Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) recomendam que a amamentação seja iniciada na primeira hora de vida, que tenha seguimento sem a oferta de outros alimentos ou líquidos nos primeiros 6 meses, e que seja continuada junto à alimentação complementar pelo menos até os 6 anos de idade.1 O aleitamento materno apresenta inúmeros benefícios para a saúde infantil e materna no curto, médio e longo prazo, e é reconhecido como uma das intervenções de maior potencial para redução da morbidade e mortalidade infantil.2
Considerando-se o binômio ‘mãe e filho’, a amamentação está associada ao menor risco de câncer de mama e ovário, assim como de fraturas ósseas por osteoporose, a um menor sangramento uterino após o parto e retorno ao peso anterior à gestação mais rapidamente; crianças amamentadas apresentam menor chance de doenças infecciosas, internações hospitalares, desvios do estado nutricional, deficiência de micronutrientes e doenças crônicas.2,3 O aumento na frequência da amamentação pode impedir 823 mil mortes infantis e 20 mil mortes por câncer de mama a cada ano, no mundo.2 A promoção do aleitamento materno representa não apenas um investimento para melhorar a saúde das crianças e salvar vidas; trata-se de uma estratégia para o alargamento e desenvolvimento das capacidades humanas, condição essencial à promoção do desenvolvimento socioeconômico de um país.4
No ano de 2017, a OMS disponibilizou diretrizes para atenção à saúde da criança em serviços da Atenção Básica, objetivando o acompanhamento do estado nutricional em contextos de dupla carga de má nutrição. Foi recomendado que todas as crianças menores de cinco anos acompanhadas tivessem peso e estatura aferidos e fossem avaliadas de acordo com os padrões de crescimento infantil vigentes.5 No Brasil, desde a década de 1970, são implementadas ações que reforçam o acompanhamento do crescimento infantil. Os primeiros marcos legais de apoio às ações de Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN) no Sistema Único de Saúde (SUS) foram lançados na década de 1990, com a institucionalização do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) e inclusão da vigilância nutricional e da orientação alimentar no campo de atuação do SUS.6
A VAN, uma das diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, consiste na descrição contínua e na predição de tendências das condições de alimentação e nutrição da população e seus fatores determinantes. O Ministério da Saúde recomenda que o exercício da VAN tenha um enfoque suficientemente amplo para contemplar informações oriundas de inquéritos populacionais, chamadas nutricionais, produção científica e integração de informações derivadas de sistemas alimentados a partir da vigilância nos serviços de saúde.7 Nesse sentido, o Sisvan se destaca por ser uma importante ferramenta de cuidado e gestão, um sistema administrativo de abrangência nacional para a consolidação de dados de antropometria e de consumo alimentar de usuários da Atenção Básica, possibilitando o monitoramento e avaliação de seus indicadores.6
Em 2015, foi incorporada ao Sisvan a revisão do módulo de avaliação de marcadores do consumo alimentar. Este instrumento tornou possível avaliar práticas de aleitamento materno de usuários da Atenção Básica segundo as recomendações mais atualizadas da OMS,8-10 adaptadas para a população brasileira.11 Tendo em vista a relevância do estudo do estado nutricional e do consumo alimentar das crianças usuárias do SUS, haja vista, principalmente, a vulnerabilidade social que caracteriza essa população e, ademais, a ausência de dados nacionais atuais sobre baixo peso e consumo alimentar avaliados pelos novos marcadores, este trabalho se propôs, como objetivo, investigar a frequência de aleitamento materno exclusivo e a introdução precoce de outros alimentos, e sua associação com o baixo peso em crianças brasileiras, com base nos dados inseridos no Sisvan.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal desenvolvido a partir da análise de dados administrativos do Sisvan Web, versão online do sistema, disponível a todos os municípios brasileiros.
Os dados analisados corresponderam àqueles registrados no Sisvan Web no ano de 2015 e referem-se à avaliação antropométrica e do consumo alimentar realizada por profissionais da Atenção Básica em municípios. O banco de dados foi extraído em junho de 2016, após o bloqueio da entrada de dados referentes ao ano anterior pelo Ministério da Saúde. O registro de informações no Sisvan Web integra um conjunto de ações que o Ministério da Saúde recomenda como parte da Vigilância Alimentar e Nutricional, e possibilita a reunião de informações de todo o território nacional em um só espaço online.6
Obteve-se um conjunto de dados de 22.313 registros de crianças menores de 6 meses. No entanto, foram incluídas no estudo somente as crianças avaliadas, tanto em sua antropometria quanto em seu consumo alimentar. Para as que não possuíam os dois registros no mesmo dia, aceitou-se uma diferença de até 30 dias entre eles. Não foram incluídos 2.846 registros, por possuírem intervalo entre as avaliações superior ao determinado, sendo, portanto, não elegíveis para o estudo.
Também não foram considerados os registros duplicados do mesmo indivíduo (n=255) e aqueles que apresentaram dados biologicamente implausíveis (n=1.791) após a classificação do estado nutricional em escore-Z pelo software Anthro 3.2.2. Este aplicativo utiliza limites inferiores e superiores para identificar valores potencialmente incorretos, recomendando sua exclusão das análises para se obterem resultados consistentes. Assim, considerou-se valores de escore-Z no intervalo de -6 a +5 para o índice de peso para idade, e de -5 a +5 para o índice de massa corporal (IMC) para idade.12
Sobre o conjunto de dados incluído, realizou-se uma comparação entre sua distribuição por macrorregião brasileira e sexo das crianças e as projeções populacionais realizadas pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para crianças menores de 1 ano em 2012.13 Essa comparação objetivou identificar, de forma indireta, a proximidade entre as características dos casos registrados no Sisvan e as esperadas na população.
O desfecho de interesse foi o baixo peso e as variáveis de exposição foram aquelas utilizadas para avaliação de marcadores do consumo alimentar (Figura 1). As variáveis de consumo referiam-se ao dia anterior à entrevista e as categorias de resposta foram ‘sim’ ou ‘não’.9,11 Também compuseram a análise: macrorregião brasileira (Nordeste; Norte; Centro-Oeste; Sudeste; Sul), raça/cor da pele (branca e asiática; parda e preta; indígena; sem informação), sexo (feminino; masculino), idade (por mês) e frequência em creche (sim; não; sem informação).
a) Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
Nota: O aleitamento materno exclusivo foi considerado quando o responsável pela criança respondeu ‘sim’ à alternativa 2.a e ‘não’ a todas as demais opções desse item.
O aleitamento materno exclusivo (indicador 1) foi considerado quando o responsável pela criança respondeu ‘sim’ à alternativa ‘2.a’ e ‘não’ a todas as demais opções do item 2 da questão11 (Figura 1). O baixo peso foi avaliado pelos índices ‘peso para idade’ e ‘IMC para idade’, categorizados de forma a considerar < -2 escores-Z, segundo as curvas de crescimento apresentadas pela OMS em 2006.14,15
As idades das crianças avaliadas pela antropometria e pelo consumo alimentar foram representadas por sua média e seus respectivos desvios-padrão (DP), após verificação de sua normalidade pelo teste de Shapiro-Wilk. A diferença entre as idades foi verificada pelo teste t-Student, considerando-se p<0,05. Para as demais características, foram calculadas proporções com seus intervalos de confiança de 95% (IC95%).
Para investigar a associação entre o desfecho (baixo peso) e as exposições (consumo alimentar), partiu-se de um modelo teórico no qual o aleitamento materno exclusivo e a introdução precoce de outros alimentos poderiam estar associados ao baixo peso nessa fase do curso da vida, em sentidos opostos (proteção e risco, respectivamente). Nesse contexto, considerou-se que raça/cor da pele (proxy do status socioeconômico), sexo e idade (demandas nutricionais distintas) poderiam confundir essa associação, enquanto possíveis variáveis necessárias ao ajuste do modelo.
Foi utilizada a regressão de Poisson com variância robusta para a construção dos modelos multivariáveis; as variáveis de exposição com p<0,20 na análise bruta foram inseridas ao mesmo tempo no modelo e, ao final, foram mantidas aquelas com p<0,05. Os modelos multivariáveis foram ajustados pelas potenciais variáveis confundidoras: sexo, raça/cor da pele e idade da criança. As análises foram realizadas no software Stata, versão 15.1 (Statacorp, College Station, Texas, Estados Unidos).
Os dados do Sisvan foram extraídos com o cuidado de preservar o anonimato das pessoas acompanhadas, sem que qualquer característica pessoal individual fosse divulgada, conforme preconizado na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011), referente à proteção de informações pessoais.16 Também foram preservados os nomes dos municípios componentes do banco de dados. Por sua natureza e utilização de bancos de dados de maneira não identificada, o projeto do estudo foi dispensado de avaliação por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme disposto na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.17 A autorização para análise e divulgação dos resultados foi obtida junto à Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, gestora federal do Sisvan, mediante compromisso dos analistas envolvidos com o sigilo e o bom uso das informações.
Resultados
Foram avaliados 17.421 registros que atenderam aos critérios de elegibilidade. A média de idade - em meses - das crianças na avaliação de consumo foi de 2,61 (DP=1,76), e na avaliação do estado nutricional, 2,63 (DP=1,76; p=0,193). A comparação entre os casos obtidos do Sisvan e as estimativas populacionais realizadas pelo IBGE para o ano de referência, 2015, por sexo e macrorregião brasileira, é apresentada na Tabela 1. As prevalências de baixo peso para idade e baixo IMC para idade foram de 8,1% (IC95% 7,7;8,5) e 5,7% (IC95% 5,3;6,7); as demais características das crianças incluídas no estudo e a distribuição das variáveis de interesse compõem a Tabela 2.
Macrorregião | Amostra do Sisvana | População estimada pelo IBGEb | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | Total | Masculino | Feminino | Total | |
n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | |
Nordeste | 907 (5,2) | 879 (5,0) | 1.786 (10,3) | 449.408 (15,6) | 428.736 (14,9) | 878.144 (30,5) |
Norte | 863 (5,0) | 890 (5,1) | 1.753 (10,1) | 166.582 (5,8) | 159.121 (5,5) | 325.703 (11,3) |
Centro-Oeste | 1.487 (8,5) | 1.465 (8,4) | 2.952 (16,9) | 114.314 (4,0) | 109.102 (3,8) | 223.416 (7,8) |
Sudeste | 3.736 (21,4) | 3.686 (21,2) | 7.422 (42,6) | 555.504 (19,3) | 530.002 (18,4) | 1.085.506 (37,7) |
Sul | 1.802 (10,3) | 1.706 (9,8) | 3.508 (20,1) | 187.115 (6,5) | 178.460 (6,2) | 365.575 (12,7) |
Brasil | 8.795 (50,5) | 8.626 (49,5) | 17.421 (100,0) | 1.472.923 (51,2) | 1.405.421 (48,8) | 2.878.344 (100,0) |
a) Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.
b) IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Características | Frequência % (IC95% c) | Baixo peso para idade % (IC95% c) | Baixo IMCb para idade % (IC95% c) |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Feminino | 49,5 (48,7;50,2) | 7,6 (6,9;8,1) | 5,1 (4,6;5,5) |
Masculino | 50,5 (49,7;51,2) | 8,7 (8,1;9,3) | 6,3 (5,8;6,8) |
Idade (em meses) | |||
<1 | 25,2 (24,5;25,8) | 8,2 (7,4;9,1) | 5,6 (4,5;5,8) |
1 | 16,6 (16,1;17,2) | 11,9 (10,8;13,2) | 7,8 (6,8;8,8) |
2 | 16,5 (15,9;17,0) | 9,6 (8,6;10,7) | 6,3 (5,4;7,2) |
3 | 13,6 (13,1;14,2) | 6,9 (5,9;8,0) | 5,6 (4,8;6,6) |
4 | 15,7 (15,1;16,2) | 6,0 (5,2;6,9) | 4,6 (3,9;5,5) |
5 | 12,4 (11,9;12,9) | 4,9 (4,1;5,9) | 4,9 (4,1;5,9) |
Raça/cor da pele | |||
Branca e asiática | 48,8 (48,1;49,5) | 8,7 (8,0;9,2) | 5,7 (5,2;6,2) |
Parda e preta | 40,6 (39,8;41,3) | 7,4 (6,7;8,0) | 6,0 (5,4;6,6) |
Indígena | 0,4 (0,3;0,5) | 5,8 (2,1;14,5) | 2,8 (0,7;10,9) |
Sem informação | 10,2 (9,7;10,6) | 8,8 (7,5;10,2) | 4,7 (3,8;5,7) |
Frequenta creche | |||
Sim | 17,7 (17,1;18,3) | 8,1 (7,1;9,0) | 6,1 (5,2;6,9) |
Não | 81,5 (80,8;82,0) | 8,2 (7,7;8,6) | 5,7 (5,2;6,0) |
Sem informação | 0,8 (0,6;0,9) | 5,6 (2,8;10,8) | 3,5 (1,4;8,1) |
Macrorregião brasileira | |||
Nordeste | 10,3 (9,8;10,7) | 5,7 (4,7;6,8) | 6,3 (5,2;7,5) |
Norte | 10,1 (9,6;10,5) | 5,9 (4,9;7,1) | 6,0 (4,9;7,2) |
Centro-Oeste | 16,9 (16,3;17,5) | 5,6 (4,8;6,5) | 4,7 (3,9;5,4) |
Sudeste | 42,6 (41,8;43,3) | 9,6 (8,9;10,3) | 6,0 (5,3;6,4) |
Sul | 20,1 (19,5;20,7) | 9,5 (8,6;10,6) | 6,0 (5,2;6,8) |
a) Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.
b) IMC: índice de massa corporal.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Em relação ao consumo alimentar no dia anterior à pesquisa, 88,3% das crianças avaliadas consumiram leite materno; entretanto, apenas 56,1% o fizeram de maneira exclusiva. Entre os alimentos introduzidos precocemente e mais presentes nos relatos, água ou chá foi referido na alimentação de 28,9% das crianças, seguidos da fórmula infantil, consumida por 25% das crianças. Cabe destacar que a maior prevalência de baixo peso para idade foi observada entre os consumidores de fórmula infantil. Em relação ao consumo dos demais alimentos, a frequência de baixo peso foi semelhante nos estratos estudados, para ambos os indicadores (Tabela 3).
Indicador de consumo alimentarb | Frequência | Baixo peso para idade | Baixo IMCc para idade |
---|---|---|---|
% (IC95% d) | % (IC95% d) | % (IC95% d) | |
Aleitamento materno exclusivo | 56,1 (55,3;56,8) | 7,6 (7,0;8,0) | 5,2 (4,7;5,5) |
Leite materno | 88,3 (87,8;88,8) | 7,9 (7,4;8,2) | 5,6 (5,2;5,9) |
Mingau | 10,9 (10,4;11,3) | 7,0 (5,8;8,1) | 6,5 (5,4;7,6) |
Água ou chá | 28,9 (28,2;29,5) | 7,4 (6,6;8,0) | 6,1 (5,4;6,7) |
Leite de vaca | 10,5 (10,0;10,9) | 7,0 (5,8;8,1) | 6,3 (5,1;7,3) |
Fórmula infantil | 25,0 (24,3;25,6) | 10,5 (9,5;11,3) | 6,5 (5,8;7,2) |
Suco de fruta | 13,0 (12,4;13,4) | 6,2 (5,2;7,1) | 5,6 (4,6;6,5) |
Fruta | 11,5 (11,0;11,9) | 6,0 (5,0;7,0) | 5,2 (4,2;6,2) |
Comida de sal | 9,0 (8,5;9,4) | 6,1 (4,9;7,2) | 4,7 (3,6;5,7) |
Outros alimentos ou bebidas | 6,8 (6,3;7,1) | 6,7 (5,2;8,1) | 4,8 (3,6;6,0) |
a) Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.
b) Ambos os indicadores foram estimados a partir do relato do consumo no dia anterior.12
c) IMC: índice de massa corporal.
d) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Na análise dos fatores associados ao baixo peso, quanto ao índice de peso para idade, todos os marcadores de consumo alimentar compuseram o modelo final, por terem apresentado p<0,20. Na análise multivariável, observou-se maior prevalência de baixo peso entre as crianças que consumiram fórmula infantil (RP=1,35 - IC95% 1,15;1,58). O aleitamento materno exclusivo, por sua vez, mostrou-se um fator de proteção frente ao desfecho ‘baixo peso’ (RP=0,73 - IC95% 0,61;0,87). Efeito semelhante foi observado em relação ao consumo de água ou chá (Tabela 4).
Indicador de consumo alimentarb | Baixo peso para idade | Baixo IMCc para idade | ||
---|---|---|---|---|
Razão de prevalência bruta (IC95% d) | Razão de prevalência ajustadae (IC95% d) | Razão de prevalência bruta (IC95% d) | Razão de prevalência ajustadae (IC95% d) | |
Aleitamento materno exclusivo | 0,85f (0,77;0,94) | 0,73g (0,61;0,87) | 0,80f (0,71;0,90) | 0,69f (0,56;0,85) |
Leite materno | 0,77f (0,67;0,89) | 0,87 (0,75;1,02) | 0,80g (0,68;0,95) | 0,90 (0,74;1,09) |
Mingau | 0,86g (0,77;0,97) | 1,01 (0,82;1,24) | 1,16h (0,97;1,39) | 1,22 (0,98;1,52) |
Água ou chá | 0,87h (0,78;0,97) | 0,81g (0,69;0,94) | 1,10h (0,97;1,25) | 0,93 (0,77;1,13) |
Leite de vaca | 0,84h (0,71;1,00) | 0,92 (0,75;1,14) | 1,11 (0,92;1,34) | - |
Fórmula infantil | 1,42f (1,28;1,58) | 1,35f (1,15;1,58) | 1,20g (1,05;1,37) | 1,00 (0,83;1,20) |
Suco de fruta | 0,74f (0,62;0,87) | 0,89 (0,69;1,14) | 0,98 (0,82;1,17) | - |
Fruta | 0,72f (0,60;0,86) | 0,85 (0,65;1,13) | 0,91 (0,74;1,10) | - |
Comida de sal | 0,73f (0,60;0,90) | 1,01 (0,76;1,35) | 0,81h (0,64;1,02) | 0,78 (0,58;1,04) |
Outros alimentos ou bebidas | 0,81h (0,65;1,01) | 0,90 (0,75;1,02) | 0,84h (0,64;1,09) | 0,77 (0,57;1,06) |
a) Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.
b) Ambos os indicadores foram estimados a partir do relato do consumo no dia anterior.12
c) IMC: índice de massa corporal - baixo peso para idade e baixo IMC para idade, < -2 escores-Z, de acordo com as curvas de referência da Organização Mundial da Saúde.15
d) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
e) O modelo foi ajustado por sexo, idade e raça/cor da pele.
f) p<0,001
g) p<0,05
h) <0,20.
No estudo dos fatores associados ao baixo peso aferido pelo IMC para idade, os alimentos ‘leite de vaca’, ‘suco de fruta’ e ‘fruta’ não compuseram o modelo final por terem apresentado p>0,20 na análise bruta. Na análise multivariável, o aleitamento materno exclusivo também se mostrou associado a menor prevalência de baixo peso, aferido pelo índice IMC para idade (RP=0,69 - IC95% 0,56;0,85) (Tabela 4).
Discussão
O presente estudo foi o primeiro a analisar dados administrativos do Sisvan relacionados ao consumo alimentar de crianças menores de 6 meses, a partir dos novos marcadores recomendados pelo Ministério da Saúde.11 A incorporação ao Sisvan do módulo de consumo, revisado em 2015, disponibilizou uma ferramenta de vigilância, cuidado e gestão das ações de alimentação e nutrição nos territórios cobertos pela Atenção Básica; a análise desses dados pode subsidiar o planejamento das ações de promoção da alimentação adequada e saudável. O efeito protetor exercido pelo aleitamento materno no estado nutricional das crianças e a alta frequência da oferta de outros alimentos antes dos 6 meses de idade foram os principais achados desta análise.
O último inquérito nacional brasileiro com dados antropométricos válidos, base da avaliação da frequência de baixo peso na população menor de 12 meses, foi realizado no ano de 2006 e não apresentou dados para a faixa etária deste estudo, tampouco para o ‘IMC para idade’, dificultando a comparação. A frequência de baixo peso para idade, no entanto, foi de 2,9% (erro-padrão: 0,8%). Apesar da limitação de comparação, devido à faixa etária e à temporalidade, identificou-se, naquele inquérito, que a prevalência de deficit ponderal se elevou conforme diminuiu a renda da família, sendo cerca de 2,5 vezes maior no estrato mais baixo em relação ao mais alto. Tendo em vista que a maioria das crianças acompanhadas no Sisvan se encontram em situação de vulnerabilidade social,18 pode-se esperar que as frequências de deficit de peso encontradas no presente estudo, superiores ao inquérito nacional, se aproximem da frequência esperada para essa população em 2015.19
A frequência de deficit de peso foi maior em crianças menores de 3 meses, considerando-se ambos os índices antropométricos avaliados, quando comparadas às demais crianças. Uma possível justificativa para tal achado é que algumas dessas crianças nasceram pequenas para a idade gestacional (peso ao nascer inferior a 2.500g) e não tiveram tempo hábil para recuperação até o momento da avaliação. Outra possibilidade a considerar é que as crianças mais novas tiveram perda de peso biológica logo após o nascimento, visto que 45,0% das crianças menores de 3 meses possuíam idade inferior a 1 mês (dados não apresentados em tabela).20
Os índices antropométricos avaliados se complementam: o IMC leva em consideração a estatura da criança, balizando os casos daquelas que nasceram maiores que a mediana da população, ao passo que o peso é um indicador mais sensível à desnutrição aguda, situação comum nessa faixa etária, enquanto a família busca alternativas diante das barreiras e dificuldades para o aleitamento materno exclusivo.21 Mais que a frequência apresentada para esses indicadores, deve-se ter em mente suas particularidades ao se analisarem as associações encontradas.
Neste estudo, a prevalência de aleitamento materno exclusivo foi superior às prevalências observadas em três pesquisas, de abrangência nacional, sobre o tema: 36,0% em 2006, 41,0% em 2009 e 37,1% em 2013.22 Ao se observar as crianças menores de 6 meses que receberam leite materno no dia anterior, a prevalência também foi superior aos valores investigados nos períodos anteriores, de 52,1% em 2006 e 56,3% em 2013 (para menores de 24 meses).22 A despeito do possível viés de seleção, presente em estudos como este, uma das explicações para a frequência mais elevada pode estar no produto de ações realizadas pelas equipes da Atenção Básica com o intuito de promover o aleitamento materno.23-25 Estudos realizados na cidade do Rio de Janeiro, somente com amostras de crianças acompanhadas na Atenção Básica, encontraram prevalências de aleitamento exclusivo - 58,1% em 2010 e 50,1% em 2013 - mais próximas às deste estudo.23,25 A introdução precoce de outros alimentos distintos do leite materno antes dos 6 meses de idade também foi identificada em outras pesquisas,19,26 com destaque para água e chá, cuja frequência foi a mais predominante entre crianças do município de Goiânia, Goiás.26
O aleitamento materno exclusivo foi confirmado como fator de proteção para o deficit de peso. O achado, para além da redução da morbidade e da mortalidade de crianças menores de 6 meses,1,3,27 relaciona esse comportamento materno-infantil a menores prevalências de deficit de peso; e vai ao encontro do resultado da investigação de Vesel et al.20 sobre a associação entre aleitamento materno exclusivo e redução da prevalência de desnutrição em crianças peruanas e indianas.
O modelo final apresentado por este trabalho trouxe outros dados relevantes para a análise, como o fato de (i) o consumo não exclusivo de leite materno não ter o mesmo efeito protetor para os desfechos analisados que o consumo exclusivo, e (ii) o consumo de fórmulas infantis representar um fator de risco. A respeito deste último resultado, por se tratar de um estudo transversal, não se pode assegurar que a fórmula infantil esteja relacionada às causas do baixo peso, ou que seu uso seja uma estratégia comumente utilizada por profissionais de saúde para recuperar o peso de crianças e seu crescimento adequado à idade. De acordo com um estudo de coorte que acompanhou a velocidade de ganho de peso de menores de 6 meses em Viçosa, Minas Gerais, entretanto, crianças que consumiam fórmula infantil ganharam menos peso, na comparação com aquelas que não consumiam esse tipo de alimento, em quase todas as ondas de avaliação,28 indicando que os presentes resultados podem ter representado a realidade.
O consumo de água ou chá se associou de forma protetora ao deficit de peso, quando avaliado pelo índice ‘peso para idade’. Uma hipótese para esse achado - inesperado - seria o fato de, no Brasil, haver o costume de adicionar açúcar aos chás e, por conseguinte, seu consumo em quantidade elevada ser capaz de promover uma rápida recuperação ou maior ganho de peso nas crianças, sem todavia promover benefícios para o crescimento linear. Como a questão se refere aos dois itens, não foi possível qualificar a análise para corroborar tal hipótese.
O crescimento físico adequado (com ganho ponderal e estatural) de uma criança menor de 6 meses é de fundamental importância para seu pleno desenvolvimento; da mesma forma, o aleitamento materno exclusivo é fundamento principal para que ela atinja todo o seu potencial.1,28 Além desse fato, o aleitamento materno exclusivo tem efeito protetor para o ganho excessivo de peso nessa idade, estando associado com o peso corporal saudável ao longo da vida.1,29 O acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil na Atenção Básica, por meio da VAN, já mostrou efeito positivo em investigação anterior com crianças em vulnerabilidade social.18 O presente estudo reforça a importância desse acompanhamento e das ações de promoção do aleitamento materno exclusivo. Ambas as ações podem explicar, ainda que parcialmente, as prevalências de aleitamento e sua contribuição para o crescimento adequado dessa população.
Como toda análise realizada a partir de dados de sistemas administrativos, existem algumas limitações a serem consideradas na interpretação das evidências produzidas. Entre elas, a falta de representatividade, característica de estudos com desenhos amostrais predefinidos, e a impossibilidade de padronização das medidas, passíveis de variações de uma unidade de saúde para outra, embora haja uma recomendação nacional para a aferição.30 O desenho transversal do estudo também impede uma inferência causal relacionada às exposições e desfechos.
Quanto à comparação entre a amostra analisada e a projeção da população brasileira obtida pelo IBGE, observou-se distribuição semelhante na estratificação por sexo apenas para o Brasil como um todo, embora distinta entre suas macrorregiões. Para a composição do conjunto de casos do Sisvan, as regiões Sudeste e Sul foram as que mais contribuíram com o número de crianças acompanhadas, diferentemente do que se observa no contingente estimado pelo IBGE, cujas maiores populações projetadas para a mesma faixa etária estariam nas regiões Sudeste e Nordeste. Esse resultado aponta para a limitação das frequências apresentadas nessas regiões e a impossibilidade de estratificação na análise da associação entre aleitamento materno e deficit de peso. Em relação às limitações do instrumento de avaliação dos marcadores de consumo alimentar, destaca-se a restrição na variedade de alimentos, o que poderia prejudicar a identificação abrangente das possibilidades alimentares da população, não sendo capaz, contudo, de quantificar o consumo, além do fato de um instrumento de avaliação de marcadores ser incapaz de avaliar o consumo usual de um indivíduo.
A despeito dessas limitações, o resultado colabora com o rol de evidências, em nível nacional, relacionadas à importância do aleitamento materno exclusivo em menores de 6 meses. Trata-se de um enfoque pioneiro no Brasil. Mais um ponto positivo do estudo é sua grande capilaridade: a inclusão de dados coletados em todas as regiões brasileiras, relativos a mais de 600 municípios (dados não apresentados). Entende-se que as informações apresentadas, além de reforçarem a importância do aleitamento materno exclusivo para o crescimento infantil, apontam para a possibilidade de utilização do Sisvan como ferramenta ativa de vigilância, complementando, com maior periodicidade e economia de recursos, as informações advindas de inquéritos populacionais.
A prática de aleitamento materno exclusivo foi observada em pouco mais da metade das crianças avaliadas. Água, chás e fórmulas infantis foram os principais alimentos consumidos precocemente. As associações encontradas reforçam o aleitamento materno como fator de proteção para o crescimento nos primeiros meses da vida, quando realizado de forma exclusiva, e a falta do mesmo efeito para a forma não exclusiva. O consumo de fórmulas infantis elevou em 35% a prevalência de baixo peso para idade. Ressalta-se a importância do desenvolvimento de ações de Vigilância Alimentar e Nutricional e promoção do aleitamento materno exclusivo até os seis meses, desenvolvidas pela Atenção Básica, visando ganho de peso adequado e crescimento saudável para as crianças brasileiras.