Introdução
A tuberculose (TB), uma das doenças infecciosas com registros mais antigos, é susceptível ao tratamento medicamentoso há mais de meio século. No entanto, a TB permanece como um dos principais agravos à saúde a ser enfrentado em âmbito global.1
A despeito das inúmeras estratégias adotadas no Brasil para seu controle, em 2016 foram notificados 66.796 casos novos da doença no país e estimado um coeficiente de incidência de 32,4 casos/100 mil habitantes, cujo destaque e liderança deteve o estado do Amazonas: 67,2 casos/100 mil hab.2
No processo de consolidação do sistema público de saúde brasileiro, a Atenção Primária à Saúde foi concebida para se tornar o eixo estruturante e porta de entrada preferencial do usuário à rede de atenção.3 Como essa proposta não se tem realizado a contento, os usuários são levados a buscar outros níveis de serviços de saúde.4
O acesso e a procura oportuna por cuidados, bem como a continuidade do tratamento no serviço, envolvem aspectos relacionados à necessidade de saúde, tecnologia disponível, resolutividade da atenção, condições de acesso, agilidade no atendimento e na marcação de consultas, ademais do vínculo estabelecido pelos usuários com os profissionais da Saúde. Estes aspectos se configuram como cruciais na definição da escolha do atendimento e no tempo decorrido até a procura pelo serviço de saúde.5,6 A identificação dos fatores atuantes sobre a organização dos serviços de saúde, no que diz respeito ao controle da TB, pode contribuir para o entendimento do fenômeno e a melhoria dos serviços de atenção aos pacientes.
Este estudo teve por objetivo descrever a organização dos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento dos casos de tuberculose na cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, Brasil.
Métodos
Realizou-se estudo epidemiológico, descritivo, com coleta de dados primários, tendo como população de referência os casos novos de TB diagnosticados e residentes na cidade de Manaus, no ano de 2014, em tratamento na rede da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS). A denominação ‘unidades de atenção primária à saúde’ (UAPS) compreende as unidades básicas de saúde, consultórios particulares e unidades de Saúde da Família, assim consideradas por realizarem atendimento em nível ambulatorial.
A cidade de Manaus concentra metade da população do estado e registra, a cada ano, cerca de 70% dos casos novos notificados como TB entre todos os amazonenses. Em 2003, iniciou-se o processo de descentralização das ações do Programa de Controle da Tuberculose (PCT) do nível estadual para o municipal, utilizando-se como parâmetro as propostas do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT); somente em 2006 houve maior participação das unidades básicas de saúde (UBS) no diagnóstico e tratamento dos casos.7
A rede municipal de saúde de Manaus está organizada em quatro Distritos de Saúde na área urbana e um na zona rural, totalizando 280 estabelecimentos. O PCT está implantado em toda a Atenção Primária à Saúde do município. Os serviços de pronto atendimento, embora realizem atendimento de urgência, possuem característica mista: ademais de dispor de todos os programas de atenção primária implantados, também desenvolvem atendimento ambulatorial. O mesmo ocorre nas policlínicas de especialidades, unidades de referência para serviços de média complexidade.
Mesmo com o reconhecimento e a ampliação do papel da Atenção Primária à Saúde no controle da TB em Manaus, até 2012, pelo menos 37,8% dos casos novos eram notificados pela Policlínica Cardoso Fontes, centro de referência estadual para o controle da doença. Como estratégia para direcionar o atendimento e o acompanhamento, os casos novos bacilíferos, diagnosticados no centro de referência, são encaminhados para notificação e continuidade do atendimento na Atenção Básica do SUS. A população busca, primeiramente, o centro de referência, ainda responsável pelo diagnóstico de grande parte dos casos novos na cidade, motivo por que o processo amostral desta pesquisa partiu de um sistema de vigilância de diagnóstico de casos no centro de referência citado.
Os critérios de inclusão no estudo foram: casos novos, residentes na cidade de Manaus, nos primeiros 30 dias de tratamento, com idade igual ou superior a 18 anos e capacidade de comunicação e compreensão preservada. Foram excluídos os sujeitos transferidos para além das divisas do município de Manaus, os que não realizaram acompanhamento ambulatorial na Atenção Primária à Saúde local e os autodeclarados indígenas.
Para o recrutamento dos casos, foram incluídos todos os casos novos detectados no período da coleta de dados com atendimento na Policlínica Cardoso Fontes. No cálculo da amostra, assumiu-se a prevalência de abandono de 9,3% registrada no ano de 2011, conforme dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), com erro máximo de estimativa de 5 pontos percentuais e nível de confiança de 95%. A amostra para a população infinita foi estimada em 130 indivíduos, acrescidos de 20% para possíveis perdas, totalizando 156 casos novos de TB.
Utilizou-se questionário individual, composto de perguntas fechadas sobre a caracterização dos sujeitos pesquisados:
a) Demográfica
- sexo (masculino; feminino)
- idade (em anos: 18 a 29; 30 a 59; 60 ou mais)
- raça/cor da pele (parda; não parda)
- estado civil (solteiro; não solteiro)
- quantidade de pessoas na casa (até 2; 3 ou mais)
b) Socioeconômica
- se trabalha (sim; não)
- renda mensal (em salários mínimos: até 1; 1 a 3; 3 ou mais)
- escolaridade (em anos de estudo: menos de 8; mais de 8)
- presença de comorbidades (sim; não)
c) Hábitos comportamentais
- tabagismo (sim; não)
- uso regular de drogas (sim; não)
- testagem sorológica anti-HIV (positivo; negativo; não realizado)
d) Relação com os serviços de saúde
- meio de procura do serviço de saúde (iniciativa própria, ou por indicação de amigos; encaminhado por profissional ou serviço de saúde)
- forma clínica (pulmonar; extrapulmonar)
- sentiu-se ouvido nos primeiros atendimentos (sempre/na maioria das vezes; nunca/quase nunca)
- conhece o agente comunitário de saúde (ACS) de sua rua (sim; não, ou não há ACS)
e) Relação do paciente com o serviço de tratamento
- modo de marcação de consultas (antecipadamente, ou encaminhamento; fica na fila para pegar ficha)
- tempo de espera para o primeiro atendimento (até 1 hora; mais de 1 hora)
- acompanhamento do tratamento pelos mesmos profissionais de saúde (sempre; na maioria das vezes; quase nunca)
- se há dúvida sobre a doença/tratamento, com quem tira a dúvida (familiares e amigos; profissionais de saúde; não precisou tirar dúvidas [e se tira a dúvida com profissionais da saúde: de nível superior; de nível médio])
- como marca as consultas de retorno (agendada antecipadamente; fica na fila para pegar ficha)
- recebeu visita domiciliar (sim; não)
- se bacilífero, quantas baciloscopias de acompanhamento realizou (até 3; mais de 3)
- quantidade de meses em que faltou (sem faltas; 1 mês ou mais)
- quantidade de meses em que teve atraso (sem atrasos; um mês ou mais)
- desejo de continuar o tratamento neste serviço de saúde - 1º mês (sim; não)
- desejo de continuar o tratamento neste serviço de saúde - 6º mês (sim; não)
- desfecho do tratamento (cura; não cura).
(estes dois último itens foram avaliados ao final do 6o mês de tratamento)
Neste estudo, o tempo de procura refere-se ao tempo decorrido entre a percepção dos sintomas e a procura por um serviço de saúde; e o tempo de diagnóstico, ao tempo decorrido entre a procura e a efetivação do diagnóstico de TB.
O instrumento-questionário foi elaborado com base em estudos anteriores, que proporcionaram a construção de indicadores relacionados à adesão ao tratamento da TB,8,9 além de se pautar em questões que os autores julgaram relevantes para a compreensão do panorama estudado e da organização dos serviços de saúde no controle da TB; ele foi testado previamente, e a equipe de pesquisa, devidamente treinada na coleta de dados, orientada por um manual de campo. No mesmo questionário, também foram registrados dados presentes na ficha de notificação de TB do Sinan, no livro de acompanhamento dos casos e nos prontuários dos pacientes, acessados no período de encerramento dos casos para obtenção de informações sobre o desfecho ou transferência para outro serviço de saúde.
Para o recrutamento dos casos, foi elaborado um sistema de vigilância e comunicação com a Coordenação Municipal do Programa de Controle da Tuberculose de Manaus e com o centro de referência em TB estadual. Seu objetivo foi informar o número de doentes em início do tratamento e a data programada para o retorno ao serviço de saúde.
As entrevistas foram realizadas nos serviços de saúde, preferencialmente em dois momentos de retorno às consultas de acompanhamento: a primeira entrevista ocorreu no centro de referência, nos primeiros 30 dias de tratamento (de janeiro a novembro de 2014); e a segunda, no 6o mês de acompanhamento, para obtenção de informações sobre o tratamento e verificação da relação dos usuários com os serviços de saúde (de agosto de 2014 a setembro de 2015).
Os dados foram digitados em sistema de dupla entrada, para correção de eventuais erros de digitação; posteriormente, foram analisados pelo programa SPSS 21.0. As variáveis foram descritas quanto a sua frequência e distribuição, e estratificadas por local de diagnóstico e/ou de tratamento.
Todos os participantes foram informados e convidados a se manifestarem de acordo e se declarem cientes das condições da pesquisa, por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto da pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 30929514.3.0000.5020.
Resultados
Foram recrutados 156 pacientes, dos quais foram entrevistados 152 casos. As perdas referem-se a óbito por TB (1), óbito por outras causas (1), mudança de diagnóstico (1) e realização de tratamento em ambiente hospitalar (1).
Das características predominantes, sobressaíram: sexo masculino (63,2%), raça/cor da pele parda (73,7%), faixa etária de 30 a 59 anos (56,6%) e convívio com mais de duas pessoas no domicílio (80,3%). Do total de casos, 61,8% possuíam trabalho, formal e/ou informal, com renda de até 1 salário mínimo (46,7%) e escolaridade maior que 8 anos de estudo (59,9%). Em relação aos hábitos de vida, 19,7% dos casos eram fumantes, 31,6% utilizavam bebida alcoólica regularmente e 9,9% eram usuários regulares de drogas (substâncias psicoativas), conforme se verifica na Tabela 1.
Variáveis | Local do diagnóstico | Local do tratamento | % | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Centro de referência | Pronto atendimento/ hospital | UAPSa | Centro de referência | UAPSa sem ESFb | UAPSa com ESFb | ||
(n=105) | (n=38) | (n=9) | (n=65) | (n=70) | (n=17) | ||
Sexo | |||||||
Masculino | 63 | 30 | 3 | 38 | 48 | 10 | 63,2 |
Feminino | 42 | 8 | 6 | 27 | 22 | 7 | 36,8 |
Raça/cor da pele | |||||||
Parda | 79 | 26 | 7 | 45 | 54 | 13 | 73,7 |
Não parda | 26 | 12 | 2 | 20 | 16 | 4 | 26,3 |
Estado civil | |||||||
Solteiro | 61 | 17 | 3 | 28 | 42 | 11 | 53,3 |
Não solteiro | 44 | 21 | 6 | 37 | 28 | 6 | 46,7 |
Faixa etária (em anos) | |||||||
18-29 | 32 | 14 | 3 | 18 | 26 | 5 | 32,2 |
30-59 | 62 | 19 | 5 | 39 | 38 | 9 | 56,6 |
≥60 | 11 | 5 | 1 | 8 | 6 | 3 | 11,2 |
Pessoas na casa | |||||||
Até 2 | 26 | 3 | 1 | 12 | 11 | 7 | 19,7 |
3 ou mais | 79 | 35 | 8 | 53 | 59 | 10 | 80,3 |
Trabalha | |||||||
Sim | 62 | 27 | 5 | 37 | 47 | 10 | 61,8 |
Não | 43 | 11 | 4 | 28 | 23 | 7 | 38,2 |
Renda mensal (em salários mínimos) | |||||||
Até 1 | 55 | 12 | 4 | 29 | 34 | 8 | 46,7 |
1 a 3 | 43 | 16 | 2 | 23 | 29 | 9 | 40,1 |
Mais de 3 | 7 | 10 | 3 | 13 | 7 | 0 | 13,2 |
Escolaridade (em anos de estudo) | |||||||
<8 | 50 | 10 | 1 | 19 | 30 | 12 | 40,1 |
>8 | 55 | 28 | 8 | 46 | 40 | 5 | 59,9 |
Presença de comorbidades | |||||||
Sim | 52 | 19 | 5 | 33 | 33 | 10 | 50,0 |
Não | 53 | 19 | 4 | 32 | 37 | 7 | 50,0 |
Tabagismo | |||||||
Sim | 27 | 2 | 1 | 10 | 14 | 6 | 19,7 |
Não | 78 | 36 | 8 | 55 | 56 | 11 | 80,3 |
Bebe | 0,0 | ||||||
Sim | 39 | 7 | 2 | 16 | 25 | 7 | 31,6 |
Não | 66 | 31 | 7 | 49 | 45 | 10 | 68,4 |
Uso regular de drogas | 0,0 | ||||||
Sim | 10 | 5 | 0 | 5 | 8 | 2 | 9,9 |
Não | 95 | 33 | 9 | 60 | 62 | 15 | 90,1 |
Testagem sorológica anti-HIVc | |||||||
Positivo | 3 | 1 | 0 | 1 | 2 | 1 | 2,6 |
Negativo | 63 | 24 | 7 | 41 | 43 | 10 | 61,8 |
Não realizado | 39 | 13 | 2 | 23 | 25 | 6 | 35,5 |
a) UAPS: unidade de atenção primária à saúde.
b) ESF: Estratégia Saúde da Família.
c) HIV: vírus da imunodeficiência humana (sigla em inglês para human immunodeficiency virus).
A maioria dos casos (69,1%) foi diagnosticada no centro de referência, seguido das unidades de pronto atendimento ou hospitais (25,0%) e das UAPS (5,9%). Dos 105 casos diagnosticados no centro de referência, 65 (61,9%) mantiveram tratamento nesse local e os demais foram direcionados às UAPS. Não foram observadas heterogeneidades entre as variáveis avaliadas quanto ao local de diagnóstico e ao local de tratamento; porém, os doentes que trabalhavam ou que apresentavam maior escolaridade procuraram, em sua maioria, serviços de pronto atendimento (Tabela 1).
Na Tabela 2 é apresentada a distribuição dos casos com relação ao serviço de diagnóstico. A maioria dos doentes procurou o serviço conforme indicação do profissional ou serviço de saúde. Entretanto, para cerca de um quarto dos casos, a procura seguiu indicação de amigos ou foi por iniciativa própria, sendo o centro de referência o local mais acessado. A forma clínica pulmonar foi a mais prevalente entre os sujeitos da pesquisa (82,2%), e mais de 90% sentiram-se ouvidos nos primeiros atendimentos, entre todos os serviços de diagnósticos pesquisados. Destaca-se que 78,3% dos doentes afirmaram desconhecer a existência de agente comunitário de saúde (ACS) de equipe de Saúde da Família atuando em sua rua/território de residência.
Variáveis | Serviço de diagnóstico | % | ||
---|---|---|---|---|
Centro de referência | Pronto atendimento/hospital | UAPSa | ||
Meio de procura do serviço de saúde | ||||
Iniciativa própria, ou por indicação de amigos | 32 | 2 | 2 | 23,7 |
Encaminhado por profissional ou serviço de saúde | 73 | 36 | 7 | 76,3 |
Forma clínica | ||||
Pulmonar | 92 | 27 | 6 | 82,2 |
Extrapulmonar | 13 | 11 | 3 | 17,8 |
Sentiu-se ouvido nos primeiros atendimentos | ||||
Sempre/na maioria das vezes | 94 | 35 | 8 | 90,1 |
Nunca/quase nunca | 11 | 3 | 1 | 9,9 |
Conhece o ACSb de sua rua | ||||
Sim | 24 | 6 | 3 | 21,7 |
Não, ou não há ACSb | 81 | 32 | 6 | 78,3 |
a) UAPS: unidade de atenção primária à saúde.
b) ACS: agente comunitário de saúde.
Na Figura 1, observa-se a distribuição do tempo de procura, tempo até o diagnóstico e duração do tratamento, de acordo com os locais de diagnóstico e de tratamento. O tempo mediano de procura por atendimento, desde os primeiros sintomas até o acesso ao serviço, foi de 27 dias para pronto atendimento, e de 30 dias para o centro de referência e UABs.
O tempo mediano para diagnóstico do total de casos foi de 15 dias, semelhante ao observado nos serviços de pronto atendimento (mediana = 15,5 dias) e nos centro de referência (mediana = 15 dias), enquanto apresentou maior demora nas UABs (mediana = 21 dias). Quanto ao tempo de duração de tratamento, observou-se um tempo mediano de tratamento menor nos casos tratados no centro de referência (mediana = 6 meses), comparado ao tempo dedicado ao acompanhamento dos casos nas UABs sem a Estratégia Saúde da Família (ESF) (mediana = 8 meses). Os casos tratados nas UABs com ESF tiveram maior amplitude quanto à duração de tratamento: tempo mediano de 7 meses.
Na Tabela 3, são apresentados os dados referentes à relação do doente com o serviço de saúde, por local de tratamento. Na maioria dos casos, o paciente afirmou que precisava obter fichas de inscrição em filas para marcação de consultas de acompanhamento, fato mais frequente em pacientes do centro de referência. O tempo de espera para o primeiro atendimento foi de até uma hora, na maioria dos casos (88,8%); e o acompanhamento, na maioria das vezes, realizado pelos mesmos profissionais de saúde (31,3%). Destaca-se que 13,3% dos casos afirmaram esclarecer suas dúvidas sobre TB com familiares ou amigos.
Variáveis | Local de tratamento | % | ||
---|---|---|---|---|
Centro de referência | UAPSa sem ESFb | UAPSa com ESFb | ||
Modo de marcação de consultas | ||||
Antecipadamente, ou encaminhamento | 22 | 37 | 9 | 44,7 |
Fica na fila para pegar ficha | 43 | 33 | 8 | 55,3 |
Tempo de espera para o primeiro atendimento | ||||
Até 1 hora | 55 | 65 | 15 | 88,8 |
Mais de 1 hora | 10 | 5 | 2 | 11,2 |
Acompanhamento do tratamento pelos mesmos profissionais de saúde | ||||
Sempre | 36 | 51 | 14 | 67,3 |
Na maioria das vezes | 28 | 17 | 2 | 31,3 |
Quase nunca | 1 | 0 | 1 | 1,3 |
Se há dúvida sobre a doença/tratamento, com quem tira a dúvida | ||||
Familiares e amigos | 9 | 6 | 5 | 13,3 |
Profissionais de saúde | 24 | 45 | 9 | 52,0 |
Não precisou tirar dúvidas | 32 | 17 | 3 | 34,7 |
Quem é o profissional que tira a dúvida | ||||
Nível superior | 9 | 37 | 8 | - |
Nível médio | 15 | 8 | 1 | - |
Como marca as consultas de retorno | ||||
Agendada antecipadamente | 22 | 37 | 9 | 44,7 |
Fica na fila para pegar ficha | 43 | 33 | 8 | 55,3 |
Recebeu visita domiciliar | ||||
Sim | 0 | 12 | 8 | 13,3 |
Não | 65 | 56 | 9 | 86,7 |
Se bacilífero, quantas baciloscopias de acompanhamento realizou | ||||
Até 3 baciloscopias | - | 25 | 10 | 42,2 |
Mais de 3 baciloscopias | - | 41 | 7 | 57,8 |
Quantidade de meses em que faltou | ||||
Sem faltas | 35 | 49 | 8 | 60,5 |
1 mês ou mais | 30 | 21 | 9 | 39,5 |
Quantidade de meses em que teve atraso | ||||
Sem atrasos | 55 | 62 | 11 | 84,2 |
1 mês ou mais | 10 | 8 | 6 | 15,8 |
Desejo de continuar o tratamento neste serviço de saúde - 1º mês | ||||
Sim | 56 | 33 | 8 | 63,8 |
Não | 9 | 37 | 9 | 36,2 |
Desejo de continuar o tratamento neste serviço de saúde - 6º mês | ||||
Sim | 18 | 15 | 4 | 24,7 |
Não | 47 | 53 | 13 | 75,3 |
Desfecho do tratamento | ||||
Cura | 61 | 61 | 11 | 87,5 |
Não cura | 4 | 9 | 6 | 12,5 |
a) UAPS: unidade de atenção primária à saúde.
b) ESF: Estratégia Saúde da Família.
Apenas doentes acompanhados nas UAPS afirmaram receber visita domiciliar em algum momento do tratamento, especialmente aqueles acompanhados em UAPS sem ESF. Entre os que receberam visita domiciliar, 30% não concluíram o tratamento (dados não apresentados). A realização de baciloscopias de acompanhamento, quantidade de faltas e atrasos às consultas obtiveram percentual satisfatório, independentemente do serviço que acompanhou o tratamento (Tabela 3).
A maioria dos pacientes afirmou desejo de continuar o tratamento no mesmo serviço de saúde que o acompanhou no 1o mês de tratamento (63,8%). Não obstante, ao 6o mês de tratamento, apenas 24,7% responderam positivamente a essa questão, com maior frequência entre doentes acompanhados no centro de referência e em UAPS com ESF.
Dos 152 casos acompanhados, 87,5% tiveram como desfecho a cura da doença. Quanto ao local do tratamento, UAPS com ESF tiveram desempenho abaixo dos demais serviços, sendo o centro de referência o que apresentou melhor taxa de cura (93,8%).
Discussão
Observou-se que grande parte dos diagnósticos de TB foi realizada em pontos de atenção à saúde dos níveis secundário e terciário, enquanto a Atenção Primária à Saúde mostrou-se pouco frequente em sua participação nesse procedimento. É possível que tal achado se deva ao retardo no tempo de diagnóstico dos casos, divergente do que preconiza a Política Nacional de Atenção Básica.3 Esse distanciamento da Atenção Básica com o diagnóstico e acompanhamento dos casos de TB gera dificuldades de operacionalização do programa de controle da infecção, assim como dificulta o controle da doença e a garantia do acompanhamento longitudinal. O resultado pode decorrer de problemas de articulação dos serviços em rede, atrelado à descrença da população em uma atenção primária resolutiva, e assim comprometer o sucesso do tratamento.5
É provável que os pacientes tenham experimentado problemas operacionais nos serviços, desde que a maioria relatou desejo de mudar de serviço de saúde, apesar da elevada taxa de adesão ao tratamento encontrada no estudo. Entretanto, a pesquisa de tais problemas operacionais foi justamente uma das limitações deste trabalho.
É sabido que indivíduos do sexo masculino e adultos jovens são casos mais frequentes de TB.10,11 Neste estudo, cerca de 30% dos homens procuraram hospital ou serviço de pronto atendimento quando se perceberam doentes. Pode-se atribuir a busca de um local de diagnóstico por esse grupo de sexo/idade ao fato de esses indivíduos, na maioria das vezes, sustentarem financeiramente suas famílias: é de se supor não estarem dispostos a sacrificar seu papel de provedores, alegando falta de tempo ou receio de perder o emprego por se ausentarem do trabalho para cuidar de sua saúde pessoal.
Hospitais e serviços de pronto atendimento permitem o acesso e o diagnóstico mais rápidos: além de atenderem nas 24 horas do dia, contam com maior apoio tecnológico, como equipamentos de radiografia, poupando o indivíduo de percorrer diversos serviços e, consequentemente, terem mais gastos com transporte, entre outros motivos.12 O apoio tecnológico também é mais presente no centro de referência em TB, onde é possível realizar radiografia de tórax em tempo oportuno. Há de se pensar em uma organização de serviços de saúde onde o acolhimento ao doente suspeito de TB seja capaz de atender às necessidades da demanda,13 estruturado conforme as linhas de cuidado recomendadas, voltado à população mais vulnerável - no caso, aos homens jovens -, para que se amplie o acesso ao diagnóstico e ao tratamento. A investigação da doença pode ser toda realizada no nível da Atenção Primária.
Como parte dos esforços para minimizar o problema, no ano de 2012, a Secretaria Municipal de Saúde de Manaus assumiu o compromisso da ampliação do horário de atendimento em dez UAPS do município, que passaram a receber a população de segunda a sexta-feira, das 7 às 21 horas, e aos sábados, das 7 às 13 horas. Embora tenha possibilitado maior acesso, a cobertura ainda fica comprometida, pois esse número de UAPS não chega a 10% dos serviços de atenção primária, o que não supre a demanda do município.
Outra iniciativa da coordenação do programa de TB foi a implantação do teste molecular rápido para a detecção do M. tuberculosis (TMR-TB) em Manaus, no ano de 2014, com tempo de processamento e diagnóstico mediante análise da amostra de escarro no prazo de duas horas.14 No entanto, o acesso ao TMR-TB está centralizado em apenas seis pontos na cidade: quatro laboratórios distritais, centro de referência estadual e Fundação de Medicina Tropical do Amazonas. Apesar da tecnologia disponível, a logística para a entrega do material biológico não foi alterada em relação à baciloscopia de escarro, e requer o retorno do paciente para receber o resultado do exame.
Durante várias décadas, o atendimento dos casos de TB em Manaus esteve centralizado no centro de referência estadual. Embora, desde 1990, já se vislumbrasse a descentralização das ações para a Atenção Primária, somente a partir de 2003 se observou maior participação dessas unidades no acompanhamento de casos, em sua maioria transferidos do centro de referencia estadual.15 Mesmo com a ampliação do papel das UAPS no controle da TB, ao menos 37,8% dos casos novos continuavam a ser notificados pelo centro de referência até 2012, sendo esse percentual influenciado pela baixa cobertura da ESF, de 30% para o ano de 2016, (http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php. Acesso em 25 out 2017), dificultando a realização de ações descentralizadas.
A estratégia de direcionar os casos novos pulmonares diagnosticados em outros serviços de saúde para aqueles da Atenção Primária é essencial, seja para a notificação e o acompanhamento dos casos, seja pelo sentido pedagógico de orientação do paciente na utilização da rede assistencial de saúde, ademais de exigir dos profissionais a organização dos serviços para o atendimento desses casos, proporcionando melhorias no volume de atividades, aumento do número de sintomáticos respiratórios examinados, das baciloscopias realizadas, da detecção de casos novos e controle de contatos.16
A insuficiência da Atenção Primária para o diagnóstico da TB fica evidenciada quando se percebe que, dos 21,7% de doentes que conhecem o ACS responsável por sua área de residência, apenas 9% foram diagnosticados pela Atenção Primária à Saúde. Embora o papel do ACS seja reconhecidamente importante para o controle da TB, estudos identificam que, em muitas UAPS com ESF, não há atividades específicas voltadas à busca ativa dos sintomáticos respiratórios nas visitas domiciliares, ficando a identificação dos casos e o planejamento dessas ações a critério dos agentes comunitários de saúde.6,17
É importante considerar que quase 70% dos indivíduos diagnosticados na unidade de referência foram encaminhados por profissional ou serviço de saúde, o que aponta a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde na identificação de um sintomático respiratório, com o objetivo de auxiliar o diagnóstico correto e o início precoce do tratamento, evitando a propagação da doença. Cerca de 30% dos doentes acessaram o serviço de referência por iniciativa própria ou indicação de amigos, evidenciando que a população, em geral, desconhece a rede assistencial do município. Contudo, existe uma expectativa de resolutividade no centro de referência, onde o atendimento responde por demanda espontânea e conta com recursos capazes de conferir rapidez ao diagnóstico, diferentemente da rede municipal, onde a realização de radiografias demanda um tempo maior, uma vez que estes serviços não estão descentralizados para todas as UAPS.
Entre os 61 doentes com menos de 8 anos de estudo, 60 procuraram o centro de referência ou pronto atendimento como serviço de saúde para diagnóstico. A baixa escolaridade atua como barreira sociocultural no acesso aos serviços, face ao desconhecimento e falta de percepção do problema de saúde, levando os pacientes a ignorarem os sintomas da TB por longo tempo.6,18
O atraso no tempo para o diagnóstico, fator considerado grave do ponto de vista epidemiológico da doença,19 é gerado pela forma como os serviços estão organizados e como os profissionais lidam com o problema da TB. Quanto mais graves e duradouros os sintomas da TB, maior a disseminação da doença. Portanto, são necessários esforços para conscientizar todos os atores envolvidos na abordagem da tuberculose, com o intuito de reduzir sua transmissão na coletividade.19
Não existe consenso na literatura sobre a definição do tempo ideal para se realizar o diagnóstico da TB. Estima-se que esse período não deva exceder duas ou três semanas após o início dos sintomas. No presente estudo, o tempo mediano desde a percepção dos sintomas até o acesso ao serviço de saúde variou de 27 a 30 dias entre os diferentes locais de diagnóstico investigados, ou seja, quatro semanas, considerado um tempo-padrão esperado. No entanto, ressalta-se a diferença entre a autopercepção do sujeito como doente e a efetiva procura por um serviço de saúde visando ao diagnóstico.20
O tempo mediano para o diagnóstico da TB após contato com o serviço de saúde, apresentado aqui, é relativamente menor que os achados nacionais21-23 e internacionais,24-26 segundo os quais esse período costuma ser de 30 dias ou mais. Alguns estudos apontam que o tempo para a efetivação do diagnóstico da TB, após a obtenção da primeira consulta, poderia estar relacionado com o tipo de serviço de saúde procurado pelo usuário como porta de entrada, a facilidade de acesso, a qualidade e a resolutividade da atenção prestada ao enfermo.27 Corroborando esse pressuposto, a suposição de incapacidade e inexistência de vagas para atendimento nas UAPS, comparada com um acesso mais fácil ao serviço de pronto atendimento, pode ter levado os doentes de TB a optar pelo segundo: o tempo mediano para atendimento nos centros de referência e pronto atendimento foi de aproximados 15 dias, na comparação com o tempo mediano maior, de 21 dias, para atendimento nas UAPS.
O tempo mediano de tratamento de 6 meses no centro de referência indica que a maioria dos pacientes concluíram seu tratamento no tempo adequado. Em relação às UAPS, onde se observou tempo mediano maior (UAPS sem ESF = 8 meses; UAPS com ESF = 7 meses), demonstra-se fragilidade dessas unidades no acompanhamento e encerramento em tempo oportuno dos casos, muito provavelmente em razão de problemas operacionais nos serviços, a exemplo da morosidade no agendamento de exames complementares (radiografia de tórax) para avaliação de cura e da marcação de consultas por meio de fichas/filas de espera.
Detectou-se baixa taxa de visita domiciliar, e quando realizada, somente para os pacientes na iminência de abandonar o tratamento, inclusive os acompanhados pela UAPS com ESF. Ao receber a visita domiciliar e a escuta solidária do membro da equipe de Saúde da Família, o portador de TB passa a confiar na assistência do profissional de saúde e no tratamento, o que minimiza os casos de abandono (do tratamento) e a ocorrência de portadores multirresistentes. Outra consequência importante desse processo é a criação de um vínculo de confiança do doente e sua família com o profissional de saúde.28
Das relações de vínculo analisadas, variáveis como o atendimento pelos mesmos profissionais e o compartilhamento de dúvidas com os profissionais da saúde mostraram-se adequadas, à exceção do desejo de continuar o tratamento na unidade. Deve-se, portanto, repensar as práticas de saúde no contexto da TB em Manaus, visto que muitos dos doentes insatisfeitos com o serviço, seja pela localização geográfica, organização do serviço ou relação com os profissionais, poderão abandonar o tratamento.
Os achados desta pesquisa indicaram a presença de barreiras no diagnóstico e tratamento dos casos, tanto no centro de referência como nas unidades da Atenção Primária, apesar do alcance da taxa de cura recomendada pelo Ministério da Saúde. Ressalta-se que este estudo significa um ponto de partida para novas pesquisas, mais aprofundadas, sobre a organização dos serviços de diagnóstico e tratamento dos casos de tuberculose na cidade de Manaus.