Introdução
A esquistossomose é uma doença negligenciada, relacionada com a pobreza. Entre as parasitoses, sua magnitude é maior devido às graves consequências quando manifestada em suas formas clínicas. Nas Américas, é no Brasil onde há maior concentração de casos registrados, distribuídos em 19 estados, e uma estimativa de 2 milhões de pessoas infectadas. Destas, 80% vivem na região Nordeste, com elevada prevalência ao longo da costa litorânea e no trajeto de bacias hidrográficas.1 Diante desse cenário, o Ministério da Saúde tem alertado para a identificação das condições sanitárias favoráveis à contaminação da água doce. O monitoramento dessas condições é importante para embasar as ações de controle e redução da prevalência da infecção, da ocorrência da forma hepatoesplênica e óbitos pela doença.2-5
Em 2016, a esquistossomose ainda foi considerada endêmica em 103 dos 185 municípios pernambucanos, com uma concentração na Zona da Mata Norte e Zona da Mata Sul, e na Região Metropolitana do Recife, capital de Pernambuco. Nessas três regiões, foram identificadas localidades com 10 a 50% de diagnóstico sorológico positivo. De 2008 a 2014, foram registradas 473 hospitalizações pela doença, sendo que, no período de 2009 a 2013, o número médio de óbitos no estado chegou a 171. Estes dados representam as maiores taxas de internações e de mortalidade pela doença entre os estados brasileiros, nos períodos citados.6,7
Sobre as estratégias padronizadas pelo governo brasileiro para o controle da doença, destacam-se: i a definição de caso de esquistossomose; ii a notificação; iii o adequado uso de um sistema informatizado específico e o fluxo de informações que ele favorece; iv a investigação epidemiológica; v o inquérito coproscópico; vi a classificação das áreas de transmissão; vii as ações de educação em saúde e viii o tratamento nas localidades endêmicas, com uso de praziquantel via oral.4
Em 2011, o governo do estado de Pernambuco lançou o Programa de Enfrentamento às Doenças Negligenciadas SANAR. Naquele momento, sete doenças transmissíveis foram selecionadas e incluídas em agenda internacional, entre elas a esquistossomose. Fundamentalmente, o programa SANAR se destaca das demais ações do Ministério da Saúde em dois eixos: i o fortalecimento das ações de tratamento seletivo, com envolvimento efetivo nas atividades de vigilância, diagnóstico e tratamento dos casos positivos por parte dos profissionais das equipes da Estratégia Saúde da Família, com estímulo à vigilância ativa semanal; e ii a adoção do tratamento coletivo com praziquantel para todos os indivíduos acima de 2 anos de idade, nas localidades com índice de positividade igual ou superior a 10%.8-10
Até o ano de 2014, o enfrentamento à esquistossomose pelo SANAR teve suas ações implantadas em 30 municípios considerados prioritários. No estado pernambucano, houve significativo impacto na morbidade e na mortalidade pela doença no mesmo período: a prevalência da esquistossomose, que em 2010 apresentava uma média de 17% nas localidades hiperendêmicas, caiu para 4,4% em 2014. Em 2010, foram registrados 10.889 casos positivos, representando 6,1% de positividade, e 205 óbitos; em 2014, esses números reduziram-se para 8.713 casos positivos, 3,4% de positividade e 175 óbitos.10
Considerando-se a importância de conhecer os dispositivos criados no âmbito do SANAR e a possibilidade de sua replicação em outros contextos com semelhante situação epidemiológica, este artigo teve como objetivo avaliar a implantação das ações de controle da esquistossomose mansônica pelo programa em três municípios de Pernambuco.
Métodos
Pesquisa avaliativa do tipo de análise de implantação,11 sobre a influência do contexto no grau de implantação das ações de controle da esquistossomose no âmbito do programa SANAR. A estratégia de investigação foi a de um estudo multinível, de casos múltiplos, desenvolvido em 2014.
O estudo foi realizado em três municípios aqui identificados pelas letras A, B e C do estado de Pernambuco, Brasil, enquadrados nos seguintes critérios de inclusão: ter condições socioambientais favoráveis à manutenção da endemia; realizar tratamento coletivo; e apresentar médias de positividade acima de 20%. O município A, localizado na Região Metropolitana do Recife, possui área territorial de 527,107km², densidade demográfica de 152,98 habitantes por km², população estimada de 94.533 hab. e índice de desenvolvimento humano municipal IDHM de 0,619. Os municípios B e C, situados na região da Zona da Mata Sul, apresentam, respectivamente: área territorial de 342,201km² e 160,477km²; densidade demográfica de 183,07 hab./km² e 86,87 hab./km²; população estimada de 68.281 e 15.683 hab.; e IDHM de 0,632 e 0,530.12
A avaliação foi desenvolvida em três etapas, delineadas a seguir:
Etapa 1 - Construção do modelo lógico e da matriz de julgamento das ações de controle da esquistossomose pelo programa SANAR
O modelo lógico foi elaborado para compreensão das correlações entre a estrutura, o processo e os resultados previstos para as ações de controle da esquistossomose, fundamentado em documentos institucionais relativos ao controle da infecção Figura 1. A partir do modelo lógico, construiu-se a matriz de julgamento: i os indicadores de estrutura e processo, ii os parâmetros adotados para o julgamento, iii as fontes de apuração para cada indicador e iv a pontuação para julgamento dos indicadores, cuja definição teve por base documentos institucionais ou disponíveis na literatura. A valoração de cada indicador selecionado considerou seu grau de importância, segundo uma escala de zero a quatro Figura 2. Para ampliação da validade de constructo, o modelo e a matriz foram submetidos à apreciação de especialistas, conforme recomendação de McLaughlin e Jordan.13
Legenda:
SANAR: Programa de Enfrentamento às Doenças Negligenciadas.
PCE: Programa de Controle da Esquistossomose.
eESF: equipe de Saúde da Família.
SISPCE: Sistema de Informação de Controle da Esquistossomose.
TC: tratamento coletivo.
SMS: Secretaria de Municipal de Saúde.
GERES: Gerências Regionais de Saúde.
a PE: Pontuação esperada.
Legenda:
PCE: Programa de Controle da Esquistossomose.
SISPCE: Sistema de Informação de Controle da Esquistossomose.
USF: Unidade de Saúde da Família.
eESF: equipe de Saúde da Família.
TC: tratamento coletivo.
TS: tratamento seletivo.
SMS: Secretaria de Municipal de Saúde.
Etapa 2 - Classificação do grau de implantação
Nesta etapa do estudo, os indicadores elencados na matriz foram utilizados na coleta de dados primários, mediante observação sistemática e aplicação de questionário estruturado junto aos coordenadores da Atenção Básica e do Programa de Controle da Esquistossomose PCE, profissionais das equipes de Saúde da Família eESF e agentes de endemias lotados nos três municípios.
Para análise do grau de implantação, utilizou-se um sistema de escores, atribuindo-se pontuações aos indicadores conforme a relação destes com a redução da prevalência da esquistossomose. O desenho desse sistema de contagem baseou-se em um documento de referência: Cadernos de Monitoramento do Programa SANAR - Esquistossomose.14 Logo, as pontuações obtidas foram somadas, divididas pela pontuação esperada e multiplicadas por 100. Essa proporção foi enquadrada em quartis, definindo-se o grau de implantação da seguinte maneira: implantado 75 a 100%; parcialmente implantado 50 a 74,9%; criticamente implantado 25 a 49,9%; e não implantado 0 a 25%.
Etapa 3 - Avaliação do contexto e da influência
Para avaliação do contexto, construiu-se uma matriz de análise, conforme o modelo político-contingente.15 Foram analisados atributos dos contextos político e estrutural, representados neste estudo pelas dimensões ‘Implantação e Desenvolvimento’ conhecimento e prioridade conferida ao programa, ‘Grau de Abertura’ diálogo e corresponsabilidade institucional e ‘Sustentabilidade’ estratégias de manutenção e sustentabilidade. A partir da conceituação dessas dimensões, foram elencadas categorias de análise, utilizadas como fonte de informação para a coleta de dados primários. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com gestores da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco SES/PE, gestores e técnicos municipais da Atenção Básica e da Vigilância em Saúde; e com gerentes das Regionais de Saúde RS, sendo a RS1 correlacionada ao município A e a RS2 responsável pelos municípios B e C.
As entrevistas semiestruturadas e a apreciação documental foram submetidas a análise de conteúdo;16 e as informações, classificadas em três situações de identificação entre as fontes de evidência adaptadas da classificação de Alves et al., quais sejam:17
- convergência positiva C+ das fontes, beneficiando a implantação do programa;
- divergências D entre fontes, caracterizando situações de mudanças não consolidadas, embora potencialmente favoráveis à implantação; e
- convergência negativa C- entre as fontes, expressando situações desfavoráveis à implantação do programa.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Pelotas CEP/FAMED/UFPel: Parecer nº 772.632, de 30 de agosto de 2014. Previamente às entrevistas, solicitou-se aos sujeitos que assinassem Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo-lhes garantido o direito à não participação e à privacidade de seus dados individuais.
Resultados
A definição do grau de implantação contou com a participação dos três coordenadores municipais da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde, três responsáveis pelo PCE, 56 profissionais das eESF e 85 agentes de endemias dos três municípios. Para a avaliação do contexto, foram abordados dois gestores estaduais secretário executivo de Vigilância em Saúde e coordenador do SANAR, dois gerentes das regionais de saúde, três coordenadores municipais da Atenção Básica e três da Vigilância em Saúde. Não houve perda ou recusa em colaborar com o estudo.
Apenas o município C foi classificado como implantado 79,5%. Na dimensão Estrutura, o componente ‘recursos materiais’ obteve melhor nível de implantação, também com destaque para o município C 95,6%. Quanto à dimensão Processo, o município A alcançou 100% de implantação no componente ‘gestão’, e as ações de ‘vigilância epidemiológica’ alcançaram melhores percentuais nos municípios B 75,1% e C 80,4% Tabela 1.
Componentes, por dimensão | Grau de implantação GI=% | ||
---|---|---|---|
Municípios | |||
A | B | C | |
Estrutura | |||
Recursos humanos | 56,4 | 43,5 | 79,0 |
Recursos materiais | 87,6 | 67,4 | 95,6 |
GI % | 69,7 | 53,7 | 86,1 |
Processo | |||
Gestão | 100,0 | 73,9 | 73,9 |
Vigilância epidemiológica | 51,0 | 75,1 | 80,4 |
Assistência ao paciente e apoio laboratorial | 53,3 | 68,8 | 66,6 |
Educação em saúde | 66,5 | 32,5 | 33,2 |
GI % | 69,7 | 70,6 | 72,8 |
GI: Estrutura + Processo % | 69,7 | 62,2 | 79,5 |
Nota: Classificação do grau de implantação do programa SANAR: implantado = 75 a 100%; parcialmente implantado = 50 < 75%; criticamente implantado = 25 < 50 %; e não implantado = 0 < 25%.
No componente ‘recursos humanos’, enquanto os indicadores relacionados com a existência de profissionais em cargos de gestão Atenção Básica e Vigilância Epidemiológica receberam pontuação máxima, a existência de assessores do PCE e do SANAR atuantes nas ações de controle da esquistossomose obteve pontuação máxima e nula, nos municípios A e B, respectivamente. Quanto aos ‘recursos materiais’, a disponibilidade de veículos e planilhas para ações de controle foi totalmente pontuada apenas no município C, e a disposição de medicação não obteve pontuação máxima no caso do município A. No componente ‘gestão’, apenas o município A obteve pontuação máxima nos indicadores de capacitação profissional. No componente ‘vigilância epidemiológica’, todos os municípios realizavam digitação periódica, apesar de não enviarem documentação após avaliação do tratamento coletivo. Ademais, o município A não realizava inquérito amostral. Já os indicadores de existência de rede de referência para os casos graves componente ‘assistência ao paciente e apoio ambulatorial’ e de atividades educativas voltadas à população mais vulnerável componente ‘educação em saúde’ receberam pontuação parcial nos três municípios Tabela 2.
Indicador | PE | PO/GI % | ||
---|---|---|---|---|
Municípios | ||||
A | B | C | ||
Estrutura | ||||
Recursos humanos | ||||
Existência de responsáveis pela Atenção Básica | 3 | 3 | 3 | 3 |
Existência de responsáveis pela Vigilância Epidemiológica, Vigilância Ambiental e/ou Controle de Endemias | 3 | 3 | 3 | 3 |
Existência de profissionais de laboratório | 3 | 3 | 3 | 3 |
Existência de assessores do PCE e do SANAR atuantes nas ações de controle da esquistossomose | 3 | 3 | 0 | 1,5 |
Existência de digitador do SISPCE | 4 | 4 | 4 | 4 |
Proporção de profissionais de USF de localidades prioritárias para o TC no município capacitados em tratamento coletivo | 4 | 0 | 0 | 4 |
Proporção de profissionais da eESF do município capacitados em tratamento seletivo | 4 | 0 | 0 | 4 |
Proporção de profissionais da eESF do município capacitados em manejo clínico | 2 | 0 | 0 | 2 |
Proporção de profissionais da eESF do município capacitados para a vigilância em saúde | 2 | 0 | 0 | 0 |
Proporção de eESFs do município com equipe completa e em número adequado | 2 | 0 | 0 | 0 |
Existência de arte educadores | 2 | 1,5 | 0,5 | 0 |
Subtotal | 32 | 17,5 | 13,5 | 24,5 |
GI % | 56,4 | 43,5 | 79,0 | |
Recursos materiais | ||||
Disponibilidade de planilhas utilizadas nas ações de controle da esquistossomose | 2 | 1,5 | 1,5 | 2 |
Número de itens do kit de trabalho disponíveis aos profissionais da Atenção Básica | 1 | 0,5 | 0,5 | 0,5 |
Disponibilidade de veículo | 2 | 1,5 | 1,5 | 2 |
Disponibilidade de medicação Prazinquantel | 4 | 2,6 | 4 | 4 |
Disponibilidade de potes coletores | 4 | 4 | 4 | 4 |
Disponibilidade de balança de pé | 4 | 4 | 2 | 4 |
Disponibilidade do material educativo | 2 | 2 | 2 | 1,5 |
Instalações adequadas para leitura e preparação de lâminas | 4 | 4 | 0 | 4 |
Subtotal | 23 | 20,2 | 15,5 | 22 |
GI % | 87,6 | 67,4 | 95,6 | |
Processo | ||||
Recursos materiais | ||||
Gestão | ||||
Capacitação dos profissionais em TC realizada | 4 | 4 | 4 | 4 |
Capacitação dos profissionais em TS realizada | 4 | 4 | 4 | 4 |
Capacitação dos profissionais em manejo clínico realizada | 3 | 3 | 1,5 | 1,5 |
Capacitação em diagnóstico laboratorial realizada | 3,5 | 3,5 | 1,75 | 1,75 |
Atualização para uso do SISPCE realizada | 2,5 | 2,5 | 1,25 | 1,25 |
Subtotal | 17 | 17 | 12,5 | 12,5 |
GI % | 100 | 74,0 | 73,9 | |
Vigilância epidemiológica | ||||
TC nas áreas hiperendêmicas realizado | 4 | 4 | 4 | 4 |
Proporção de localidades com TC realizado | 3 | 1,5 | 3 | 3 |
Ações do TC acompanhadas | 4 | 4 | 2,6 | 4 |
Envio de documentação oficial ao município após o TC | 2 | 0 | 2 | 2 |
Realiza o inquérito amostral | 4 | 0 | 4 | 4 |
Proporção de localidades que realizaram o inquérito amostral no prazo previsto 4 meses | 3 | 0 | 0 | 0 |
Digitação periódica dos dados no SISPCE | 3,5 | 3,5 | 3,5 | 3,5 |
Envio de documentação oficial ao município após a avaliação do TC | 2 | 0 | 0 | 0 |
Subtotal | 25,5 | 13 | 19,2 | 20,5 |
GI % | 51 | 75,1 | 80,4 | |
Assistência ao paciente e apoio laboratorial | ||||
Acompanhamento das ações do TS | 4 | 2,66 | 4 | 2,66 |
Existência de rede de referência para casos graves de esquistossomose funcionando para o município | 3,5 | 2,3 | 1,16 | 2,33 |
Subtotal | 7,5 | 4,0 | 5,1 | 5,0 |
GI % | 53,3 | 68,8 | 66,6 | |
Educação em saúde | ||||
Apoio às SMS para realização de atividades educativas voltadas à população mais vulnerável | 2 | 0,6 | 1,3 | 1,3 |
Elaboração de material educativo para ações de controle da esquistossomose | 2 | 2 | 0 | 0 |
Subtotal | 4 | 2,66 | 1,3 | 1,3 |
GI % | 66,5 | 32,5 | 32,5 |
Legenda:
PCE: Programa de Controle da Esquistossomose.
SISPCE: Sistema de Informação de Controle da Esquistossomose.
USF: Unidade de Saúde da Família.
eESF: equipe de Saúde da Família.
TC: tratamento coletivo.
TS: tratamento seletivo.
SMS: Secretaria Municipal de Saúde.
PO: pontuação obtida.
GI: grau de implantação.
PE: pontuação esperada.
Nota: Classificação do grau de implantação do programa SANAR: implantado = 75 a 100%; parcialmente implantado = 50 < 75%; criticamente implantado = 25 < 50%; e não implantado = 0 < 25%.
Quanto ao contexto político-contingente, na dimensão Implantação e Desenvolvimento, os atores da SES/PE, da RS1 e do município A apresentaram formação profissional em Saúde Pública e tempo de atuação na gestão da Vigilância em Saúde entre um e cinco anos. Entretanto, todos os entrevistados reconheciam a relevância do programa e participavam do monitoramento e da avaliação dos indicadores mediante reuniões periódicas C+. O programa perdia prioridade, diante da carência de profissionais com dedicação exclusiva, do surgimento de surtos e, ao mesmo tempo, escassez de recursos materiais C-. Excepcionalmente, o município A dispunha de um profissional específico para o PCE, visando à ampliação das ações em áreas não endêmicas C+ Figura 3.
Legenda:
CIB: Comissão Intergestores Bipartite.
CES: Conselho Estadual de Saúde.
PES : Plano Estadual de Saúde.
PMS: Plano Municipal de Saúde.
LOA: Lei Orçamentário Anual.
SMS: Secretaria Municipal de Saúde.
SES/PE: Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco.
C+: convergência positiva das fontes de evidência em relação ao critério.
D: divergências das fontes de evidência em relação ao critério.
C-: convergência negativa das fontes de evidência em relação aos critérios.
Quanto à articulação política e ao grau de autonomia técnico-gerencial, a SES/PE considerava respeitar a independência das regionais e municípios e sua participação no planejamento local, na pactuação de metas e indicadores C+. Contudo, os demais níveis viam o programa verticalizado, sem conferir a eles a devida autonomia, considerando-se executores de ações planejadas pelo ente estadual C-. Entretanto, as regionais e os municípios promoviam articulações intermunicipais e intersetoriais educação, infraestrutura, ação social, instituições de ensino e pesquisa, para planejamento conjunto, realização de ações educativas, exames laboratoriais, avaliação e divulgação do programa C+.
O provimento de educação permanente pela SES/PE foi considerado a fortaleza do programa C+. Não havia recursos específicos, porém o financiamento estadual garantia o desenvolvimento dos planos de ação estabelecidos C+. Para os atores regionais e dos municípios A e B, havia carência estrutural, embora os recursos existentes contribuíssem para o desenvolvimento das ações D.
No que se refere à dimensão Grau de Abertura, os entrevistados reconheceram a fragilidade da coordenação da informação entre as instâncias envolvidas C-. A SES/PE estabeleceu um diagnóstico situacional, visando ao planejamento da intervenção a partir de um centro de referência em controle da esquistossomose; e divulgou o programa para outros entes governamentais, lideranças comunitárias e Conselhos de Saúde C+. Esse diálogo não foi vislumbrado pela RS1: esta o percebia apenas como “cobrança” do nível central, e destacava a articulação frágil entre a Vigilância em Saúde e a Atenção Básica nos municípios C-. A RS2 verificava a mesma situação, porém fomentava o diálogo mediante reuniões de planejamento com os municípios D. Os municípios percebiam a comunicação de setores de suas respectivas secretarias municipais de saúde com instituições como as câmaras de vereadores, e com centros de referência, para planejamento, divulgação de ações e realização de exames laboratoriais C+.
A corresponsabilidade no desenvolvimento das ações foi percebida pela SES/PE, mediante parcerias para o desenvolvimento de tecnologias, destacando-se a proposição de medicações para o tratamento da doença em crianças C+. A RS2 verificava a partilha de ações com o nível estadual, enquanto a corresponsabilidade com os municípios se encontrasse em processo de consolidação: nos municípios todavia descomprometidos, o apoiador institucional estadual realizava as ações para garantir a continuidade do trabalho D. Foi identificada corresponsabilidade da diretoria municipal de planejamento do município A com o programa; e entre a Vigilância em Saúde e a Atenção Básica do município C, na capacitação de agentes comunitários de saúde ACS. No compartilhamento de ações com a sociedade, a SES/PE e a RS1 relataram haver diálogo com os Conselhos de Saúde C+; contudo, apenas no município A foi relatada participação das associações de bairro no planejamento de ações e apresentação do programa SANAR à câmara de vereadores C+.
Como ações pela sustentabilidade, observou-se que o programa se encontrava nos organogramas da SES/PE e do município C. Nestes e também no município A, estava prevista dotação orçamentária para o programa nos Planos Estadual e Municipais de Saúde. O SANAR estava igualmente contemplado na Lei Orçamentária Anual, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco C+. A SES/PE ainda previu, como estratégias de manutenção do programa: captação de recursos; articulação com outros setores estaduais; monitoramento e avaliação; e desenvolvimento de estratégias de educação em saúde, diante do desafio das crenças populares existentes. Constatou-se, no município A, a inserção do geoprocessamento para mapeamento das áreas críticas, ademais de parcerias com outras secretarias do município para discussão da situação ambiental local C+.
Não obstante alguns esforços empreendidos em favor da estabilidade, rotatividade e motivação profissional, foram observadas situações desfavoráveis D: rotatividade de alguns profissionais, devido ao deslocamento de técnicos para exercer cargos políticos RS2; e desmotivação, dadas as dificuldades de infraestrutura município C. Especialmente sobre a motivação profissional, no município A, a garantia da equiparação salarial - até então, apenas 30% dispunham de estabilidade trabalhista - provocou ampla rotatividade de profissionais. Já a equipe estadual, a despeito da carência de profissionais, encontrava-se motivada pelo estímulo a sua qualificação, à realização de pesquisa, obtenção de prêmios e divulgação do programa em mídias de grande circulação.
A legitimidade das ações perante a sociedade foi vista como positiva pela gestão estadual, resultado de ações lúdicas realizadas nas localidades-alvo de tratamento coletivo, com adesão dos indivíduos da própria comunidade e de comunidades vizinhas C+. O município C indicou pouca legitimidade: as ações educativas locais não vinham acompanhadas de melhorias no saneamento C-.
Discussão
Evidenciou-se que a gestão estadual aponta para um contexto convergente à implantação do programa SANAR na maioria das categorias analíticas. Os demais atores assinalaram algumas contradições no discurso dos entrevistados na SES/PE, observando-se parcial coerência entre as respostas dos gestores regionais e as dos municípios localizados nas respectivas regiões. Técnicos e gestores entrevistados reconheciam a relevância do programa, suas atividades e prioridades. Outrossim, os resultados observados nos municípios e nas regionais de saúde foram semelhantes aos de estudos realizados tanto em Pernambuco18 como em âmbito nacional,19 no que toca à carência de profissionais capacitados e dedicados à busca pela qualidade da informação, suficiência de insumos e veículos disponíveis. Apesar dos entraves, o investimento estadual em educação continuada foi amplamente verificado, convergindo positivamente para a implantação das ações de formação - e valorização - do profissional de saúde na divisão de responsabilidades da instituição SANAR.19
O investimento financeiro para realização das ações programáticas apresentou contexto favorável, segundo os entrevistados da SES/PE e do município C, refletindo a classificação ‘implantado’ do componente de vigilância epidemiológica nesse município. Nas demais localidades, A e B, a realização parcial de inquéritos amostrais e a ausência do envio da documentação oficial após a avaliação do tratamento coletivo guardam semelhança com achados de outras pesquisas desenvolvidas nos contextos pernambucano20,21 e mineiro.22 Diferentemente, a subnotificação não foi verificada nos três municípios, que realizavam a digitação periódica dos casos no Sistema de Informação do Programa de Controle da Esquistossomose.
O monitoramento das ações apresentou-se como contexto favorável à implantação do programa, resultado também pontuado por outra pesquisa envolvendo dois municípios da Zona da Mata de Pernambuco.20 Tal achado guarda coerência com a prioridade da gestão estadual, que utiliza metodologia participativa nas práticas de monitoramento, envolvendo os atores estaduais e municipais na implementação de Painéis de Monitoramento. A ação reúne potencial para conferir autonomia municipal:
[...] além de subsidiar a tomada de decisão, o monitoramento é entendido enquanto prática reflexiva capaz de promover o aprendizado pessoal e institucional, melhoria contínua dos processos de gestão, maior transparência e responsabilização.23
Apesar disso, alguns gestores regionais e municipais percebiam o monitoramento como “prestação de contas” e possivelmente seja este um dos motivos da incipiente autonomia técnico-gerencial por eles relatada.
Entretanto, configura-se a existência de alguma autonomia, na medida em que os gestores municipais dialogam com outros setores, aspecto favorável à implantação do programa. Essa articulação intersetorial ganha destaque, dado o potencial de influência positiva da diversidade de abordagens sobre os determinantes sociais da doença. Nesse sentido, merece destaque uma pesquisa publicada em 2015,24 realizada em áreas hiperendêmicas eleitas pelo SANAR - incluindo áreas dos municípios abordados neste estudo -, em que se observou a existência parcial ou nula de água encanada, instalação sanitária, fossa séptica e coleta de tratamento de esgoto. Tal realidade poderia ser diferente, caso houvesse uma articulação intersetorial mais consolidada.19
A interação com instituições de pesquisa, desenvolvida principalmente pela SES/PE e pelo município A, foi alvo de consultoria realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em parceria com a Fundação Instituto Oswaldo Cruz, e que contou com incentivos de órgãos de fomento à realização de estudos sobre as doenças negligenciadas; além de expedições para educação continuada realizadas, entre outros estados, em Pernambuco.25
Já a comunicação intrassetorial entre a Vigilância em Saúde e a Atenção Básica foi vista como um contexto desfavorável, assemelhando-se aos achados de Albuquerque, Mota e Felisberto.18 Associa-se a esse fato a incipiente organização da rede de referência, assim vista pelos três municípios. O planejamento de hospitais de urgência para assistência aos casos graves, acessíveis às áreas endêmicas, favoreceria a integralidade assistencial sem afetar a continuidade de políticas de saúde mais amplas, como o SANAR.26
Lideranças comunitárias devem ter sua participação política garantida nos Conselhos Municipais de Saúde, no planejamento de ações de controle e conscientização sobre o impacto da doença.22 Entretanto, o controle social foi visto de forma tímida na maioria das instâncias abordadas pelo estudo, corroborando, ainda que parcialmente, os achados de Westphal et al.27 quando estes observaram a participação da sociedade na pactuação de agendas de promoção da saúde na região Sudeste do país - apesar de as decisões serem centralizadas pelo poder público. Igualmente relacionadas com a participação comunitária, além de contribuírem para a sustentabilidade do programa devido ao potencial de agregar legitimidade, as ações educativas foram avaliadas pelos três municípios como insatisfatórias. Reforça-se, mais uma vez, a fragilidade da educação em saúde direcionada à esquistossomose, haja vista os erros de grafia, inadequações de nomenclaturas, ilustrações e recomendações, além de incorreções na descrição do ciclo da doença pela maioria dos materiais educativos avaliados por Massara et al.,28 destinados à abordagem de um doença definida pelos mesmos autores como ‘silenciosa e desprezada’.
A avaliação da sustentabilidade apresentou situações convergentes à implantação da intervenção, principalmente nos contextos observados pela SES/PE e pelo município C. Entretanto, a insuficiência e a rotatividade de profissionais foram relevantes enquanto dificuldades nesse sentido. Quanto à rotatividade, Stancato e Zilli29 avaliam a questão como reflexo das condições insatisfatórias de trabalho, da insegurança física, social e emocional, e da desmotivação do profissional. No presente estudo, também houve menção às condições físicas inadequadas; porém, os técnicos e gestores mostraram-se motivados para atuar nas ações de controle da esquistossomose previstas no programa SANAR.
Ressalta-se que esta avaliação é passível de replicação em outros cenários, ademais de poder-se adaptar às doenças negligenciadas em geral: seu delineamento mostra-se adequado à estrutura e composição do Programa de Controle da Esquistossomose PCE como também às diretrizes gerais para controle das demais doenças previstas no Programa de Enfrentamento às Doenças Negligenciadas - SANAR.
Por fim, cabem considerações sobre alguns discursos contraditórios entre os informantes dos diversos níveis de gestão. Além disso, embora o enfoque do artigo tenha se limitado ao ano de 2014 como período de estudo, pesquisas avaliativas de corte transversal podem sofrer a influência do desempenho do programa em anos anteriores.
É evidente que o estudo trouxe informações explicativas sobre as fragilidades e fortalezas das ações de controle da esquistossomose. Dado o reconhecido pioneirismo de o SANAR no Brasil, chama a atenção a possibilidade do presente estudo contribuir para a instituição de políticas públicas brasileiras sustentáveis de enfrentamento das doenças negligenciadas, sobretudo nos serviços de saúde em âmbito municipal.