Introdução
A tuberculose (TB) continua a ser um importante problema de Saúde Pública no Brasil e no mundo. Em 2017, foram notificados 69.569 casos novos no país, correspondendo a um coeficiente de incidência de 33,5 casos/100 mil habitantes. Em Salvador, Bahia, esse coeficiente foi de 48,5 casos/100 mil hab. no mesmo ano, com baixa proporção de cura entre os casos novos (66,3%) e elevada proporção de abandono do tratamento (12,1%), considerando-se os parâmetros nacionais e internacionais desses indicadores.1
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a TB representa a infecção por agente único de maior mortalidade no mundo, superando o HIV/aids.2 Por apresentar alta carga da doença, o Brasil está entre os 30 países prioritários para sua eliminação como problema de Saúde Pública, meta a ser alcançada até 2035.2,3 Ao reconhecer a emblemática determinação social da TB, a OMS propõe, entre as medidas mais importantes para o fim dessa epidemia global, a consolidação de políticas arrojadas e sistemas de apoio com foco na proteção social e outras ações para a redução da pobreza.2-4
A influência marcante das características socioeconômicas no aumento da vulnerabilidade à TB está bem documentada na literatura.5-8 Desigualdades sociais, urbanização e crescimento populacional acelerado somam-se a fatores individuais, como idade, escolaridade, raça/cor da pele, comorbidades, uso de álcool e outras drogas, ademais de outros fatores determinantes, como insegurança alimentar e nutricional, condições precárias do domicílio e dificuldades de acesso aos serviços de saúde, impactando na cadeia de transmissão do agente infeccioso, progressão da doença e desfechos do tratamento.7,9
A proteção social engloba um conjunto amplo de estratégias capazes de contribuir para a redução das desigualdades socioeconômicas e da pobreza, com impactos positivos nas doenças relacionadas à condição social, especialmente a TB.10 Recentemente, resultados de uma metanálise mostraram que tais estratégias se associam à cura de indivíduos com TB e redução no risco de abandono do tratamento em países de baixa ou média renda, ou que apresentem alta carga da doença.11
No Brasil, a proteção social do Estado estrutura-se na Seguridade Social, efetivada mediante políticas e programas vinculados à Assistência Social, Previdência e Saúde Pública.12 Na última década, programas sociais, especialmente baseados na transferência condicional de renda, ganharam maior visibilidade em todo o mundo. Estudos recentes demonstraram que o Programa Bolsa Família (PBF) contribuiu para a redução na incidência da TB13 e maior proporção de cura de pessoas afetadas pela doença no Brasil,14,15 como, por exemplo, o êxito alcançado no tratamento de indivíduos residentes no Rio de Janeiro, uma das capitais brasileiras com os piores indicadores de TB.16
Apesar de atender a aproximadamente 14 milhões de famílias brasileiras, o PBF não é direcionado a pessoas com TB: pouco mais de 13% dos indivíduos afetados pela doença são beneficiários do programa.14 A propósito, não há, em âmbito nacional, um benefício governamental especificamente direcionado para esse grupo populacional.12
Dados sobre a oferta de benefícios sociais a pessoas com TB no Brasil ainda são escassos. Em 2015, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) verificou que, de 181 municípios prioritários para o controle da doença, apenas 81 (44,7%) disponibilizaram algum tipo de benefício social ou incentivo para adesão ao tratamento. Verificou-se também que a oferta desses benefícios não era universal e, em muitos casos, havia descontinuidade em seu fornecimento.17
O presente estudo teve por objetivo analisar a associação entre o desfecho do tratamento da TB, as características sociodemográficas e os benefícios sociais recebidos pelos pacientes.
Métodos
Trata-se de um estudo de coorte, desenvolvido no município de Salvador, Bahia, cuja população estimada para 2017 era de 2.953.986 habitantes. Mais populoso município da região Nordeste, quarta maior capital brasileira,18 Salvador tem sua atenção à TB descentralizada entre unidades básicas de saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família (USF), responsáveis pelo diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos casos. A atenção secundária à doença é responsável tão somente pelos casos de maior complexidade; os demais diagnosticados na atenção secundária são encaminhados para tratamento e acompanhamento nos serviços da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS).19
A população do estudo foi extraída de uma coorte de indivíduos com TB pulmonar, residentes em Salvador. Foram selecionados apenas os casos novos que receberam benefícios sociais durante o tratamento e acompanhamento pela Atenção Básica - UBS e USF - entre os meses de setembro de 2014 e outubro de 2016.
Os critérios de elegibilidade do estudo foram: (i) a idade mínima de 15 anos; (ii) os casos novos com diagnóstico de TB pulmonar por critério clínico, confirmado com o teste rápido molecular (TRM-TB) introduzido no município em outubro de 2014, baciloscopia de escarro, cultura e/ou raio-x; (iii) a ausência de histórico de TB multidrogarresistente (TB-MDR); (iv) o recebimento de pelo menos um benefício social durante o tratamento; e (v) o acompanhamento pelos serviços públicos de atenção básica à saúde (UBS/USF) do município.
Com base nos critérios de inclusão supracitados, foram selecionados somente os 216 participantes da coorte original que receberam benefícios sociais durante o tratamento. Essa subamostra forneceu um poder estatístico de 70% para detectar uma diferença de 15% entre os grupos de comparação - expostos aos benefícios governamentais versus não governamentais; expostos aos benefícios diretos versus indiretos -, com nível de significância de 5%.20
A coleta de dados da coorte baseou-se na aplicação de formulários a uma amostra consecutiva de indivíduos, diagnosticados em uma unidade hospitalar e dez unidades de atenção básica, em sua totalidade responsáveis pelo atendimento de mais de 60% dos casos notificados no município em 2014, distribuídas em nove dos 12 distritos sanitários municipais de Salvador.19 Dados das variáveis socioeconômicas e relativas aos benefícios sociais foram obtidos mediante entrevista. Dados sobre os encerramentos dos casos também foram obtidos em entrevista, realizada ao final do 6º mês de tratamento, ou em consulta aos prontuários médicos das USF/UBS e/ou ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação da Tuberculose (Sinan-TB), junto à Secretaria Municipal de Saúde.
A equipe de entrevistadores foi capacitada conforme as orientações constantes de um manual de procedimentos operacionais elaborado por pesquisadores experientes. O instrumento de coleta, previamente testado em 20 pacientes de TB, também passou por avaliação de especialistas. Seu preenchimento foi realizado eletronicamente, em computadores portáteis (tablets) da marca Motorola Xoom 2 Media Edition MZ607 16GB®. Logo após o preenchimento, todos os formulários eram automaticamente encaminhados para um banco de dados eletrônico, revisados e verificados quanto a eventuais inconsistências por pesquisadores encarregados do estudo.
As variáveis de estudo foram agrupadas de duas formas:
a) Caracterização socioeconômica dos beneficiários
- sexo (masculino; feminino);
- idade (em anos: 15-19; 20-59; 60 e mais);
- raça/cor da pele (preta ou parda; branca/amarela/indígena);
- escolaridade (em anos de estudo: até 9; mais de 9);
- situação conjugal (sem união conjugal; com união conjugal);
- possuir filhos (sim; não);
- ocupação (sim; não);
- renda familiar mensal per capita em salários mínimos (categorizada de acordo com critério nacional de renda para definição da população em situação de pobreza: até 1/2 salário mínimo; mais de 1/2 salário mínimo);21 e
- densidade domiciliar (número de moradores por dormitório da residência: até 2; mais de 2).
b) Caracterização dos benefícios sociais
- identificação do benefício;
- fonte pagadora (governamental; não governamental; ambos); e
- categoria do benefício (direto; indireto; ambos).
Os benefícios monetários fornecidos diretamente aos respectivos beneficiários foram classificados como diretos: Programa Bolsa Família, aposentadoria, auxílio-doença, pensão e outros auxílios financeiros.
Os benefícios não monetários foram classificados como indiretos: cestas básicas, gratuidade em transporte público, desconto na tarifa de energia elétrica, postagem de correspondência com tarifa social, isenção de taxas de inscrição em concursos públicos, programa de habitação, telefone popular, programa de aquisição de alimentos e outros.21
Inicialmente realizou-se uma análise descritiva das características socioeconômicas e das variáveis relativas aos benefícios sociais. Logo, foram realizados testes de associação (teste do qui-quadrado de Pearson e teste exato de Fisher, com nível de significância de 5%) entre as características sociodemográficas, os benefícios sociais recebidos e o desfecho ‘cura da TB’, considerada: (i) quando o indivíduo completou o tratamento e apresentou dois resultados negativos de baciloscopia de escarro; ou, na ausência desses resultados, (ii) quando o indivíduo completou o tratamento com remissão dos sintomas acompanhada de um exame complementar de resultado negativo.1,4,17,19 Os dados foram processados e analisados pelo software Stata® versão 12.0.
O projeto do estudo recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob o Parecer nº 181.078 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética [CAAE] no 11792912.2.0000.5030). Todos os participantes foram convidados a assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e os menores de 18 anos de idade foram incluídos no estudo mediante consentimento de seu responsável legal, nos termos do documento e da legislação.
Resultados
Entre os 216 participantes, predominaram indivíduos do sexo masculino (60,6%), na idade de 20 a 59 anos (71,3%), de raça/cor da pele preta ou parda (92,6%), com até 9 anos de escolaridade (63,0%), sem união conjugal (solteiros/separados ou divorciados/viúvos: 56,0%) e com filhos (72,2%); a maioria (73,6%) contava com uma renda mensal per capita de até ½ salário mínimo, tinha ocupação (60,6%) e residia em domicílios com até dois moradores por dormitório (69,9%) (Tabela 1).
Características socioeconômicas (N=216) - n (%) | Fonte pagadora do benefício - n (%) | Categoria do benefício - n (%) | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Governamental 166 (76,9) | Não governamental 29 (13,4) | Ambos 21 (9,7) | Direto 152 (70,4) | Indireto 28 (12,9) | Ambos 36 (16,7) | ||
Sexo | |||||||
Masculino | 131 (60,6) | 97 (58,4) | 22 (75,9) | 12 (57,1) | 90 (59,2) | 21 (75,0) | 20 (55,6) |
Feminino | 85 (39,4) | 69 (41,6) | 7 (24,1) | 9 (42,9) | 62 (40,8) | 7 (25,0) | 16 (44,4) |
Faixa etária (em anos) | |||||||
15-19 | 13 (6,0) | 10 (6,0) | - | 3 (14,3) | 9 (5,9) | 1 (3,6) | 3 (8,3) |
20-59 | 154 (71,3) | 113 (68,1) | 25 (86,2) | 16 (76,2) | 104 (68,4) | 23 (82,1) | 27 (75,0) |
≥60 | 49 (22,7) | 43 (25,9) | 4 (13,8) | 2 (9,5) | 39 (25,7) | 4 (14,3) | 6 (16,7) |
Raça/cor da pele | |||||||
Preta ou parda | 200 (92,6) | 157 (94,6) | 25 (86,2) | 18 (85,7) | 144 (94,7) | 23 (82,1) | 33 (91,7) |
Branca/amarela/indígena | 16 (7,4) | 9 (5,4) | 4 (13,8) | 3 (14,3) | 8 (5,3) | 5 (17,9) | 3 (8,3) |
Escolaridade (em anos de estudo) | |||||||
≤9 | 136 (63,0) | 102 (61,5) | 19 (65,5) | 15 (71,4) | 95 (62,5) | 18 (64,3) | 23 (63,9) |
>9 | 80 (37,0) | 64 (38,5) | 10 (34,5) | 6 (28,6) | 57 (37,5) | 10 (35,7) | 13 (36,1) |
Situação conjugal | |||||||
Sem união conjugal | 121 (56,0) | 83 (50,0) | 22 (75,9) | 16 (76,2) | 78 (51,3) | 20 (71,4) | 23 (63,9) |
Com união conjugal | 95 (44,0) | 83 (50,0) | 7 (24,1) | 5 (23,8) | 74 (48,7) | 8 (28,6) | 13 (36,1) |
Possui filhos | |||||||
Sim | 156 (72,2) | 125 (75,3) | 18 (62,1) | 13 (61,9) | 113 (74,3) | 16 (57,1) | 27 (75,0) |
Não | 60 (27,8) | 41 (24,7) | 11 (37,9) | 8 (38,1) | 39 (25,7) | 12 (42,9) | 9 (25,0) |
Ocupação | |||||||
Sim | 131 (60,6) | 112 (67,5) | 9 (31,0) | 10 (47,6) | 105 (69,1) | 17 (60,7) | 21 (58,3) |
Não | 85 (39,4) | 54 (32,5) | 20 (69,0) | 11 (52,4) | 47 (30,9) | 11 (30,3) | 15 (41,7) |
Renda per capita sem o benefício (em salários mínimos: SM) | |||||||
≤1/2 SM | 159 (73,6) | 118 (71,1) | 24 (84,8) | 17 (81,0) | 106 (69,7) | 22 (78,6) | 31 (86,1) |
>1/2 SM | 57 (26,4) | 48 (28,9) | 5 (17,2) | 4 (19,0) | 46 (30,3) | 6 (21,4) | 5 (13,9) |
Densidade domiciliar (número de moradores/dormitório) | |||||||
≤2 | 151 (69,9) | 117 (70,5) | 24 (82,8) | 10 (47,6) | 102 (67,1) | 25 (89,3) | 24 (66,7) |
>2 | 65 (30,1) | 49 (29,5) | 5 (17,2) | 11 (52,4) | 50 (32,9) | 3 (10,7) | 12 (33,3) |
Em relação aos benefícios sociais, prevaleceram os de origem governamental (76,9%) e diretos (70,4%). Verificou-se maior proporção de indivíduos sem ocupação entre os que recebiam somente benefícios não governamentais (69,0%) ou acumulavam benefícios governamentais e não governamentais (52,4%). As demais características socioeconômicas distribuíram-se de forma semelhante, na análise bruta e estratificada, segundo fonte pagadora e categoria do benefício social (Tabela 1).
Entre os indivíduos que recebiam benefícios governamentais (n=166), 85,6% recebiam somente benefícios diretos, 10,2% acumulavam benefícios diretos e indiretos e 4,2% recebiam apenas benefícios indiretos. Dos que recebiam somente benefícios diretos (n=142), prevaleceram enquanto fontes pagadoras do benefício o Programa Bolsa Família (66,2%), aposentadoria (23,9%) e auxílio-doença (8,5%). Ainda em relação ao total de participantes, verificou-se que 13,4% (n=29) recebiam apenas benefícios não governamentais, entre os quais prevaleceram os indiretos (65,5%). Apenas 9,7% (n=21) dos participantes acumulavam benefícios de origem governamental e não governamental (Tabela 2).
Caracterização dos benefícios sociais (N=216) | n (%) |
---|---|
Governamentais | 166 (76,9) |
Diretos | 142 (85,6) |
Programa Bolsa Família | 94 (66,2) |
Aposentadoria | 34 (23,9) |
Auxílio-doença | 12 (8,5) |
Pensão | 1 (0,7) |
Programa Bolsa Família + Benefício de Prestação Continuada | 1 (0,7) |
Diretos + indiretos | 17 (10,2) |
Programa Bolsa Família + tarifa social de energia elétrica | 10 (58,8) |
Programa Bolsa Família + gratuidade no transporte municipal/intermunicipal | 3 (17,6) |
Aposentadoria + gratuidade no transporte municipal/intermunicipal | 2 (11,8) |
Programa Bolsa Família + isenção de taxa de inscrição em concursos públicos | 1 (5,9) |
Programa Bolsa Família + desconto na contribuição ao INSSa para trabalhador do lar | 1(5,9) |
Indiretos | 7 (4,2) |
Tarifa social de energia elétrica | 5 (71,4) |
Gratuidade no transporte municipal/intermunicipal | 2 (28,6) |
Não governamentaisb | 29 (13,4) |
Indiretos | 19 (65,5) |
Alimentos | 15 (78,9) |
Alimentos + medicamentos | 2 (10,5) |
Alimentos + abastecimento de gás e energia elétrica | 1 (5,3) |
Alimentos + vestuário | 1 (5,3) |
Diretos (auxílio financeiro) | 10 (34,5) |
Governamentais + Não governamentais | 21 (9,7) |
Programa Bolsa Família + alimentos | 19 (90,5) |
Tarifa social de energia elétrica + alimentos | 2 (9,5) |
a) Instituto Nacional do Seguro Social.
b) Fonte pagadora do benefício não informada pelo entrevistado.
Em relação ao desfecho do tratamento, 79,6% (n=172) dos indivíduos foram curados, 17,6% (n=38) abandonaram o tratamento, 2,3% (n=5) foram a óbito e 0,5% (n=1) apresentou falência do tratamento. A cura mostrou associação estatisticamente significante com mais de 9 anos de escolaridade (87,5%), união conjugal (86,3%) e densidade domiciliar de até 2 moradores por dormitório da residência (84,1%) (Tabela 3).
Características socioeconômicas e dos benefícios | Cura - n (%) | Valor de pa | |
---|---|---|---|
Sim 172 (79,6) | Não 44 (20,4) | ||
Sexo | |||
Masculino | 105 (80,2) | 26 (19,8) | 0,813 |
Feminino | 67 (78,8) | 18 (21,2) | |
Faixa etária (em anos) | |||
15-19 | 9 (69,2) | 4 (30,8) | 0,611b |
20-59 | 123 (79,9) | 31 (20,1) | |
≥60 | 40 (81,6) | 9 (18,4) | |
Raça/cor da pele | |||
Preta ou parda | 158 (79,0) | 42 (21,0) | 0,535b |
Branca/amarela/indígena | 14 (87,5) | 2 (12,5) | |
Escolaridade (em anos de estudo) | |||
≤9 | 102 (75,0) | 34 (25,0) | 0,028 |
>9 | 70 (87,5) | 10 (12,5) | |
Situação conjugal | |||
Sem união conjugal | 90 (74,4) | 31 (25,6) | 0,031 |
Com união conjugal | 82 (86,3) | 13 (13,7) | |
Possui filhos | |||
Sim | 122 (78,2) | 34 (21,8) | 0,402 |
Não | 50 (83,3) | 10 (16,7) | |
Ocupação | |||
Sim | 109 (83,2) | 22 (16,8) | 0,105 |
Não | 63 (74,1) | 22 (25,9) | |
Renda per capita sem o benefício (em salários mínimos: SM) | |||
≤1/2 SM | 127 (79,9) | 32 (20,1) | 0,882 |
>1/2 SM | 45 (79,0) | 12 (21,0) | |
Densidade domiciliar (número de moradores/dormitório) | |||
≤2 | 127 (84,1) | 24 (15,9) | 0,013 |
>2 | 45 (69,2) | 20 (30,8) | |
Fonte pagadora do benefício | |||
Governamental | 134 (80,7) | 32 (19,3) | 0,075b |
Não governamental | 19 (65,5) | 10 (34,5) | |
Ambos | 19 (90,5) | 2 (9,5) | |
Categoria do benefício | |||
Direto | 124 (81,6) | 28 (18,4) | 0,251 |
Indireto | 19 (67,9) | 9 (32,1) | |
Ambos | 29 (80,6) | 7 (19,4) |
a) Valores de p obtidos pelo teste do qui-quadrado, exceto os destacados com b.
b) Valor de p obtidos pelo teste exato de Fisher.
Apesar da ausência de significância estatística nas associações entre cura da TB e benefícios sociais, maiores proporções desse desfecho foram verificadas em participantes que recebiam benefícios governamentais e não governamentais (90,5%); e também entre os que recebiam somente benefícios diretos (81,6%). Menor proporção de cura (65,5%) foi observada entre os que recebiam somente benefícios não governamentais (Tabela 3).
Discussão
Este é o primeiro estudo realizado no Brasil com dados primários sobre o recebimento de benefícios sociais por pessoas com TB em uma das capitais prioritárias para o controle da doença no país. Maior proporção de cura foi registrada entre participantes com melhor escolaridade (>9 anos), vivendo em união conjugal e residentes em domicílios com baixa densidade de pessoas por dormitório (até 2 indivíduos).
A proporção de cura entre os participantes do estudo (79,6%) foi superior à proporção média de 65% registrada em Salvador, Bahia, no mesmo período de 2014 a 2016. Contudo, o indicador encontra-se abaixo da meta preconizada pela OMS: como mínimo, 85% dos casos novos curados.1,22,23 A proporção de abandono do tratamento correspondeu a, aproximadamente, o dobro da proporção média de abandono registrada em Salvador no mesmo período (aproximadamente 9%), alcançando valores acima do parâmetro de 5% recomendado pela OMS e pelo Ministério da Saúde.2,4
O perfil sociodemográfico da maioria dos indivíduos estudados refletiu a persistente e conhecida relação entre TB e pobreza.9,24 No Brasil, a TB atinge, marcadamente, pessoas em situação de vulnerabilidade social, principalmente negros, indivíduos com baixa renda, e analfabetos ou dotados de baixo grau de escolaridade.1,2,12 Em Salvador, cerca de 80% da população é afrodescendente e aproximadamente 40% possuem rendimento mensal per capita de até 1/2 salário mínimo.18 Revisão sistemática de 11 estudos com dados individualizados demonstrou associação positiva entre incidência de TB e sexo masculino, idade entre 30 e 54 anos, analfabetismo, baixa renda ou rendimento não fixo, estado civil (solteiro, separado ou divorciado), entre outros fatores.5
O predomínio do sexo masculino segue a distribuição mundial dos casos de TB segundo o sexo, com maior incidência entre homens.1,2 Quanto aos desfechos do tratamento, estudos apontam associação de baixa escolaridade (0-8 anos) e baixa renda com abandono, óbito e falência terapêutica.5,25 Em uma coorte de indivíduos com TB de Recife/PE, grupo etário e analfabetismo associaram-se com abandono, sendo este desfecho mais frequente em pessoas na idade de 35 a 49 anos.25 No presente estudo, desfechos desfavoráveis do tratamento da TB (abandono, óbito e falência) foram mais frequentes em jovens e adultos, na comparação com idosos, embora essas diferenças não fossem estatisticamente significantes.
Escolaridade, situação conjugal e densidade domiciliar estão entre os principais fatores determinantes da TB no Brasil.7 Estudos revelaram que alta escolaridade (mais de 9 anos de estudo), possuir cônjuge e baixa densidade domiciliar são características associadas a maiores chances de cura e menor ocorrência de desfechos desfavoráveis do tratamento da TB.26-28
Por estar a doença fortemente ligada às condições socioeconômicas, é consenso que programas de proteção social podem contribuir, efetivamente, para a eliminação da TB.2,10 Não obstante o escasso conhecimento sobre acesso e cobertura de programas e benefícios sociais para pessoas com TB, evidências recentes apontaram seus efeitos positivos, diretos15 ou indiretos, na melhora dos desfechos do tratamento desses indivíduos, especialmente dos mais pobres. Como tais achados se referem apenas ao PBF,13-16 são necessários estudos que investiguem os efeitos dos demais benefícios da proteção social nos indicadores da TB. O PBF é o programa social de maior relevância no Brasil e um dos maiores do mundo, fato que pode explicar a maior frequência de seus beneficiários entre os participantes deste estudo. O programa foi implantado no país em 2004 e, atualmente, atende a aproximadamente 21% da população brasileira, por meio de transferência direta de renda para famílias pobres e extremamente pobres, mediante o cumprimento de certas condicionalidades na saúde e na educação.29 Recentemente, estudo de coorte prospectivo demonstrou que o PBF pode contribuir para o alcance das metas de eliminação da TB de maneira efetiva, haja vista seus efeitos diretos no aumento da cura, redução do abandono e óbitos associados à doença.15
O PBF não é a única estratégia de proteção social vigente no país. Existem aproximadamente 15 benefícios indiretos disponíveis para inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).20 Destes programas sociais, apenas quatro foram acessados pelos participantes do presente estudo. Segundo dados do PNCT,22 Salvador conta com incentivos para adesão ao tratamento da TB. Entretanto, verificou-se que apenas uma unidade hospitalar filantrópica do município fornecia continuamente tais benefícios (na forma de cestas básicas) para os pacientes com TB inscritos e sob a atenção dessa unidade; porém, optou-se por não incluir na população-objeto do estudo casos acompanhados em hospitais.
Uma das estratégias do Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública no Brasil4 é fomentar a elaboração de legislações que contribuam para a proteção social dos pacientes. Inexistem programas dessa natureza, em âmbito nacional, especificamente voltados a essa população. Até o presente momento, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.991/13 para a concessão de benefício no valor de ½ salário mínimo às famílias inscritas no CadÚnico e afetadas por TB ou hanseníase; porém, não há previsão sobre a implementação desse dispositivo.30
Em 2015, foi incluída a variável ‘beneficiário de programa de transferência de renda do governo’ na base de dados do Sinan-TB. Naquele ano, 7,2% dos casos novos de TB em Salvador beneficiaram-se com transferência de renda; em 2016, esse percentual caiu para 6,1%. No presente estudo, 129 participantes eram beneficiários do Bolsa Família, correspondendo a 8,7% do número médio de casos novos notificados no período (n=1.489).19 Embora a presença dessa variável represente um avanço, ela não contempla os demais benefícios diretos e indiretos que compõem o sistema de proteção social brasileiro.
A associação entre características socioeconômicas ligadas à pobreza e desfechos do tratamento da TB entre indivíduos que receberam benefícios sociais sugere que estes podem não ter efeito imediato sobre variáveis que, além de atuarem como marcadoras da pobreza, podem ser resultantes ou amplificadoras dessa condição.9,23 Acredita-se que efeitos positivos da proteção social decorram não somente de incrementos na renda mas, também, da ampliação do acesso a educação, redução do desemprego associada ao aumento da produtividade, crescimento da economia em longo prazo e ampliação da cobertura dos serviços de saúde.9,10
Os resultados do presente estudo evidenciaram maior proporção de cura entre os indivíduos que receberam benefícios governamentais e não governamentais durante o tratamento da TB, como também entre os que receberam apenas benefícios monetários diretos. Tais achados corroboram os de estudos prévios, que encontraram associações positivas dos programas governamentais de transferência direta de renda com o êxito/cura pós-tratamento.14,15,16 A associação entre estratégias de proteção social e sucesso no tratamento e cura de indivíduos com TB foi igualmente observada em metanálise de estudos realizados no Brasil e em outros países, com níveis semelhantes de renda e carga da doença.11
Entre as limitações desta pesquisa, destacam-se: (i) a ausência de dados sobre o tempo e/ou descontinuidade no recebimento do benefício durante o tratamento, uma vez que tais informações foram obtidas no momento do diagnóstico; (ii) a ausência de mensuração da frequência do recebimento de cada benefício e do número de beneficiários em cada família afetada pela doença; e (iii) a possibilidade de viés do não respondente, visto que alguns participantes apresentaram resistência em declarar o recebimento de benefícios por receio da suspensão de seu fornecimento. Diante dessas limitações, cautela é requerida na generalização ou extrapolação dos resultados obtidos.
A despeito da escassez de dados sobre o recebimento de benefícios sociais por pessoas com TB no estado da Bahia, o tamanho amostral do estudo correspondeu a 14,5% do número médio de casos novos de TB pulmonar notificados no munícipio de Salvador (n=1.486) no período de 2014 a 2016; e foi superior às proporções anuais de beneficiários do PBF notificados no Sinan-TB para 2015 (7,2%) e 2016 (6,1%).18
O alcance de maiores proporções de cura e a redução do abandono do tratamento são necessários para que Salvador alcance as metas propostas no já mencionado Plano Nacional para eliminação da TB enquanto problema para a Saúde Pública do país. Os resultados do estudo em tela sugerem que maiores taxas de cura podem ser observadas nos indivíduos com TB que receberam benefícios sociais durante o tratamento. Entretanto, não houve significância estatística na associação entre o desfecho ‘cura da TB’ e benefícios sociais, ratificando a necessidade de outros estudos para a investigação em profundidade desse fenômeno.
Propõe-se, ainda, o fortalecimento das estratégias de proteção social no âmbito do município, com ampliação da oferta dos benefícios diretos. Acredita-se que diferentes modalidades de benefícios possam contribuir para o alcance de desfechos favoráveis, em conjunto com outras estratégias de proteção social como capacitação para o trabalho, oportunidades de microfinanciamento, microcrédito, programas de segurança alimentar e nutricional.
Por fim, recomenda-se que a TB seja abordada pelos órgãos governamentais não apenas como um problema de Saúde Pública,4 possibilitando sua inclusão nas agendas de trabalho das secretarias municipais de Assistência Social, Educação, Justiça e Direitos Humanos, visando ao fortalecimento da articulação intra e intersetorial, bem como entre gestão pública e sociedade civil. Outrossim, estudos que avaliem os impactos de diferentes modalidades de proteção social nos indicadores da tuberculose, em nível nacional, regional e local, mostram-se necessários.