Introdução
A oferta de serviços de saúde pode ser entendida como a disponibilidade de serviços direcionados à população.1 A disponibilidade, por sua vez, seria a existência de um determinado serviço ao alcance de um usuário no local e no momento propícios.2 A análise da oferta dos serviços pode ser útil ao planejamento em saúde, pois questões importantes como acesso, acessibilidade, utilização de serviços de saúde, longitudinalidade e integralidade da assistência são influenciadas por essa oferta.3-6
No campo da saúde bucal, em 2004, com o incremento dos incentivos financeiros proporcionados pela Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), foi possível ampliar os serviços odontológicos especializados e implantar os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs).7 A ampliação do cuidado odontológico especializado no setor público acarretou um aumento de cerca de 400% nos procedimentos odontológicos especializados.8
Apesar dos avanços, os CEOs ainda não conseguem suprir as necessidades da população, devido a diversos fatores, tais como a demanda por serviços especializados antes não ofertados no Sistema Único de Saúde (SUS).9 Além disso, o efetivo funcionamento dos CEOs depende de uma adequada interface entre atenção básica e CEO.10
A análise da oferta de serviços na atenção especializada em saúde bucal é fundamental para o planejamento das ações, de forma a adequá-los em seus aspectos organizacionais e geográficos, para que possam garantir a longitudinalidade e integralidade da assistência em saúde bucal.11 A partir dessa compreensão, esta pesquisa teve como objetivo analisar a oferta dos serviços públicos odontológicos na atenção especializada na modalidade CEO no Brasil em 2014.
Métodos
Trata-se de avaliação normativa da oferta de serviços na atenção especializada em saúde bucal no SUS com base nas normas previstas no ordenamento jurídico-político das portarias do Ministério da Saúde. Foram utilizados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do banco de dados da avaliação externa do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade dos Centros de Especialidades Odontológicas (Pmaq-CEO) e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), referentes ao ano de 2014.
Foram incluídos todos os CEOs que estavam implantados no Brasil em 2014.
A Figura 1 descreve as variáveis do estudo, a mensuração das variáveis e a fonte dos dados utilizados. Foram analisadas: (i) a relação entre a população residente e a quantidade de CEOs; (ii) a relação entre a população residente e a quantidade de cirurgiões-dentistas atuantes em CEOs; (iii) a adequação da quantidade de consultórios odontológicos completos para tipo de CEO; iv) a adequação da relação entre a carga horária de auxiliares em saúde bucal/técnicos em saúde bucal e cirurgiões-dentistas; e (v) a adequação da oferta das especialidades mínimas preconizadas.
a) CNES: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde.
b) IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
c) Pmaq-CEO: Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade dos Centros de Especialidades Odontológicas.
A quantidade de cirurgiões-dentistas foi obtida a partir da soma da carga horária dos dentistas que atuam nas especialidades mínimas, dividida por 40. Esse procedimento foi realizado para fins de comparação, uma vez que há possibilidade de contratação de dentistas por 20 ou 40 horas, e no banco de dados do Pmaq-CEO não há disponibilidade dessa informação.
Foram consideradas adequadas as quantidades de consultórios odontológicos em funcionamento iguais ou maiores que o esperado para o tipo de CEO (Tipo I = 3 ou mais; Tipo II = 4 ou mais; Tipo III = no mínimo 7).12 Considerou-se adequada a relação entre a carga horária semanal dos auxiliares/técnicos e dos dentistas quando o valor calculado foi igual ou maior do que 1, indicando que o dentista não estaria trabalhando sozinho. A oferta de especialidades foi adequada às previsões normativas da portaria quando o CEO ofertava as cinco especialidades mínimas,12 com pelo menos um profissional atuando em cada uma delas.
Os dados coletados foram tabulados e analisados em planilha do Microsoft Excel Office (versão 2013), por meio do cálculo das frequências absolutas e relativas das variáveis. As variáveis foram analisadas nas cinco macrorregiões do país, e as diferenças nas distribuições foram testadas por meio do teste do qui-quadrado de Pearson, com o auxílio do software estatístico R (https://www.R-project.org/), considerando-se o nível de significância de 5%.
Devido aos dados serem provenientes de bancos de dados secundários de domínio público, o projeto dispensou apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
Em 2014, o Brasil possuía 931 CEOs, distribuídos em 780 dos 5.570 municípios do país. Desses CEOs, 349 (37%) eram do tipo I, 474 (51%) do tipo II e 109 (12%) do tipo III. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos CEOs e a quantidade de cirurgiões-dentistas atuantes nos CEOs por macrorregiões brasileiras, bem como suas respectivas relações com a população.
Macrorregião e Brasil | CEO | CDa | População | Relações | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | População/CEOb | População/CDc | |
Norte | 60 | 6 | 236 | 5 | 17.231.027 | 287.184 | 72.982 |
Nordeste | 357 | 38 | 1.204 | 34 | 56.186.190 | 157.384 | 46.670 |
Sudeste | 337 | 36 | 1.341 | 38 | 85.115.623 | 252.569 | 63.462 |
Centro-Oeste | 62 | 7 | 294 | 8 | 15.219.608 | 245.478 | 51.785 |
Sul | 115 | 12 | 443 | 15 | 29.016.114 | 252.314 | 65.532 |
Brasil | 931 | 100 | 3.518 | 100 | 202.768.562 | 217.797 | 57.640 |
a) Cirurgiões-dentistas atuantes nos CEOs.
b) Relação entre a população residente e a quantidade de CEOs.
c) Relação entre a população residente e a quantidade de cirurgiões-dentistas atuantes em CEOs.
A maior quantidade de CEOs implantados no Brasil encontrou-se no Nordeste, com 357 (38%), seguido do Sudeste, com 337 (36%). A macrorregião com menor quantidade foi o Norte, com 60 (6%). A relação entre CEO e população foi de 217.797 habitantes por CEO. A melhor relação foi observada na macrorregião Nordeste, com 157.384 habitantes por CEO. A pior relação se verificou no Norte, com 287.184 habitantes por CEO.
A relação foi de um cirurgião-dentista atuante no CEO para cada 57.640 habitantes. A melhor relação habitante por cirurgião-dentista atuante no CEO foi observada no Nordeste (um dentista para cada 46.670 habitantes), vindo em seguida o Centro-Oeste, o Sul e o Sudeste; a pior, na macrorregião Norte (um dentista para cada 72.982 habitantes).
Noventa e sete por cento dos CEOs apresentaram adequação da quantidade de consultórios odontológicos completos para o tipo de CEO; 26% apresentaram adequação entre a carga horária de auxiliares/técnicos e cirurgiões-dentistas; e 60%, adequação da oferta das especialidades mínimas preconizadas (Tabela 2).
Variável | Norte | Nordeste | Centro-Oeste | Sudeste | Sul | Valor pd | Brasil |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Cadeiras odontológicasa | 95 | 96 | 100 | 99 | 95 | 0,077 | 97 |
Relação auxiliar/dentistab | 33 | 28 | 22 | 18 | 38 | <0,001 | 26 |
Especialidades mínimasc | 31 | 48 | 69 | 73 | 71 | <0,001 | 60 |
a) Adequação da quantidade de consultórios odontológicos completos para tipo de CEO.
b) Adequação da relação entre a carga horária de auxiliares em saúde bucal/técnicos em saúde bucal e cirurgiões-dentistas.
c) Adequação da oferta das especialidades mínimas preconizadas.
d) Teste qui-quadrado de Pearson.
Os CEOs localizados no Sudeste apresentaram menor percentual de adequação da relação entre a carga horária de auxiliares/técnicos e cirurgião-dentista, enquanto os da macrorregião Norte apresentaram, proporcionalmente, menor percentual de adequação da oferta das especialidades mínimas preconizadas, sendo a diferença na proporção de regiões estatisticamente significante (Tabela 2).
Discussão
A região Nordeste apresentou a melhor relação de CEO e cirurgião-dentista por habitantes, ao passo que o Norte, a pior. A quantidade de consultórios odontológicos completos apresentou adequação na maior parte dos CEOs. A maioria dos CEOs não apresentou adequação entre a carga horária de auxiliares/técnicos e cirurgião-dentista. Além disso, alguns CEOs não ofertavam as especialidades mínimas preconizadas pelo Ministério da Saúde.
A indisponibilidade de informações sobre a carga horária de cada cirurgião-dentista que atua nos CEOs é a principal limitação da pesquisa. Somam-se a isso a inexistência de padrão ideal estabelecido sobre as relações analisadas, o qual permitiria a emissão de juízo sobre os valores encontrados, e a impossibilidade de comparação temporal dos dados pela realização de apenas um ciclo do Pmaq-CEO no período analisado.
A melhor relação entre a população e a quantidade de CEOs reforça o pioneirismo do Nordeste na implementação de políticas públicas de saúde.13 Em 2001, 59,2% do total de equipes de saúde bucal (ESBs) estavam implantadas no Nordeste e 4,9% no Norte. Em 2013, 48,5% e 7,8%, respectivamente.14 Em 2012, a proporção populacional coberta por ESB apresentou-se maior no Nordeste (37,89%) e menor no Norte (6,15%).15
A disponibilidade de força de trabalho é fator essencial na oferta de serviços na atenção secundária em saúde bucal. Neste estudo, houve diferença da relação entre quantidade de cirurgiões-dentistas e habitantes em algumas macrorregiões, especialmente no Norte. Este fato é explicado pela tendência dos profissionais de se fixarem próximos ao local onde realizaram a graduação ou em grandes centros e em lugares onde há maior facilidade de ingressar em cursos de atualização e de pós-graduação.16,17 Conforme dados do Conselho Federal de Odontologia de 2014, a maior parte dos cursos de graduação estavam concentrados nas macrorregiões Sudeste (43%), Nordeste (19%) e Sul (18%).16
A quantidade de consultórios odontológicos completos para tipo de CEO foi adequada às previsões normativas da portaria, indicando que a oferta dos serviços odontológicos secundários está em acordo com o preconizado.12 A oferta das especialidades mínimas oscilou nas regiões brasileiras. A inexistência dessas especialidades compromete a referência do usuário da atenção básica à atenção secundária e restringe as opções de tratamento,17 interferindo na integralidade da assistência, e, nos casos em que seria possível a realização de procedimentos mais conservadores, acabam sendo realizados tratamentos mais complexos e que irão acarretar demandas futuras de reabilitação onerosas para o paciente ou o sistema público.18 Ademais, quanto maior a cobertura da ESB, pior o desempenho da assistência especializada em saúde bucal.18
Ao cirurgião dentista somam-se os auxiliares/técnicos de consultório dentário, que contribuem para a prática em equipe de saúde bucal coletiva.19 A inexistência desses profissionais atuando juntamente com cirurgiões-dentistas pode influenciar negativamente na eficiência e no tempo do trabalho, bem como na produtividade.20 Neste estudo, foi observada inadequação entre a carga horária de auxiliares/técnicos e cirurgiões-dentistas e as previsões normativas da portaria na maior parte dos CEOs, o que sugere que os dentistas estão em diversos momentos trabalhando sozinhos.
Em conclusão, houve limitações na oferta de serviços na atenção especializada em saúde bucal no SUS, com diferenças regionais. Sugere-se a criação de padrão sobre a relação ideal de CEO e cirurgião-dentista por habitantes para cada região do Brasil, considerando-se as particularidades locais e o quadro epidemiológico de cada localidade. Tal padrão permitiria a avaliação da disponibilidade dos profissionais em cada localidade, o que subsidiaria processos de planejamento em saúde em relação à alocação de recursos humanos.