Introdução
O câncer de pulmão consiste na neoplasia mais diagnosticada no mundo e correspondeu a 11,6% dos casos novos de câncer em 2018. Estima-se que seja a principal causa global de morte por câncer, tendo respondido por 1,8 milhão de óbitos no mesmo ano.1
Dos óbitos masculinos por neoplasia maligna registrados no Brasil em 2015, 15.514 (14%) foram atribuídos ao câncer de pulmão, representando a principal causa de morte por câncer nessa população. Na população feminina, o câncer de pulmão contabilizou 10.978 (11,1%) dos óbitos por câncer e ocupou a segunda posição, atrás do câncer de mama.2
No mundo, embora o total de óbitos por câncer de pulmão observado anualmente seja elevado, estudos têm indicado tendência de queda na mortalidade em homens de diferentes países, com variação percentual anual média entre -3,6 e -1,1% no período de 2007 a 2017. Enquanto isso, tendência inversa ou estabilidade é observada em mulheres.3,4 No Brasil, também é observado comportamento divergente na mortalidade por câncer de pulmão segundo sexo, predominando tendência de queda em homens e crescimento marcante em mulheres.5 Contudo, a heterogeneidade da tendência de mortalidade devida a essa neoplasia, entre regiões e contextos com diferentes níveis de urbanização, é pouco explorada no país.
Variações geográficas e padrões distintos de tendência entre os sexos têm sugerido níveis e estágios diferenciados da epidemia de tabagismo, em subpopulações ao redor do mundo.6 Além do tabagismo, outros fatores importantes estão associados ao câncer de pulmão: susceptibilidade genética, fumo passivo, doença inflamatória preexistente do pulmão e infecções, exposições ocupacionais ao asbesto e radônio, poluição do ar ambiente e queima doméstica de biomassa.7
Informações sobre a incidência do câncer são escassas no Brasil, e a letalidade elevada do câncer de pulmão aproxima os padrões de mortalidade e de incidência. Entretanto, as estatísticas de óbito podem se mostrar particularmente úteis em estudos epidemiológicos, ajudando a compreender a distribuição geográfica e a quantificar a magnitude do câncer de pulmão.
Nesse sentido, melhoria progressiva na qualidade das informações sobre mortalidade vem sendo observada no país. Outrossim, acredita-se que os óbitos por câncer sejam bem declarados no país. Não obstante, erros de codificação e classificação inadequada da variável ‘causa básica’, na Declaração de Óbito (DO), podem ocorrer e comprometer a acurácia dessa informação. São problemas a se levar em conta, ao se analisar estatísticas de câncer com base nas informações de mortalidade.8
O principal objetivo deste artigo foi analisar a tendência de mortalidade por câncer de pulmão em diferentes contextos urbanos no Brasil, no período de 2000 a 2015.
Métodos
Trata-se de um estudo de séries temporais que analisou a mortalidade por câncer de pulmão em homens e mulheres adultos, maiores de 30 anos de idade, de 19 regiões metropolitanas (RMs) e do interior de 14 Unidades da Federação (UFs) onde a RM inclui a capital, no período de 2000 a 2015.
Consideraram-se óbitos por câncer de pulmão os códigos C33 e C34 da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10), relativos a traqueia, brônquios e pulmão. Os dados anuais foram extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), desagregados por sexo e idade, para os municípios das RMs e do interior das UFs das respectivas RMs.
A população residente utilizada no denominador dos coeficientes de mortalidade foi estimada pela Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA), Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo coletada com a mesma estratificação dos óbitos no sítio eletrônico do Datasus.
Foram incluídos os óbitos de residentes de todas as RMs com mais de 1,5 milhão de habitantes em 31 de dezembro de 2015. A designação para RM, empregada genericamente neste estudo, baseia-se no conceito de grandes concentrações urbanas definido pelo IBGE. A terminologia RIDE (Região Integrada de Desenvolvimento) se aplica, basicamente, aos aglomerados urbanos que integram municípios de diferentes UFs.9
A criação de RMs é competência das UFs; no caso de RIDE, essa medida cabe à União. Ambas, RM e RIDE, carecem de legislação específica. Para evitar equívocos na seleção de RMs com alto grau de urbanização, adotou-se o critério do tamanho populacional.
A fim de se controlar e garantir a comparabilidade das RMs no tempo, no que concerne à composição de municípios, procedeu-se à criação de unidades geográficas minimamente comparáveis, com base na matriz de 409 municípios que integravam as 19 RMs avaliadas em 2015. Destarte, as potenciais variações nas séries temporais não seriam atribuídas às alterações na composição de municípios dessas RMs.
Quando agrupados, os municípios do interior das UFs formaram 14 unidades geográficas distintas, servindo de comparação entre áreas densamente populosas, urbanizadas e economicamente desenvolvidas, representadas pelas RMs, com regiões menos urbanizadas do território (interior).
O estado de São Paulo contou com cinco RMs: Campinas; São Paulo (capital); Sorocaba; Vale do Paraíba; e Litoral Norte. Somente os municípios da RM de São Paulo foram excluídos para reconstituir o interior desse estado. Os demais municípios paulistas foram tratados como interior, servindo de contraste para a RM da capital.
Afinal, o estudo totalizou 33 unidades geográficas de análise, agrupadas em RMs e interior de UFs. As RMs estão apresentadas em ordem decrescente de tamanho populacional, conforme apresentadas a seguir: São Paulo; Rio de Janeiro; Belo Horizonte; RIDE Distrito Federal e Entorno; Porto Alegre; Fortaleza; Salvador; Recife; Curitiba; Campinas; Manaus; Vale do Paraíba e Litoral Norte; Goiânia; Belém; Grande Vitória; Sorocaba; Baixada Santista; Grande São Luís; e Natal.
As unidades geográficas do segundo grupo são formadas por municípios do interior das UFs, na seguinte ordem decrescente de população: São Paulo; Minas Gerais; Bahia; Paraná; Rio Grande do Sul; Pará; Maranhão; Pernambuco; Ceará; Rio de Janeiro; Goiás; Espírito Santo; Rio Grande do Norte; e Amazonas.
No sentido de aprimorar as estimativas de tendência, efetuou-se a correção da causa básica do óbito, conforme detalhado mais adiante. Adotou-se a estratégia utilizada pela OMS e métodos do relatório de pesquisa, o qual considerou aspectos clínicos e histológicos da neoplasia maligna de pulmão.10,11
Foram averiguadas as informações ignoradas sobre sexo e idade dos óbitos. Observou-se que a ocorrência de informações ignoradas não impactaria os coeficientes quando desagregados por ano, grupo etário, sexo e local de residência, uma vez que apenas 182 óbitos por câncer de pulmão registrados no SIM, no período considerado (0,056%), não dispunham de informação para as variáveis ‘sexo’ ou ‘idade’. Portanto, não houve necessidade de realizar a imputação desses óbitos. Isto posto, utilizou-se a seguinte fórmula, para cálculo dos fatores de correção utilizados no processo:
Logo, realizou-se a redistribuição proporcional das causas mal definidas, segundo sexo, unidade geográfica e grupo etário quinquenal a partir de 30 anos. Foram consideradas causas mal definidas: (i) Capítulo XVIII da CID-10 (Sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em outra parte [códigos da CID-10: R00 a R99]); (ii) Morte súbita de origem cardíaca (código I46.1); (iii) Parada cardíaca não especificada (I46.9); (iv) Hipotensão não especificada (I95.9); (v) Insuficiência respiratória aguda (J96.0); (vi) Insuficiência respiratória não especificada (J96.9); e (vii) Insuficiência respiratória do recém-nascido (P28.5).
Na etapa subsequente, procedeu-se à redistribuição dos chamados ‘códigos-lixo’ (em inglês, garbage) 12 conforme esquema apresentado na Figura 1.
a) CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão.
b) Distribuição apenas do que excedeu 5% dos óbitos que tiveram esta CID como causa básica.
Fonte: Esquema adaptado de Silva GA et al.
Destaca-se que os óbitos registrados na variável ‘causa básica’ com o código C80 - Neoplasia maligna, sem especificação de localização - foram redistribuídos desconsiderando-se 5% desse total, visto que uma proporção equivalente das neoplasias malignas é de natureza não especificada.13
Após a correção, calcularam-se os coeficientes anuais brutos de mortalidade por câncer de pulmão para as 33 unidades a serem analisadas, segundo sexo e grupo etário de 30 anos ou mais. Logo, esses coeficientes foram padronizados por idade com base na população-padrão do Brasil estimada para 2010, segundo a projeção populacional do IBGE.14
Comparativamente, foi calculada a razão dos coeficientes padronizados: RM no numerador e interior da UF no denominador. A evolução temporal da razão dos coeficientes foi verificada segundo sexo, nas 14 UFs selecionadas.
Para analisar a tendência temporal da mortalidade por câncer de pulmão, segundo sexo e unidade geográfica, ajustou-se um modelo de tendência linear definido pela fórmula
com erros autorregressivos de primeira ordem e parâmetros estimados pelo método de máxima verossimilhança gaussiana.
Também foram calculados os intervalos de confiança de 95% (IC95%) para os coeficientes β 1. Os coeficientes β 1 representam a variação média anual dos coeficientes de óbito e variam conforme o grau de inclinação da reta. Valores positivos de β 1 indicam aumento dos coeficientes no período de estudo e apresentam uma reta crescente; valores negativos, por sua vez, redução dos coeficientes e inclinação decrescente.
Os termos de erro para regressão em séries temporais costumam ser correlacionados, necessitando de modelagem da autocorrelação.15 Para satisfazer o modelo em questão, verificaram-se as suposições sobre os resíduos quanto à distribuição normal, média zero, variância constante e independência. Em seguida, realizou-se o ajuste do modelo para a série de resíduos Ɛt, sendo
O projeto desta pesquisa não careceu de apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP), porque sua realização se baseia em dados secundários, sem possibilidade de identificação individual, conforme preconiza a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
O coeficiente de mortalidade geral por câncer de pulmão nas regiões-objeto do estudo foi de 28,4/100 mil hab. em 2000 e 25,6/100 mil hab. em 2015. Nas mesmas regiões, a população na idade de 30 anos ou mais somou 80.313.347 habitantes em 2010, representando 85,9% da população brasileira no mesmo grupo etário.
A mortalidade por câncer de pulmão foi maior em homens do que em mulheres, nos 16 anos avaliados. No primeiro ano da série, os coeficientes em homens variaram de 4,9/100 mil hab. no interior do Maranhão a 109,6/100 mil hab. na RM Porto Alegre. Em 2015, o risco de óbito por essa causa na população masculina variou de 16,3/100 mil hab. no interior da Bahia a 74,3/100 mil hab. na RM Porto Alegre. Em 2015, notou-se o mesmo padrão observado no ano 2000, quanto à magnitude dos coeficientes por localidade (Tabela 1).
a) UF: Unidade da Federação.
b) RM: região metropolitana.
c) Região metropolitana sem unidade geográfica complementar.
Nas mulheres, o coeficiente de mortalidade por câncer do pulmão no ano 2000 variou de 2,1/100 mil hab. no interior do Maranhão a 31,4/100 mil hab. na RM Porto Alegre; em 2015, a variação desse coeficiente na população feminina foi de 9,8/100 mil hab. no interior da Bahia a 36,1/100 mil hab. na RM Porto Alegre (Tabela 1). No mesmo ano de 2015, os dez maiores coeficientes entre as mulheres variaram de 22,8/100 mil hab. na RM Grande São Luís a 36,1/100 mil hab. na RM Porto Alegre, dois deles verificados no interior: Rio Grande do Sul (30,4/100 mil hab.) e Paraná (23,2/100 mil hab.) (Tabela 1).
A Figura 2 mostra a evolução temporal da razão de coeficientes padronizados de mortalidade entre RM e interior da UF, ao longo dos anos. Em homens, verificou-se que os coeficientes nas RMs foram até 9,3 vezes maiores do que os do interior da UF correspondente (RM Grande São Luís/interior do Maranhão, 2002).
Em mulheres, a discrepância entre RM e interior segue padrão semelhante ao masculino, atingindo principalmente as regiões Norte e Nordeste do país. Contudo, a evolução temporal das razões sugere que a disparidade em homens tende a diminuir ao longo do tempo, com mais força que em mulheres. A maior diferença em mulheres foi observada em 2004: coeficiente 9,1 vezes maior na RM Manaus, frente ao interior do estado (Figura 2).
Na análise temporal dos coeficientes de mortalidade por câncer de pulmão em homens, observou-se predomínio de tendência declinante em RMs. A média de redução anual dos coeficientes de óbito foi sutil na RM Recife (β1=-0,63 - IC95%-1,02;-0,24) e mais acentuada na RM Porto Alegre (β1=-2,55 - IC95%-2,79;-2,31). Entretanto, tendência de aumento foi observada em oito unidades geográficas do Norte e Nordeste. O maior aumento médio anual dos coeficientes foi observado no interior do Rio Grande do Norte (β1=1,03 - IC95%0,47;1,58). A RM Fortaleza foi a única RM a apresentar tendência de aumento (β1=0,48 - IC95%0,20;0,75). Discreto incremento também foi notado no interior de Minas Gerais (β1=0,09 - IC95%0,01;0,17) (Figura 3).
Notadamente em mulheres, prevaleceu tendência de crescimento médio anual dos coeficientes de mortalidade, observada em 20 das 33 unidades avaliadas. Os maiores coeficientes foram verificados na região Nordeste, com destaque para o interior do Ceará (β1=0,86 - IC95%0,79;0,92), seguido de sua RM Fortaleza (β1=0,78 - IC95%0,59;0,96). Crescimento menos expressivo foi observado no estado do Rio de Janeiro (β1=0,20 - IC95%0,12;0,28). Tendência decrescente não foi verificada em mulheres (Figura 3). Para observação de mais coeficientes, ver Tabela 2.
Unidade geográfica | Homens | Mulheres | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Beta | Limite inferior | Limite superior | Beta | Limite inferior | Limite superior | ||
Interior do estado | Amazonas exceto RM Manaus | 0,61 | 0,32 | 0,90 | 0,33 | 0,17 | 0,50 |
Bahia exceto RM Salvador | 0,48 | 0,35 | 0,60 | 0,39 | 0,35 | 0,43 | |
Ceará exceto RM Fortaleza | 0,78 | 0,65 | 0,91 | 0,86 | 0,79 | 0,92 | |
Espírito Santo exceto RM Grande Vitória | -0,27 | -0,66 | 0,12 | 0,24 | 0,09 | 0,39 | |
Goiás exceto RM Goiânia | 0,19 | -0,07 | 0,45 | 0,13 | -0,05 | 0,31 | |
Maranhão exceto RM Grande São Luís | 1,01 | 0,81 | 1,21 | 0,66 | 0,58 | 0,74 | |
Minas Gerais exceto RM Belo Horizonte | 0,09 | 0,01 | 0,17 | 0,24 | 0,19 | 0,28 | |
Pará exceto RM Belém | 0,86 | 0,52 | 1,20 | 0,46 | 0,30 | 0,62 | |
Paraná exceto RM Curitiba | -0,67 | -0,81 | -0,54 | 0,07 | -0,07 | 0,21 | |
Pernambuco exceto RM Recife | 0,81 | 0,65 | 0,96 | 0,62 | 0,50 | 0,75 | |
Rio de Janeiro exceto RM Rio de Janeiro | -0,89 | -1,04 | -0,74 | 0,20 | 0,12 | 0,28 | |
Rio Grande do Norte exceto RM Natal | 1,03 | 0,47 | 1,58 | 0,66 | 0,57 | 0,75 | |
Rio Grande do Sul exceto RM Porto Alegre | -2,04 | -2,27 | -1,82 | 0,31 | 0,22 | 0,40 | |
São Paulo exceto RM São Paulo | -1,02 | -1,21 | -0,83 | 0,21 | 0,15 | 0,26 | |
Região metropolitana (RM) | RIDE Distrito Federal | -0,84 | -1,19 | -0,49 | 0,10 | -0,06 | 0,27 |
RM Baixada Santista | -1,51 | -1,82 | -1,19 | 0,36 | 0,13 | 0,59 | |
RM Belém | -1,23 | -1,55 | -0,91 | -0,26 | -0,61 | 0,08 | |
RM Belo Horizonte | -0,78 | -1,01 | -0,55 | 0,08 | -0,02 | 0,17 | |
RM Campinas | -1,30 | -1,82 | -0,77 | 0,07 | -0,04 | 0,18 | |
RM Curitiba | -1,17 | -1,70 | -0,65 | -0,12 | -0,26 | 0,01 | |
RM de Sorocaba | -1,24 | -1,48 | -1,00 | 0,06 | -0,28 | 0,40 | |
RM do Vale do Paraíba e Litoral Norte | -1,20 | -1,51 | -0,90 | 0,24 | 0,09 | 0,39 | |
RM Fortaleza | 0,48 | 0,20 | 0,75 | 0,78 | 0,59 | 0,96 | |
RM Goiânia | 0,08 | -0,30 | 0,46 | 0,27 | 0,12 | 0,42 | |
RM Grande São Luís | 0,25 | -0,24 | 0,73 | 0,30 | 0,06 | 0,55 | |
RM Grande Vitória | -0,96 | -1,19 | -0,74 | -0,14 | -0,32 | 0,04 | |
RM Manaus | -0,89 | -1,38 | -0,40 | -0,05 | -0,32 | 0,21 | |
RM Natal | 0,09 | -0,84 | 1,02 | 0,37 | 0,14 | 0,60 | |
RM Porto Alegre | -2,55 | -2,79 | -2,31 | 0,37 | 0,15 | 0,59 | |
RM Recife | -0,63 | -1,02 | -0,24 | 0,28 | 0,12 | 0,44 | |
RM Rio de Janeiro | -2,07 | -2,20 | -1,94 | 0,06 | -0,03 | 0,16 | |
RM Salvador | -0,75 | -0,93 | -0,57 | 0,13 | 0,00 | 0,27 | |
RM São Paulo | -1,76 | -2,03 | -1,48 | 0,01 | -0,07 | 0,09 |
a) Tendência linear dos coeficientes de mortalidade por câncer de pulmão padronizadas pela população-padrão do Brasil (2010), realizada após correção do banco de óbitos.
Discussão
A tendência temporal de mortalidade por câncer de pulmão na população masculina foi declinante em 15 RMs. Ao mesmo tempo, verificou-se aumento significativo no interior de nove UFs, predominantemente nas regiões Norte e Nordeste. Nas RMs de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, verificaram-se quedas importantes em homens, não em mulheres. No sexo feminino, foi observado aumento nessa mortalidade em 20 unidades analisadas, sendo 8 RMs: Fortaleza, Natal, Porto Alegre, Baixada Santista, Grande São Luís, Recife, Goiânia, Vale do Paraíba e Litoral Norte. Nas unidades geográficas restantes, verificou-se situação de estabilidade.
Estima-se que o câncer de pulmão tenha representado 2,3% do total de óbitos ocorridos no Brasil em 2016, representando a principal causa de morte por neoplasias malignas.16 Todavia, o aumento dos óbitos ao longo do tempo pode ser atribuído, ainda que parcialmente, ao crescimento e envelhecimento proporcional da população brasileira.
Estudo recente identificou queda de 12% no coeficiente de mortalidade por câncer de pulmão entre 1990 e 2015, no país. Mesmo assim, o coeficiente de mortalidade por câncer de pulmão foi o segundo maior entre as neoplasias malignas no sexo masculino. Em mulheres, ascensão expressiva de 20,7% no coeficiente foi relatada no período, destacando o câncer de pulmão como a segunda maior causa de morte por neoplasias no grupo feminino, precedida do câncer de mama.17
O aumento da mortalidade por câncer de pulmão em homens de capitais do Nordeste e a queda, iniciada em meados dos anos 1990, nas demais capitais, já foram relatados anteriormente,18 assim como o comportamento distinto da mortalidade entre interior e capitais.19
A identificação reiterada de um padrão irregular, especialmente desfavorável na mortalidade por essa neoplasia, com evidências de disparidade geográfica, sugere a necessidade de maior esforço da vigilância para garantir que programas de controle dos fatores de risco da doença alcancem, igualmente, toda a população, impactando positivamente o cenário analisado.
Foi o interior dos estados do Norte e Nordeste onde, efetivamente, verificou-se tendência de aumento, enquanto algumas RMs dessas regiões apresentaram estabilidade ou declínio da mortalidade por câncer de pulmão. Mesmo considerando-se a dificuldade diagnóstica nesses locais, os achados deste estudo, possivelmente, indicam que a epidemia de tabagismo tenha ocorrido mais tardiamente naquelas regiões, na comparação com o restante do Brasil.20
Os padrões de tendência observados em RMs foram análagos àqueles descritos para as capitais brasileiras.19 Parece razoável concluir que as capitais, em detrimento dos municípios periféricos, têm importante influência sobre o padrão de mortalidade por câncer de pulmão observado nas RMs, onde o polo urbano é a capital da UF.
O contraste entre RM e interior da UF foi perceptível na magnitude dos coeficientes e comportamento da tendência. Quatro unidades geográficas do interior - dos estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo - apresentaram tendência favorável, embora somente em sua população masculina.
Esse contraste deve ser visto com cautela. Dessemelhanças na prevalência de tabagismo e nos níveis de contaminação do ar entre RM e interior explicariam apenas parte dessas diferenças. As RMs tendem a dispor de sistema de notificação de mortalidade mais estruturado e robusto do que localidades do interior, levando à subestimação de coeficientes nestas últimas.
É possível que o acesso a serviços de saúde para diagnóstico e tratamento do câncer e a influência dos programas de controle do tabagismo sejam desiguais não só entre regiões do país, como também dentro da mesma UF. Residentes de áreas desenvolvidas socioeconomicamente costumam ter acesso a recursos de saúde e políticas de prevenção e controle do câncer que nem sempre alcançam populações interioranas, periféricas e menos favorecidas.21
Já nos países de renda alta, os coeficientes de mortalidade por câncer de pulmão tendem a ser superiores, quando comparados aos encontrados em nações pobres. Considerado consequência da “ocidentalização”, o efeito observado em populações desenvolvidas estaria relacionado a maiores índices de tabagismo e poluição do ar.3 Similarmente, coeficientes mais elevados de mortalidade por câncer de pulmão são referidos em áreas urbanas, comparadas com áreas rurais.22
O contraponto na mortalidade em países com diferentes níveis de desenvolvimento poderia ser extrapolado para a realidade brasileira, ao se comparar RM e interior, ou diferentes regiões do país: encontrou-se maior magnitude da mortalidade por essa forma de neoplasia nas RMs, em relação ao interior, e, do mesmo modo, nas regiões Sul e Sudeste, frente ao Norte e Nordeste. A desigualdade regional parece também afetar a sobrevida no Brasil: diferenças geográficas de até duas vezes na sobrevida, sem ajuste por tipo histológico, já foram reportadas.4
Tendência de aumento em mulheres - a uma velocidade expressiva - no interior do Nordeste reforça a evidência de que a epidemiologia do câncer de pulmão pode apresentar características distintas entre os sexos, influenciada por fatores hormonais, genéticos, ambientais e comportamentais.23
O declínio dessa neoplasia em homens e o aumento ou estabilidade em mulheres configuram um padrão encontrado em diferentes partes do mundo. Essa tendência estaria relacionada, principalmente, com o aumento do tabagismo entre as mulheres verificado em anos recentes.20 Também no Brasil, essa diferença pelo sexo vem diminuindo desde os anos 1980, atribuída a variações na prevalência de tabagismo e na exposição ao fumo passivo. Neste aspecto, cumpre descartar a maior dificuldade das mulheres em abandonar o hábito de fumar.24
Estima-se que 15% dos fumantes desenvolverão câncer de pulmão. Porém, de 85 a 90% dos casos são decorrentes do fumo.25 Principal fator de risco para câncer de pulmão, o tabagismo tem sido enfrentado com bons resultados no Brasil desde a década de 1980. Pautadas em metas de redução das doenças crônicas não transmissíveis e da prevalência do tabagismo, medidas regulatórias e políticas de controle têm-se intensificado no país desde os anos 2000.26,27
O longo período de latência, de aproximadamente 30 anos, compreendido entre exposição ao tabaco e derivados e ocorrência com morte subsequente por câncer de pulmão, faz com que o impacto causado pelo declínio na prevalência do tabagismo sobre a mortalidade seja tardio. Inquéritos nacionais sobre a proporção de fumantes atuais com 18 anos ou mais de idade mostraram variação percentual negativa de 37,4% em homens contra 31,9% em mulheres, entre 1989 e 2003. De 2003 a 2013, contudo, a queda na prevalência de tabagismo foi mais pronunciada em mulheres (-40,2%) do que em homens (-30,3%).28
Dessa maneira, a epidemia de tabagismo no Brasil, ocorrida primeiramente em homens e posteriormente em mulheres, iniciada na década de 1970, pode explicar parte das diferenças observadas na tendência de mortalidade entre os sexos.24
A expansão do tabagismo no país, destacadamente entre mulheres, variou em função da região geográfica, passando por um processo de interiorização a partir das capitais. Por esse fato, acredita-se que a mortalidade em mulheres seguirá crescendo nos próximos anos, tanto nas capitais e regiões mais urbanizadas como no interior.
A despeito das falhas relacionadas à qualidade de preenchimento das declarações de óbito, DO, altas proporções de óbitos por causas mal definidas e diagnósticos inespecíficos - os códigos-lixo - sinalizam problemas de acesso, assistência e capacidade diagnóstica dos serviços de saúde para a população.
Apesar da redução observada no volume de óbitos com causa básica mal definida, a variabilidade na proporção desses óbitos entre ou intrarregiões e estados é esperada no Brasil.19 Enquanto a proporção de causas mal definidas foi menor do que 1% no Distrito Federal em 2013, no Amazonas foi de aproximadamente 13%.2
Essa diferença pode alterar a real magnitude dos coeficientes de mortalidade por causa específica e introduzir erros nas análises e comparações entre localidades.
Uma limitação deste estudo é inerente ao uso de dados secundários. Contudo, para melhorar a qualidade da informação, optou-se pela correção dos óbitos, aumentando a confiabilidade na causa básica de morte sem incorrer em superestimação dos casos. Sabe-se que os registros de óbitos em capitais são de melhor qualidade, comparados aos de municípios do interior; o mesmo pode-se dizer dos centros urbanos, frente às periferias. Por isso a correção foi aplicada às RMs, já que estas não englobam só o município-polo, normalmente a capital, senão também os municípios periféricos. A correção também foi empregada no interior.
Logo, é improvável que a tendência crescente observada em mulheres decorra do aprimoramento da qualidade dos registros de óbito ao longo dos anos, posto que não haveria motivo ou justificativa para a melhoria desigual dos dados entre homens e mulheres.
Apesar da perspectiva futura de identificação de novos biomarcadores moleculares, bem como do desenvolvimento de drogas de terapia-alvo e tecnologias modernas para diagnóstico e tratamento do câncer, existe uma imposição de aumento dos custos sobre os sistemas de saúde que dificilmente são viáveis ou estão disponíveis para toda a população. Em face disso, presume-se que os avanços citados e o aumento na sobrevida levarão certo tempo até se reduzir a mortalidade por câncer.
Recentemente, entidades internacionais passaram a recomendar o rastreamento do câncer de pulmão para grupos de risco aumentado, com o objetivo de reduzir a carga de mortalidade.29,30 No Brasil, essa discussão precisa ser ampliada e pacificada entre os especialistas, considerando-se novas possibilidades de enfrentamento desse importante problema de Saúde Pública sem que haja prejuízos para a bem-sucedida política brasileira antitabagismo.
A dinâmica de mortalidade por câncer de pulmão em curso é complexa, e representa um grande desafio para o SUS. Ações para redução da mortalidade permanecem centradas na prevenção do tabagismo. No mesmo sentido, sugere-se a implementação e reforço das estratégias de controle do tabagismo no interior do país, com atenção especial às mulheres.
O estudo avaliou, de modo abrangente, a tendência de mortalidade por câncer de pulmão em contextos, níveis de urbanização e desenvolvimento variados no Brasil. Os achados evidenciaram não existir padrão único de mortalidade por câncer de pulmão no país. Em homens, predominou tendência declinante da mortalidade. Todavia, as regiões interioranas do Norte e Nordeste ainda mostram tendência de aumento nessa população. Em mulheres, prevaleceu tendência crescente dos coeficientes de mortalidade. Também no interior das regiões Norte e Nordeste, foram observados os maiores incrementos nesse grupo.