Introdução
No Brasil, com a evolução das políticas públicas de saúde bucal ao longo dos últimos 20 anos, avanços na cobertura da atenção em saúde bucal foram alcançados em todo o país. Todavia, permanecem importantes desafios a serem superados, como a precarização das relações de trabalho, dificuldade de mudança do processo de trabalho, deficiência na integração da Atenção Primária à Rede de Atenção à Saúde, problemas de infraestrutura, escassez ou descontinuidade no fornecimento de insumos, entre outros.1,2 Para superar esses entraves, comuns a toda a Atenção Primária à Saúde (APS) do país, o Ministério da Saúde tem desenvolvido práticas de indução, monitoramento e avaliação de processos e resultados mensuráveis, entre as quais o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).
O PMAQ-AB representa um importante passo rumo à concretização dos processos de avaliação e monitoramento das ações de saúde no país. No tocante à atenção em saúde bucal, o programa representa a possibilidade de estimular as equipes a refletirem sobre o processo de trabalho por elas desenvolvido, ao oportunizar mudanças no modo de cuidar e gerir o cuidado, permitindo a qualificação das ações e serviços.3
No entanto, o aumento expressivo de equipes de Saúde Bucal (eSB), observado a partir da inserção de suas ações na Estratégia Saúde da Família (ESF),2 traz a necessidade de investigar a qualidade dos serviços ofertados por essas equipes. Espera-se que a saúde bucal, no âmbito da ESF, produza impacto positivo na utilização dos serviços, tanto pelo aumento da oferta quanto pela qualidade do cuidado prestado. Nesse sentido, processos avaliativos surgem como ferramentas essenciais para aprimorar o desenvolvimento organizacional dos serviços de saúde, intensificando os esforços destinados à melhoria de sua qualidade.3
O desafio de melhor organizar as práticas da atenção à saúde bucal na APS é constante, e o desempenho de indicadores para primeira consulta odontológica, escovação supervisionada e média de procedimentos odontológicos básicos individuais não acompanhou, proporcionalmente, o percentual de crescimento da cobertura das eSB na série histórica no estado de Pernambuco.4,5 Esta condição pode estar relacionada à persistência do caráter curativo e mutilador da assistência odontológica.6 Tal cenário converge para a necessidade de se investigar a reorganização da atenção à saúde bucal no estado, a partir de questões referentes à estrutura e ao processo de trabalho dessas equipes.
Assim, alicerçado na avaliação de qualidade em saúde proposta pelo modelo sistêmico de Donabedian,7 que considera a tríade ‘estrutura, processo e resultado’, entende-se que, para a adequada atenção à saúde da população, é necessário que as equipes de Saúde Bucal tenham os recursos (equipamentos, materiais, insumos) mínimos essenciais e desenvolvam suas ações de acordo com as normas estabelecidas. Sobre o modelo de Donabedian, embora sejam legítimas as críticas quanto as suas limitações,8 trata-se de um instrumento de referência para avaliação da qualidade dos serviços de saúde.3
Este estudo objetivou avaliar a qualidade da assistência em saúde bucal na Atenção Primária à Saúde de Pernambuco, Brasil, em 2014.
Métodos
Estudo de avaliação em saúde a partir de dados ecológicos, considerando-se como unidades de análise os 168 municípios do estado de Pernambuco e seu território, o arquipélago de Fernando de Noronha, que possuíam eSB participantes do 2º ciclo do PMAQ-AB.
Composto por quatro fases distintas, que se complementam e formam um continuum de ciclos, sendo o primeiro ciclo sucedido em 2011 e o segundo em 2014, o PMAQ-AB tem na avaliação externa (terceira fase) o momento de averiguar as condições de acesso e de qualidade das equipes mediante a observação de aspectos referentes à estrutura do serviço e seu processo de trabalho. Para a construção dos padrões de qualidade municipais de estrutura e processo (variáveis independentes), foram utilizados dados secundários provenientes da base de dados elaborada pelo Ministério da Saúde a partir dos módulos V (Estrutura) e VI (Processo) do instrumento da avaliação externa do PMAQ-AB (2º ciclo) em Pernambuco. A dimensão ‘Estrutura e condições de funcionamento da unidade básica de saúde (UBS)’ incluiu 88 questões, enquanto a dimensão ‘Processo de trabalho das eSB’, englobou 74 questões.9 Como variáveis dependentes, utilizaram-se quatro indicadores de saúde bucal, descritos a seguir.
Cobertura de primeira consulta odontológica programática: número de primeira consulta odontológica programática realizada, em determinado local e período, dividido pela população do mesmo local e período, multiplicado por 100.
Urgências odontológicas: número de atendimentos de urgências odontológicas por habitante, em determinado local e período, dividido pela população cadastrada no mesmo local e período.
Cobertura da ação coletiva de escovação dental supervisionada: média anual de pessoas participantes na ação coletiva de escovação dental supervisionada, em determinado local e período, dividido pela população total do mesmo local e período, multiplicado por 100.
Tratamentos concluídos (relação entre tratamentos concluídos e primeiras consultas programáticas): número de tratamentos concluídos pela eSB dividido pelo número de primeira consulta odontológica programática realizada, multiplicado por 100.
Os dados referentes aos indicadores de saúde bucal corresponderam às médias anuais - tendo 2014 como ano de referência - obtidas pelo Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS).10 As informações sobre a população dos municípios foram obtidas no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus), embora constituam projeções intercensitárias realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).11
Os dados foram sistematizados em planilhas do software Microsoft Excel. Em seguida, realizou-se sua análise e processamento pelo software Statistical Package for Social Sciences - SPSS® versão 20 - for Windows®, no qual foram computados os números de conformidades (opção ‘Sim’ do questionário das variáveis) e não conformidades (opção ‘Não’), por eSB, para cada uma das dimensões avaliadas. Cada dimensão, por sua vez, foi representada pela média dos escores de adequação das subdimensões que a compõem, expressa pelo número de conformidades ou concordância com os parâmetros apresentados no PMAQ-AB para cada variável analisada.
A partir das pontuações obtidas pelas 1.440 eSB de Pernambuco partícipes da avaliação externa do PMAQ-AB, que tiveram seus dados processados e validados pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Instituto Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), foram calculadas as médias para cada município, com o intuito de construir os padrões de qualidade municipais. Os parâmetros para classificação e análise dos padrões de qualidade municipais das equipes foram criados a partir de quartis e, na apresentação dos dados, optou-se pela junção dos intervalos intermediários. Assim foram classificados os municípios quanto à organização de suas equipes: insatisfatória, nos municípios com valores ≤25%; intermediária, nos municípios com valores >25% até <75%; e satisfatória, nos municípios com valores ≥75%.
Após o processamento, constatou-se, por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov, que as variáveis não obedeciam à distribuição normal. Logo, optou-se por utilizar o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis para a análise comparativa dos escores das dimensões ‘Estrutura’ das UBS e ‘Processo de trabalho’ das eSB, como também das medianas dos indicadores da assistência odontológica na APS. O nível de significância admitido foi de 5%.
Para estimar a dependência espacial das variáveis dependentes e independentes, calculou-se o índice de autocorrelação espacial global de Moran. Este índice, quando medido no mesmo local, será sempre igual a 1. Porém, quando a correlação de uma variável é medida nas áreas vizinhas, assumirá um valor que varia entre -1 e 1: quanto mais próximo de 1, maior é a semelhança entre vizinhos; o valor 0 significa inexistência de correlação; e os valores negativos indicam dessemelhança. O índice global de Moran permite analisar até que ponto o nível de uma variável para uma área é similar, ou não, às áreas vizinhas.12 Também foi realizado teste local, que gera quatro situações de correlação espacial:
valores positivos e médias positivas (alto-alto);
valores negativos e médias negativas (baixo-baixo);
valores positivos e médias negativas (alto-baixo); e
valores negativos e médias positivas (baixo-alto).
Destes quatro contextos, os dois primeiros indicam pontos de associação espacial positiva ou similares aos de seus vizinhos; e os dois últimos, pontos de associação espacial negativos, com municípios que possuem valores distintos dos de seus vizinhos.12 Optou-se pela representação da dependência espacial apenas das variáveis que apresentaram nível de significância espacial de 5% para o cálculo do índice global de Moran.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães/Fundação Instituto Oswaldo Cruz (IAM/Fiocruz): Parecer no 2.147.398, emitido em 29 de junho de 2017, consoante os preceitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
A pontuação de desempenho geral dos municípios e a classificação dos três grupos em relação aos padrões de qualidade estudados são apresentados na Tabela 1. Observou-se que o padrão de qualidade relacionado à dimensão ‘Estrutura’ obteve pontuação mais alta nas três classificações analisadas, quando comparado ao padrão de qualidade da dimensão ‘Processo de trabalho’ das eBSs.
Padrões de qualidadea | Insatisfatóriob (N=42) | Intermediáriob (N=85) | Satisfatóriob (N=42) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Pontuação | Pontuação | Pontuação | ||||
Mínima | Máxima | Mínima | Máxima | Mínima | Máxima | |
Estrutura | 0,00 | 61,85 | 61,59 | 67,58 | 67,59 | 78,00 |
Processo de trabalho | 0,00 | 35,67 | 35,68 | 47,84 | 47,85 | 62,05 |
a) De acordo com o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).9
b) Análise de agrupamento por quartis, com junção dos intervalos intermediários.
Não foi identificada significância estatística nas comparações dos indicadores de saúde bucal entre os estratos de padrões de qualidade municipais relacionados à estrutura (Tabela 2). Quanto aos padrões de qualidade relacionados ao processo de trabalho e os indicadores ‘urgência odontológica’, ‘cobertura de escovação dental supervisionada’ e ‘tratamentos concluídos’, houve diferenças significativas entre a mediana dos indicadores nos estratos de padrão de qualidade dos municípios (Tabela 3).
Padrões de qualidade | Cobertura de primeira consulta odontológica programática | |||
---|---|---|---|---|
Mediana | Média | Desvio-padrão | pc | |
Estruturaa,b | ||||
Insatisfatório | 10,624 | 12,313 | 9,686 | 0,069 |
Intermediário | 14,391 | 15,425 | 9,589 | |
Satisfatório | 12,942 | 15,527 | 8,982 | |
Urgência odontológica | ||||
Insatisfatório | 0,014 | 0,016 | 0,012 | 0,419 |
Intermediário | 0,013 | 0,017 | 0,017 | |
Satisfatório | 0,016 | 0,022 | 0,018 | |
Cobertura de escovação dental supervisionada | ||||
Insatisfatório | 0,510 | 1,143 | 1,657 | 0,237 |
Intermediário | 0,950 | 1,414 | 1,724 | |
Satisfatório | 0,911 | 1,526 | 1,922 | |
Tratamentos concluídos | ||||
Insatisfatório | 9,495 | 17,535 | 18,829 | 0,468 |
Intermediário | 9,379 | 12,319 | 11,192 | |
Satisfatório | 10,219 | 14,853 | 13,254 |
a) De acordo com o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).9
b) Análise de agrupamento por quartis, com junção dos intervalos intermediários.
c) p valor calculado pelo do teste Kruskal-Wallis.
Padrões de qualidade | Cobertura de primeira consulta odontológica programática | |||
---|---|---|---|---|
Mediana | Média | Desvio-padrão | pc | |
Processo de trabalhoa,b | ||||
Insatisfatório | 12,121 | 14,754 | 10,164 | 0,927 |
Intermediário | 12,749 | 14,565 | 9,753 | |
Satisfatório | 13,516 | 14,856 | 8,492 | |
Urgência odontológica | ||||
Insatisfatório | 0,012 | 0,014 | 0,013 | 0,013 |
Intermediário | 0,013 | 0,018 | 0,019 | |
Satisfatório | 0,019 | 0,023 | 0,018 | |
Cobertura de escovação dental supervisionada | ||||
Insatisfatório | 0,679 | 1,135 | 1,379 | 0,012 |
Intermediário | 0,631 | 1,157 | 1,444 | |
Satisfatório | 1,166 | 2,054 | 2,411 | |
Tratamentos concluídos | ||||
Insatisfatório | 8,231 | 11,832 | 10,747 | 0,007 |
Intermediário | 9,295 | 13,959 | 16,225 | |
Satisfatório | 16,318 | 17,238 | 11,654 |
a) De acordo com o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).9
b) Análise de agrupamento por quartis, com junção dos intervalos intermediários.
c) Valor p calculado pelo teste Kruskal-Wallis.
Identificou-se correlação espacial positiva (p=0,030) entre as variáveis para o padrão de qualidade do processo de trabalho das eSB; por conseguinte, não se deve rejeitar a hipótese de autocorrelação espacial (valores positivos, médias positivas) para essa variável (Figura 1). Ainda quanto ao processo de trabalho, foram percebidas áreas de dependência espacial concentradas em municípios da Zona da Mata Norte pernambucana, categorizadas com padrão de qualidade satisfatório quanto à organização e desenvolvimento dos serviços em saúde bucal.
No tocante ao teste de dependência espacial das variáveis dependentes, apenas o indicador de urgência odontológica demonstrou correlação espacial positiva (p=0,020); o índice de Moran revelou áreas de correlação espacial na Região da Zona da Mata Norte, com médias altas para o indicador (valores positivos, médias positivas), e um agrupamento de municípios na Região do Sertão com menores médias (valores negativos, médias negativas) para o atendimento das eSB (Figura 2).
Discussão
Quanto à relação entre indicadores de saúde bucal e o processo de trabalho, constatavam-se maiores medianas dos indicadores ‘tratamentos concluídos’ e ‘cobertura de escovação dental supervisionada’ nos municípios com padrão de qualidade satisfatório para os serviços de saúde bucal. No que concerne à relação entre o indicador ‘urgência odontológica’ e o grau de organização do processo de trabalho das eSB, tinha-se a expectativa de que, quanto mais proximidade das práticas recomendadas pela ESF, menores seriam os registros das urgências odontológicas. Entretanto, evidenciou-se que quanto melhor o padrão de organização do processo de trabalho, maiores foram as médias desse indicador. Os resultados também demonstram que, no tocante à estrutura, os valores dos indicadores estudados foram bastante próximos entre os municípios com padrões de qualidade satisfatório, intermediário e insatisfatório; a exceção coube apenas ao comportamento do indicador ‘cobertura de primeira consulta odontológica programática’, que apresentou uma mediana significativamente maior nos municípios de padrão satisfatório, com nível de significância bem próximo ao considerado no presente estudo.
Apesar da inexistência de relação entre as medianas do indicador ‘cobertura de primeira consulta odontológica programática’ e os recursos materiais que serviram de unidade de análise para a construção dos padrões de qualidade municipais da estrutura das eSB (instalações, equipamentos e insumos) em Pernambuco, é relevante mencionar a falta de materiais e a deficiência na manutenção de equipamentos como barreiras de acesso aos usuários, com impacto na oferta de primeira consulta odontológica.13,14
Para o indicador ‘urgência odontológica’, alguns estudos pontuaram as deficiências estruturais (desabastecimento de insumos, equipamentos danificados e poucos instrumentos) como fatores impeditivos para o atendimento clínico dessas urgências.14,15 Porém, tal conjectura não foi ratificada pelos resultados desta pesquisa, não sendo identificadas diferenças entre as pontuações nos estrados de qualidade analisados.
Diferentes estudos associaram o desempenho da ação coletiva de escovação dental supervisionada com fatores estruturais, relacionados à disponibilidade de kits de higiene bucal (escova e pasta de dentes) e à presença de espaços físicos para a prática da escovação supervisionada (“escovódromo”).16,17 No entanto, tais aspectos não foram contemplados nesta análise do padrão de qualidade da estrutura dos serviços. Sendo assim, o cenário delineado pelo presente estudo pode explicar a ausência de diferenças entre as pontuações, visto que, entre os aspectos para a dimensão de estrutura examinados, apenas um item (macromodelo de arcada dentária) guardava relação direta com a prática de atividade coletiva (dado não apresentado em tabelas).
Mesmo não se observando diferenças significantes nos estratos de qualidade da estrutura oferecida, em relação ao indicador ‘tratamentos concluídos’, as deficiências estruturais são apontadas na literatura como fatores limitantes do trabalho em saúde bucal, dificultando a conclusão dos tratamentos odontológicos programáticos.18 Ademais, os frequentes desabastecimentos do serviço público, de uma maneira geral, não só reduzem os recursos materiais disponíveis para realização das atividades como alimentam a descrença e, por conseguinte, os casos de abandono do tratamento odontológico pela população.15 Possivelmente, tais falhas no abastecimento vêm contribuindo para a insuficiência e consequente ineficácia dos serviços, recorrente na atenção à saúde bucal.
Embora a provisão de recursos relacionados à infraestrutura seja considerada relevante para a utilização dos serviços de saúde pela população, tal relação não está claramente estabelecida. As condições de estrutura dos serviços podem repercutir no impacto direto sobre o processo de trabalho das eSB mas, por si só, não garantem aumento na taxa de uso, tampouco melhoria na qualidade dos atendimentos prestados.13,14
Em relação ao processo de trabalho, não foram observadas diferenças entre os estratos, quanto ao indicador ‘cobertura da primeira consulta odontológica programática’. Esse resultado diverge dos achados de um estudo sobre a organização da oferta de serviços de saúde bucal no estado da Bahia, onde as eSB que mais se aproximaram do esperado para um processo de trabalho fundamentado na ESF apresentaram maiores registros desse indicador.14 Alguns autores ratificam essa relação: um serviço mais organizado (com apoio político, planejamento técnico para sua implementação e gestores com capacidade de governo e controle da condução do processo de trabalho) está associado ao maior uso programático dos procedimentos odontológicos oferecidos.19,20 Salienta-se ainda que, apesar da expansão significativa da oferta de serviços odontológicos na ESF, persiste uma baixa utilização e acesso a eles de forma programática, devido à reprodução do modelo biomédico característico de intervenção individual, meramente clínica, excluindo-se as influências psicológicas, e ambientais e sociais do contexto.5,21
Quanto à relação entre a organização do processo de trabalho e as urgências odontológicas, evidenciaram-se maiores registros desses atendimentos nos municípios classificados com padrão satisfatório de assistência em saúde bucal, quando comparados aos que referiram padrão intermediário e insatisfatório. Tal achado diverge da literatura, a qual, geralmente, reitera: quanto mais as equipes de Saúde Bucal se afastam do modelo de atenção preconizado pela ESF, maior a regularidade das consultas de urgência. Os mesmos estudos ressaltam que o número de consultas de urgência, de certa forma, reflete as características da oferta dos serviços.22,23
Diante dessa divergência, cabe considerar a existência de grande demanda reprimida de usuários por atendimento de urgência: em sua maioria, as UBS não conseguem atender a todas as necessidades odontológicas de sua população adstrita. A combinação de comunidades carentes e populações com a saúde bucal em condições ruins gera mais demanda para as eSB e, consequentemente, mais consultas de urgência.23 Faz-se necessário discutir a abrangência populacional de cada eSB, pois quanto maior a quantidade de pessoas sob a responsabilidade de uma equipe, maior a probabilidade de as demandas espontâneas dessa população dificultarem a organização da rotina no atendimento às consultas programadas.24 Somam-se a esse fato aspectos socioculturais, que podem influenciar a frequência do atendimento de urgência: muitos usuários não valorizam o tratamento odontológico como forma de prevenir problemas futuros, preferindo ou buscando atendimento quando a condição de saúde se torna mais aguda. Isto acaba gerando um círculo vicioso, na medida em que a saúde bucal da população continua precária e as consultas de urgência e emergência se mantêm elevadas.14
No tocante aos resultados sobre a escovação dental supervisionada e os padrões de qualidade municipais da dimensão ‘Processo de trabalho’ das eSB, os resultados apresentados reforçam a importância, fundamental, da organização dos serviços desenvolvidos pelas eSB para o comportamento desse indicador, sinalizando que a capacidade do sistema de saúde de desenvolver ações coletivas está intimamente relacionada com a efetivação das práticas relativas à ESF.25 Por sua vez, a baixa valorização das ações preventivas por parte das eSB pode, muitas vezes, ser consequência da prioridade dada aos procedimentos clínicos.24 Tal situação ocorre porque as estruturas institucionais se adequam às demandas dos pacientes e da comunidade como um todo, gerando um modelo de atendimento odontológico que deixa pouca margem para o tratamento odontológico preventivo contínuo.26 Sendo assim, apesar da expansão significativa das eSB em todo o território nacional, a atenção em saúde bucal no Brasil se caracteriza pela insuficiência de procedimentos coletivos.22
Em relação ao indicador ‘tratamentos concluídos’, concorda-se que fatores relacionados ao tipo de acolhimento adotado na ESF, a capacidade dos profissionais das equipes para convencer os usuários sobre a importância de completar seu tratamento, a possibilidade de realização de busca ativa pelos agentes comunitários de saúde e a garantia de reconsulta parecem contribuir para uma frequência maior de tratamentos concluídos.27 Não obstante a diferença identificada entre as medianas desse indicador nos estratos, ressalta-se a problemática da continuidade e conclusão do tratamento odontológico, complexa e sob influência de vários fatores, como a baixa condição social, a dificuldade de acesso, a falta de informação sobre saúde bucal, sua manutenção e tratamento, a desmotivação ou o medo do tratamento, o relacionamento do paciente com a equipe de profissionais.28
A análise espacial encontrou áreas de dependência espacial concentradas na Zona da Mata Norte do estado, entre municípios categorizados no padrão satisfatório quanto ao processo de trabalho. Tal fato pode ser explicado pelo aumento das despesas públicas municipais nessa região, como apontou um estudo sobre os gastos públicos em saúde no estado de Pernambuco, no período de 2000 a 2007.29 O bom desempenho da Saúde Bucal nessa região de saúde será confirmado em outros estudos, ao se constatar uma diminuição considerável no número de procedimentos exodônticos pela rede pública municipal entre os anos de 2000 e 2008,30 e o avanço no registro do indicador ‘cobertura de primeira consulta odontológica programática’ nesses municípios, quando comparados os anos de 2001 e 2009.5 No que toca às médias altas de urgência odontológica identificadas para essa região, mesmo quando quase todos os seus municípios dispunham de uma cobertura populacional de 100% para as eSB, esse quadro pode estar relacionado com a alta demanda reprimida e a baixa avaliação atribuída ao tratamento concluído. De fato, a elucidação dos fatores que influenciam tal comportamento carece de novos estudos.
Na região do Sertão, por sua vez, o agrupamento de municípios com menores médias nos registros do indicador ‘urgências odontológicas’ também necessita de estudo dos condicionantes e determinantes da menor regularidade observada nesse atendimento à população da região. Vale relembrar que os fatores capazes de influenciar a frequência das urgências odontológicas são complexos e perpassam questões de âmbito organizacional e sociocultural.23 A despeito da irregularidade observada no atendimento de urgência - um dos aspectos da dimensão organizacional -, sublinha-se que, dos cinco municípios constituintes desse conglomerado de municípios do Sertão pernambucano, três alcançaram o total de cobertura populacional das eSB para o ano de 2014 (dados não apresentados).
Outrossim, é oportuno destacar o conhecimento do comportamento das variáveis do estudo no território e sua importância, no sentido de compreender os eventos de saúde e planejar ações capazes de intervir positivamente no processo saúde-doença.12 Contudo, a própria complexidade dos fatores influenciadores do desempenho dessas variáveis recomenda novos estudos com o objetivo de explicar os padrões de distribuição espacial aqui verificados.
Em relação às limitações deste trabalho, cabem ressalvas quanto à confiabilidade dos registros dos indicadores de uso de serviços odontológicos, além de possível mascaramento da realidade das eSB na avaliação externa do PMAQ-AB. É possível, contudo, que os resultados apresentados estimulem a reflexão sobre os processos de cuidado e trabalho das eSB.
Conclui-se que, em Pernambuco, o padrão de qualidade dos municípios para a dimensão ‘Estrutura’ da assistência em saúde bucal foi mais bem pontuado que o da dimensão ‘Processo de trabalho’, de acordo com os critérios do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica adotados em 2014. Foram identificadas diferenças entre os indicadores ‘urgência odontológica’, ‘cobertura de escovação dental supervisionada’ e ‘tratamentos concluídos’, nos estratos de qualidade relacionados aos processos de trabalho das equipes de Saúde Bucal. Sua organização pode ser um fator determinante para a qualidade dos serviços prestados pelas equipes de Saúde Bucal de Pernambuco.