos eram menos eficazes do que na atualidade; contudo, os resultados apresentados permitiram uma visão sobre a relação entre sobrevida e aspectos socioeconômicos, de saúde e temporais em pessoas vivendo com a doença.
Estimadores de sobrevida de pacientes com aids revelam aumento do tempo de sobrevivência nas regiões mais populosas do país, como demonstram os indicadores de outras coortes históricas representativas.3,10,11
Dadas as altas proporções de pessoas em uso regular de terapia antirretroviral encontradas neste estudo, evidencia-se seu impacto relevante na sobrevida de pacientes com aids de diversas faixas etárias, reduzindo a incidência de doenças oportunistas e de internações no Brasil e em várias partes do mundo.3,14-16 Entretanto, esse impacto não é homogêneo entre a população, destacando-se a adesão ao tratamento e o uso regular de medicamentos como fatores determinantes para o controle da carga viral e aumento de células-linfócitos T-CD4,17 e um melhor prognóstico.18
Com relação à escolaridade e raça/cor da pele, reconhece-se que diferenças nessas variáveis representativas de condições socioeconômicas merecem interesse especial no caso da aids, haja vista os esforços das políticas de Estado em curso, particularmente do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, para universalizar o atendimento e o acesso à assistência e à terapêutica, diminuindo as disparidades entre os grupos mais vulneráveis.19
Baixa escolaridade associa-se com piores condições de vida, moradia, alimentação, transporte, acesso a serviços de saúde e discriminação social.20 Em várias regiões do Brasil, a sobrevida e a adesão à TARV têm-se associado a menor escolaridade.3,15,16 A escolaridade foi utilizada neste estudo como variável proxy das condições socioeconômicas dos indivíduos, devido à disponibilidade dessa informação nos prontuários, como também por sua utilização em outros estudos.2,3,11
Os resultados referentes à raça/cor da pele assemelham-se aos de estudo realizado nos Estados Unidos, onde a mortalidade associada à aids é significativamente maior entre os pretos e os hispânicos,21 não obstante, após o início da TARV, a sobrevida ter-se assemelhado entre diferentes etnias naquele país,22 identificando-se menor percepção de risco23 e maiores prevalências de HIV em indivíduos autorreferidos como pretos/pardos,24 e maior mortalidade associada à etnia nas primeiras décadas da epidemia.25 Se outros estudos não encontraram associação entre etnia e mortalidade por aids, identificaram menor adesão ao TARV em indivíduos pretos/pardos na era pós-HAART.26
Embora não haja consenso sobre a classificação étnico-racial no Brasil,27 a informação da raça/cor da pele referida tem sido utilizada para inferir características de populações eventualmente mais vulneráveis.8
Desigualdades na sobrevida de pessoas vivendo com aids foram observadas nesta coorte de residentes nas duas regiões mais populosas do país. A escolaridade foi preditora de menor sobrevida, sobrepondo-se às diferenças entre os grupos de raça/cor da pele referida. Mesmo diante de políticas públicas de atenção integral à saúde e acesso universal à terapia antirretroviral, prevalecem desigualdades na sobrevida entre os pacientes com aids no Brasil.