A COVID-19, doença que emergiu na China, no final de 2019, rapidamente se espalhou pelos cinco continentes e foi declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020. O enfrentamento desta doença totalmente nova demanda a produção de conhecimento epidemiológico e clínico, assim como o desenvolvimento de testes diagnósticos, tratamentos e vacinas. Nesse contexto, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico devem ser priorizados, assim como a rápida divulgação de seus resultados.(1)
A literatura científica relacionada à COVID-19 apresentou crescimento exponencial, acompanhando a evolução do número de casos e óbitos pela doença no mundo. De janeiro a meados de maio de 2020, a literatura sobre COVID-19 incluiu 31 mil artigos, e se aproximou de 50 mil na metade de junho.(2)
Contudo, pesquisas sobre a COVID-19 que incorporem a perspectiva de sexo, gênero e raça são escassas, apesar das evidências de que estas características desempenham papel expressivo na conformação dos riscos de doença, morte e outros danos associados. Iniciativas internacionais, como a liderada pela organização GENDRO, chamam a atenção para esse fato, e clamam por um compromisso renovado com a pesquisa sensível ao gênero e a outras dimensões de desigualdade para a equidade em saúde e os direitos humanos no contexto da pandemia da COVID-19.(3) Tais iniciativas alinham-se às diretrizes sobre Equidade de Sexo e Gênero em Pesquisa (Sex and Gender Equity in Research – SAGER) que, entre outros aspectos, enfatizam o papel de todos os envolvidos na pesquisa e na publicação científica – incluindo-se pesquisadores, editores, revisores e financiadores – para a promoção da equidade, em benefício de toda a sociedade.(4)
Ademais, estudos têm evidenciado o acirramento das desigualdades de sexo e gênero na pesquisa e na publicação científica no contexto da pandemia. Em periódicos médicos, foi observada baixa representação de mulheres como primeiras autoras de artigos sobre COVID-19 publicados em março e abril de 2020.(6) Nesses meses, autoras do sexo feminino publicaram menos artigos nos servidores de preprints, em comparação ao mesmo período do ano anterior,(7) e o número de autores do sexo masculino cresceu mais rapidamente que do feminino.(8) Além das causas preexistentes de tais desigualdades, principalmente relacionadas ao sexismo, tem sido relatada menor dedicação das mulheres ao desenvolvimento de suas pesquisas, em decorrência do aumento do tempo com a realização de atividades domésticas e de cuidado durante o isolamento, especialmente entre as mulheres que têm filhos em casa.(9)
A raça/cor da pele de pesquisadores e autores não é facilmente identificável a partir das informações publicadas nos artigos. Todavia, é conhecida a sub-representação da população negra e o racismo na ciência.(10) Tal situação tem sido evidenciada na onda de protestos contra o racismo em resposta às mortes de homens negros por policiais nos Estados Unidos, em junho de 2020.(11) É importante reconhecer que as mulheres negras enfrentam desafios ainda maiores e desenvolver ações estruturais que apoiem sua participação na pesquisa e na publicação científica.(9)
A participação limitada de mulheres e de pessoas negras na condução de pesquisas sobre a COVID-19 pode alterar a ênfase em aspectos relevantes para populações específicas.(7) Garantir sua presença é fundamental para o enfrentamento à pandemia, uma vez que tais minorias na academia relatam, com maior frequência, resultados de pesquisa desagregados por sexo, gênero e raça. Isso contribui para melhorar a compreensão dos aspectos clínicos e epidemiológicos da COVID-19, particularmente face a evidências de disparidades segundo sexo e raça na incidência, na mortalidade e nos impactos socioeconômicos da doença.(12)
O Brasil é um país marcado por grandes iniquidades sociais e regionais, que se sobrepõem a desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Nesse contexto, é ainda mais importante investigar aspectos da pandemia que possam levar ao recrudescimento das disparidades existentes. A Epidemiologia e Serviços de Saúde: revista do Sistema Único de Saúde do Brasil reitera seu compromisso com a equidade de sexo, gênero e raça na pesquisa e na publicação científica, reforçando que as pesquisas clínicas e epidemiológicas sobre a COVID-19, assim como aquelas sobre o impacto social, econômico e de direitos humanos da pandemia, devam ser desenhadas, conduzidas e relatadas de modo a se considerarem sistematicamente o sexo, o gênero, a raça e outras dimensões de desigualdade.