Introdução
Desde meados do século XIX, os níveis e padrões da mortalidade por sexo têm-se modificado.1 Os avanços tecnológicos relacionados à saúde, assim como as melhorias na qualidade de vida, têm conduzido à diminuição da mortalidade e aos ganhos de longevidade.2 Entre os vários fenômenos que acompanham esse processo de transição, destaca-se a produção de diferenciais de mortalidade entre subgrupos populacionais3 e a predominância dos óbitos por doenças crônicas não transmissíveis, conhecidas pela sigla DCNT.4
A tendência de não uniformidade na queda histórica da mortalidade tem gerado diferenciais entre os sexos. Todos os países do mundo, praticamente, referem sua mortalidade masculina superior à feminina, enquanto a esperança de vida, em todas as idades, normalmente é maior entre as mulheres.1 No intuito de explicar os melhores indicadores femininos, aspectos sociais, comportamentais e biológicos têm sido valorizados.1
Mesmo diante dessas diferenças, a contínua queda da mortalidade tem contribuído para que homens e mulheres sobrevivam por mais tempo e alcancem idades avançadas, tanto nos países de renda alta como naqueles de renda média e baixa.2 Em 2010, as doenças não transmissíveis foram responsáveis por 73,9% dos óbitos registrados no Brasil;7 especialmente as doenças cardiovasculares, neoplasias e causas externas têm ocupado as primeiras posições no perfil de mortalidade geral do país.7
Observa-se ainda, conforme os níveis de esperança de vida se aproximavam daqueles experimentados pelos países de renda alta, redução no ritmo desse processo de convergência, no Brasil.2 Este fenômeno tem sido observado, primeiramente, porque já não há muito espaço para ganhos em esperança de vida com a redução dos óbitos por doenças infecciosas e parasitárias, e em segundo lugar, como consequência da ascensão das DCNT, fruto de comportamentos associados ao alcoolismo e ao tabagismo, entre outros fatores.2
Nos países de renda alta, a queda da mortalidade nas idades mais avançadas, resultado das campanhas de prevenção e oferta de novos tratamentos, contribuiu para que a esperança de vida experimentasse novos ganhos, alcançando níveis mais elevados.5 No caso brasileiro, também é possível pensar em um cenário de ganhos potenciais de esperança de vida, uma vez que parte das causas de óbito são consideradas evitáveis, ou seja, preveníveis, parcial ou totalmente, com uma adequada atenção à saúde.9
O objetivo do estudo foi estimar o ganho potencial e as diferenças de esperança de vida entre homens e mulheres, caso os óbitos evitáveis por doenças do aparelho circulatório, neoplasias e causas externas fossem eliminados no município de São Paulo, SP, Brasil, nos anos de 2014 a 2016.
Métodos
Estudo transversal dos óbitos evitáveis por causas externas, neoplasias e doenças do aparelho circulatório, na população com idades entre 5 e 74 anos de idade, ocorridos no município de São Paulo, entre 2014 e 2016.
As informações sobre os óbitos foram coletadas no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), fornecidas pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM).10 A população paulistana na metade do ano de referência, estratificada por grupos de idade e sexo, resultou de estimativas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponibilizadas no sítio eletrônico do Datasus.11 A cobertura do registro de óbitos do município de São Paulo é considerada completa desde 1940,12 o que justifica a escolha do município para este estudo.
Os dados utilizados neste trabalho consistiram do número total de óbitos por causas evitáveis e do número total de óbitos por todas as causas, descritas nos três capítulos da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10)13 descritos a seguir:
Na Figura 1, é apresentada a composição dos grupos de causas de morte selecionadas, de acordo com a classificação da ‘Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil’, para indivíduos de idades entre 5 e 74 anos.9
Fonte: ‘Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil’.(9)
Com o propósito de verificar o padrão etário do diferencial de mortalidade entre os sexos, por causa de óbito, foi calculada a razão entre as taxas específicas de mortalidade masculina e feminina. Essa medida faz um comparativo de mortalidade entre homens e mulheres:1 a razão acima de 1 indica que os homens estão experimentando um risco de mortalidade superior ao das mulheres do mesmo grupo etário; um resultado menor que 1 sugere que as mulheres estão em desvantagem na mortalidade; e o resultado igual a 1 sugere que ambos os sexos apresentam o mesmo risco de morte.
Em seguida, para analisar o impacto dos óbitos evitáveis na probabilidade de morte e na esperança de vida, foram calculadas tábuas de vida de múltiplo decremento para homens e mulheres.14Esta análise foi realizada excluindo-se um grupo de causa de morte de cada vez, considerando-se apenas os óbitos evitáveis para indivíduos de 5 a 74 anos. A média dos óbitos ocorridos entre os anos de 2014 e 2016 foi utilizada como numerador dastaxas específicas de mortalidade, com a finalidade de diminuir o impacto de flutuações aleatórias.
A abordagem empregada na tábua associada a um único decremento assume que a função da força de mortalidade pela causa i é proporcional à função da força de decremento por todas as causas combinadas no intervalo etário x a x+n.14 A diferença entre a esperança de vida total, à exata idade x, e a esperança de vida à exata idade x, com a exclusão de um grupo de causas de óbito i, permite avaliar o ganho potencial do indicador após a eliminação de cada causa.14
Por último, foram obtidas as diferenças relativas entre as probabilidades de morte bruta e líquida. A primeira refere-se à probabilidade de morte no grupo etário, considerando-se todas as causas de óbito; e a segunda diz respeito à nova probabilidade de morte do grupo etário, após a eliminação do grupo de causas de óbito selecionado.14
A análise foi feita com uso do software Microsoft Excel 2016. Este trabalho foi realizado com base nos princípios éticos definidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Foi utilizado banco de dados secundário, de domínio público, sem dados nominais que permitissem a identificação dos sujeitos, não sendo necessário, portanto, registro e avaliação pelo sistema do Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP).
Resultados
De 2014 a 2016, dos 81.087 óbitos por neoplasias, doenças do aparelho circulatório e causas externas ocorridos no município de São Paulo, 60.919 (75%) foram classificados como evitáveis. Entre todos os 29.573 óbitos registrados por neoplasias em São Paulo no período estudado, 61% (18.168) foram classificados como evitáveis, dos quais aproximadamente 50% femininos e 50% masculinos. Para os 37.377 óbitos por doenças do aparelho circulatório, 77% (28.663) se enquadraram na lista de causas de morte evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde (SUS), e destes, 62% eram óbitos masculinos e 38% femininos. Para as mortes por causas externas, as diferenças revelaram-se mais marcantes, todavia: 99,7% dos 14.137 óbitos por essas causas foram considerados evitáveis, 84% deles masculinos (Tabela 1). Ficou evidente que a mortalidade evitável foi significativamente maior entre os homens, frente às mulheres, para todas as causas estudadas.
Causas de mortes | Óbitos | Proporção (%) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | Total | Masculino | Feminino | ||
Neoplasias (N) | Evitáveis | 9.177 | 8.991 | 18.168 | 50,51 | 49,49 |
Não evitáveis | 5.849 | 5.556 | 11.405 | 51,28 | 48,72 | |
Total | 15.026 | 14.547 | 29.573 | 50,81 | 49,19 | |
Doenças do aparelho circulatório (AC) | Evitáveis | 17.744 | 10.919 | 28.663 | 61,91 | 38,09 |
Não evitáveis | 5.202 | 3.512 | 8.714 | 59,70 | 40,30 | |
Total | 22.946 | 14.431 | 37.377 | 61,39 | 38,61 | |
Causas externas (CE) | Evitáveis | 11.798 | 2.290 | 14.088 | 83,75 | 16,25 |
Não evitáveis | 39 | 10 | 49 | 79,59 | 20,41 | |
Total | 11.837 | 2.300 | 14.137 | 83,73 | 16,27 | |
(N) + (AC) + (CE) | Evitáveis | 38.719 | 22.200 | 60.919 | 63,56 | 36,44 |
Não evitáveis | 11.090 | 9.078 | 20.168 | 54,99 | 45,01 | |
Total | 49.809 | 31.278 | 81.087 | 61,43 | 38,57 |
Melhores resultados do sexo feminino foram observados não só na distribuição dos óbitos, mas também no risco de morte, representado pela razão entre os coeficientes de mortalidade (Tabela 2). O risco de morte dos homens foi superior ao das mulheres em praticamente todas as idades e grupos de causas evitáveis. A única exceção coube às faixas etárias de 25 a 49 anos, em que mulheres apresentaram um risco de morte superior ao dos homens, por neoplasias evitáveis.
Faixa etária (em anos) | Razao de sexo entre as taxas específicas de mortalidade | ||
---|---|---|---|
Neoplasias | Doenças do aparelho circulatório | Causas externas | |
5-9 | 1,61 | 1,28 | 1,09 |
10-14 | 1,12 | 1,12 | 2,45 |
15-19 | 1,81 | 3,22 | 9,75 |
20-24 | 1,18 | 3,10 | 8,12 |
25-29 | 0,80 | 2,61 | 7,09 |
30-34 | 0,53 | 2,23 | 7,23 |
35-39 | 0,54 | 2,06 | 5,67 |
40-44 | 0,52 | 1,82 | 6,82 |
45-49 | 0,74 | 2,02 | 6,61 |
50-54 | 1,01 | 2,14 | 5,67 |
55-59 | 1,28 | 2,10 | 4,63 |
60-64 | 1,56 | 2,31 | 4,15 |
65-69 | 1,65 | 2,04 | 2,85 |
70-74 | 1,81 | 1,86 | 2,26 |
As maiores razões foram observadas para o grupo de causas externas. O indicador seguiu uma tendência de aumento ao longo das idades jovens, com redução a partir dos 40 anos de idade. A razão mais elevada foi registrada no grupo etário de 15 a 19 anos, em que o risco de morte dos homens, por causas externas evitáveis, foi quase dez vezes o das mulheres. Um padrão semelhante foi verificado para as doenças evitáveis do aparelho circulatório, entretanto em níveis menores: a maior desvantagem encontra-se também no grupo etário de 15 a 19 anos, embora, para essas causas, o risco de morte dos homens fosse 3,22 vezes o das mulheres.
Na Tabela 3 é apresentada a esperança de vida com a exclusão do grupo de causas evitáveis selecionado. A maior esperança de vida ao nascer, para os homens (76,33 anos) e para as mulheres (83,26 anos), foi obtida após a exclusão dos óbitos por doenças evitáveis do aparelho circulatório. Ao nascer, os homens experimentariam um acréscimo de 2,44 anos (3,3%), e as mulheres, de 1,69 ano (2,1%). Esse incremento alcançou 7,9% (1,65 ano) aos 60 anos de idade, para o sexo masculino, e 4,5% (1,15 anos) para o feminino.
Homens | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Idade (em anos) | ex | Neoplasias | Doenças do aparelho circulatório | Causas externas | ||||||
ex- i | ex-i - ex | (%) | ex- i | ex-i - ex | (%) | ex- i | ex-i - ex | (%) | ||
0 | 73,89 | 75,21 | 1,32 | 1,8 | 76,33 | 2,44 | 3,3 | 75,84 | 1,95 | 2,6 |
5 | 70,05 | 71,34 | 1,29 | 1,8 | 72,48 | 2,43 | 3,5 | 72,03 | 1,98 | 2,8 |
10 | 65,11 | 66,39 | 1,28 | 2,0 | 67,54 | 2,43 | 3,7 | 67,08 | 1,97 | 3,0 |
15 | 60,19 | 61,47 | 1,28 | 2,1 | 62,62 | 2,43 | 4,0 | 62,12 | 1,94 | 3,2 |
20 | 55,68 | 56,96 | 1,28 | 2,3 | 58,10 | 2,42 | 4,3 | 57,28 | 1,60 | 2,9 |
25 | 51,19 | 52,47 | 1,28 | 2,5 | 53,59 | 2,41 | 4,7 | 52,48 | 1,29 | 2,5 |
30 | 46,59 | 47,87 | 1,28 | 2,7 | 48,98 | 2,40 | 5,1 | 47,66 | 1,08 | 2,3 |
35 | 41,98 | 43,26 | 1,28 | 3,0 | 44,36 | 2,37 | 5,7 | 42,89 | 0,90 | 2,2 |
40 | 37,43 | 38,70 | 1,27 | 3,4 | 39,77 | 2,34 | 6,2 | 38,18 | 0,75 | 2,0 |
45 | 32,98 | 34,23 | 1,25 | 3,8 | 35,25 | 2,26 | 6,9 | 33,60 | 0,62 | 1,9 |
50 | 28,72 | 29,93 | 1,20 | 4,2 | 30,85 | 2,13 | 7,4 | 29,23 | 0,51 | 1,8 |
55 | 24,71 | 25,83 | 1,12 | 4,5 | 26,64 | 1,92 | 7,8 | 25,12 | 0,41 | 1,7 |
60 | 20,97 | 21,93 | 0,96 | 4,6 | 22,63 | 1,65 | 7,9 | 21,31 | 0,34 | 1,6 |
65 | 17,53 | 18,27 | 0,74 | 4,2 | 18,80 | 1,27 | 7,3 | 17,81 | 0,27 | 1,6 |
≥70 | 14,41 | 14,89 | 0,49 | 3,4 | 15,21 | 0,81 | 5,6 | 14,62 | 0,22 | 1,5 |
| ||||||||||
Mulheres | ||||||||||
Idade (em anos) | ex | Neoplasias | Doenças do aparelho circulatório | Causas externas | ||||||
ex- i | ex-i - ex | (%) | ex- i | ex-i - ex | (%) | ex- i | ex-i - ex | (%) | ||
| ||||||||||
0 | 81,57 | 83,00 | 1,42 | 1,7 | 83,26 | 1,69 | 2,1 | 82,11 | 0,54 | 0,7 |
5 | 77,67 | 79,07 | 1,40 | 1,8 | 79,33 | 1,67 | 2,1 | 78,21 | 0,54 | 0,7 |
10 | 72,72 | 74,12 | 1,40 | 1,9 | 74,39 | 1,67 | 2,3 | 73,25 | 0,53 | 0,7 |
15 | 67,78 | 69,18 | 1,40 | 2,1 | 69,45 | 1,67 | 2,5 | 68,30 | 0,52 | 0,8 |
20 | 62,92 | 64,31 | 1,39 | 2,2 | 64,58 | 1,66 | 2,6 | 63,40 | 0,48 | 0,8 |
25 | 58,08 | 59,47 | 1,39 | 2,4 | 59,73 | 1,65 | 2,8 | 58,52 | 0,44 | 0,8 |
30 | 53,24 | 54,61 | 1,37 | 2,6 | 54,88 | 1,64 | 3,1 | 53,64 | 0,40 | 0,8 |
35 | 48,42 | 49,77 | 1,35 | 2,8 | 50,04 | 1,62 | 3,4 | 48,79 | 0,37 | 0,8 |
40 | 43,68 | 44,98 | 1,30 | 3,0 | 45,27 | 1,60 | 3,7 | 44,02 | 0,34 | 0,8 |
45 | 39,01 | 40,24 | 1,23 | 3,2 | 40,55 | 1,54 | 4,0 | 39,33 | 0,32 | 0,8 |
50 | 34,47 | 35,60 | 1,13 | 3,3 | 35,93 | 1,45 | 4,2 | 34,77 | 0,30 | 0,9 |
55 | 30,08 | 31,08 | 1,00 | 3,3 | 31,41 | 1,33 | 4,4 | 30,36 | 0,28 | 0,9 |
60 | 25,88 | 26,70 | 0,82 | 3,2 | 27,03 | 1,15 | 4,5 | 26,14 | 0,26 | 1,0 |
65 | 21,87 | 22,50 | 0,63 | 2,9 | 22,81 | 0,94 | 4,3 | 22,12 | 0,24 | 1,1 |
≥70 | 18,14 | 18,56 | 0,42 | 2,3 | 18,77 | 0,63 | 3,5 | 18,35 | 0,21 | 1,2 |
Legenda:
ex: esperança de vida à exata idade x.
ex-i: esperanca de vida a exata idade x com a eliminacao dos obitos pela causa evitável i.
ex-i - ex: ganho absoluto.
% : ganho relativo.
Na sequência, o capítulo responsável pelos maiores incrementos foi o de causas externas para os homens e de neoplasias para as mulheres. No cenário de eliminação dos óbitos por causas externas, o sexo masculino registrou um ganho potencial de 1,95 ano na esperança de vida ao nascer (2,6%), ao passo que o feminino aumentaria o mesmo indicador em 0,54 ano (0,7%). A população masculina experimentaria uma tendência crescente até os 20 anos de idade, no qual atingiria um ganho de 2,9%, reduzindo-se nas idades posteriores até 1,5% aos 70 anos de idade. A exclusão dos óbitos por neoplasias evitáveis, por sua vez, provocaria um ganho de 1,8% (1,32 ano) na esperança de vida ao nascer para os homens, e de 1,7% (1,42 ano) para as mulheres.
Em termos relativos, a exclusão das mortes por neoplasias e doenças do aparelho circulatório resultou em um comportamento similar, caracterizado por uma participação percentual crescente até as idades mais avançadas, a partir de quando é possível observar uma tendência de redução desses acréscimos. O mesmo ocorre com as neoplasias, que atingem um potencial de aumento da esperança de vida aos 60 anos de, aproximadamente, 4% para os homens e 3% para as mulheres.
Na Figura 2 são apresentadas as diferenças relativas entre as probabilidades de morte bruta (consideradas todas as causas de óbito selecionadas) e líquida (após a eliminação de um grupo de causas). Para os homens, o impacto foi maior com a eliminação dos óbitos por causas externas evitáveis, motivo pelo qual se optou por apresentar os resultados dessa causa separadamente, na Figura 2a. Para o mesmo grupo de causas externas, a probabilidade de morte bruta entre homens na idade de 15-20 anos foi 220% maior do que a probabilidade de morte líquida. Entre as mulheres, o peso da exclusão dessa causa para a probabilidade foi muito inferior ao dos homens, em todos os grupos etários.
Os diferenciais na probabilidade de morte para as demais causas são apresentados na Figura 2b. No caso das doenças evitáveis do aparelho circulatório, as reduções de probabilidade de morte foram semelhantes para homens e mulheres. Entretanto, até os 45 anos de idade, a diferença foi um pouco mais expressiva para as mulheres, invertendo-se em favor dos homens à medida que a idade avançava. A eliminação dessa causa seria responsável pelo segundo maior impacto nas diferenças de probabilidade dos homens, em praticamente todos os grupos etários.
Para as mulheres, a exclusão das neoplasias evitáveis provocou as maiores reduções de probabilidade de morte, em praticamente todas as faixas etárias. A importância da eliminação dessa causa foi observada, principalmente, entre os 25 e os 45 anos, quando foram registradas as maiores diferenças de probabilidade de morte.
Discussão
A mortalidade evitável foi responsável por uma parcela expressiva dos óbitos do município de São Paulo, entre 2014 e 2016. Nesse período, mais da metade dos óbitos por doenças do aparelho circulatório, neoplasias e causas externas foram classificados como evitáveis, segundo a ‘Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil’.9 Os homens, em especial, apresentaram um percentual de óbitos evitáveis superior ao das mulheres, além de maior risco de morte, em praticamente todas as idades e grupos de causas evitáveis. Quanto aos ganhos de esperança de vida ao nascer, a exclusão dos óbitos por doenças do aparelho circulatório evitáveis resultou em ganhos no indicador para ambos os sexos.
De forma geral, as mulheres têm um comportamento mais preventivo que os homens, de maior utilização dos serviços de saúde e aversão ao risco.15 Além disso, é importante ressaltar que, diferentemente da diminuição das doenças transmissíveis, que ocorreu por meio de tratamentos eficazes, como antibióticos e vacinas, e o acesso à água potável, o tratamento das doenças não transmissíveis decorre também de ações individuais de prevenção. Dessa forma, uma das razões para a menor mortalidade feminina encontrada seria a percepção das mulheres sobre a necessidade de alteração dos hábitos de vida, bem como a adoção de comportamentos de prevenção.5 Portanto, é razoável supor que a maior proporção de óbitos por causas evitáveis entre os homens esteja associada a esses fatores.
Em relação ao padrão etário da mortalidade entre os sexos, observou-se desvantagem masculina em praticamente todas as idades e grupos de causas. O município de São Paulo parece seguir a tendência de sobremortalidade masculina,16 observada não só na mortalidade geral como também por causas de óbito específicas.17 A única exceção ocorreu no estrato dos 25 aos 49 anos de idade, em que as mulheres experimentaram um risco de morte maior que o dos homens, por neoplasias evitáveis. Este resultado pode estar relacionado às neoplasias da mama e do colo do útero, cujo peso é significativo entre mulheres jovens.17
As maiores razões de sexo entre as taxas de mortalidade foram observadas no grupo de causas externas, especificamente para a população masculina nas idades mais jovens. Esse resultado pode ser explicado pelo óbitos por causas externas, especialmente homicídios e violências, principalmente em homens jovens e adultos.18 Contudo é importante ressaltar: essa medida, de risco relativo, não fornece evidências sobre a magnitude das taxas de mortalidade experimentadas por cada grupo etário.
Em relação aos ganhos potenciais de esperança de vida, com a exclusão de óbitos por causas específicas, evidenciam-se duas tendências distintas entre os sexos: por idade; e por grupo de causas de morte evitáveis. Por idade, a análise mostra que, em termos percentuais, a exclusão de qualquer grupo de causas de óbito levaria a um ganho de esperança de vida maior para os homens. Por grupo de causas de morte, entretanto, a importância de cada capítulo varia de acordo com o sexo.
Em linhas gerais, as doenças do aparelho circulatório evitáveis produzem ganhos expressivos de esperança de vida para ambos os sexos. A importância da redução desses óbitos também foi observada em um estudo realizado no Brasil, de alcance nacional, especialmente com a exclusão dos óbitos por doenças isquêmicas do coração evitáveis, o que resultou em ganhos de 1,3 ano para os homens e de 1,7 ano para as mulheres.17
Devido à tecnologia médica avançada e mudanças no comportamento individual, os países da Europa Ocidental avançaram no tratamento de doenças cardiovasculares, aumentando sua esperança de vida para níveis ainda mais elevados. Nem todas as sociedades estão preparadas para aproveitar os benefícios das inovações tecnológicas e médicas, simultaneamente: em um primeiro momento, há divergência de ganhos de esperança de vida, seguida por um processo de convergência entre os países.5 Dada a trajetória dos países desenvolvidos, é razoável imaginar que a difusão da tecnologia nos países em desenvolvimento também pode contribuir para ganhos de esperança de vida com a redução da taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares, desde que mais da metade dos óbitos por doenças do aparelho circulatório foram classificados como evitáveis, no período estudado.
Entre a população feminina, o ganho potencial de esperança de vida com a eliminação dos óbitos por neoplasias foi maior do que por causas externas. É possível que isso esteja associado ao maior risco de morte das mulheres por neoplasias evitáveis. No caso dos homens, a situação se inverte, da seguinte forma: como eles experimentam taxas de mortalidade mais altas por causas externas, em termos de esperança de vida, a remoção desses óbitos beneficia mais o sexo masculino do que o feminino. Desde 1980, as causas externas exercem um impacto negativo sobre a estrutura por idade das taxas de mortalidade no Brasil, contribuindo para que anos de esperança de vida sejam perdidos.2
A sobremortalidade masculina, tanto por doenças do aparelho circulatório como por causas externas, refletiu-se na análise dos diferenciais entre as probabilidades de morte líquida e bruta. O peso da exclusão desses grupos de causas provocou as maiores reduções de probabilidade de morte para os homens. Já a população feminina, enquanto apresentou sobremortalidade por neoplasias nas idades adultas, referiu maior queda na probabilidade de morte com a exclusão desse grupo de causas.
A mortalidade e a incapacidades precoces, principalmente por causas não transmissíveis, têm gerado custos econômicos e sociais para a sociedade, entre os quais o aumento do consumo de recursos para os tratamentos de saúde, perda ou redução da capacidade de produção, concessão de aposentadorias/pensões prematuras e, principalmente, diminuição da qualidade de vida do indivíduo e seus familiares.8
A predominância das DCNT, como decorrência do processo de transição epidemiológica, leva ao aumento dos gastos com saúde, dada a necessidade de incorporação de novas tecnologias nos tratamentos, geralmente longos e de lenta recuperação para os pacientes.8 O indivíduo que adoece ou falece diminui o fluxo de renda esperado durante sua vida e, por conseguinte, há uma perda de recursos econômicos devido à redução das horas/anos de vida produtivos.20 A perda de produção atribuída aos óbitos por homicídios é a mais significativa do capítulo de causas externas, justamente por sua maior incidência entre jovens do sexo masculino, cujos rendimentos são relativamente mais altos e, ademais, contam com uma expectativa de vida economicamente ativa maior, comparada à das mulheres jovens.20
As incapacidades ocasionadas por uma doença também podem incorrer em custos elevados, principalmente com licenças prolongadas, aposentadorias e pensões.19 Nesse sentido, é mister atentar para o fato de esses agravos e óbitos estarem classificados como evitáveis e, portanto, preveníveis – total ou parcialmente –, além de refletirem o acesso aos serviços de saúde, bem como a qualidade dos serviços prestados.9A adoção de ações de promoção e prevenção à saúde, além de constituir uma via rumo a novos ganhos de esperança de vida, pode representar uma estratégia de redução dos custos globais do sistema de saúde, bem como dos custos econômicos e sociais dos óbitos e incapacidades.
A investigação das principais causas de morbimortalidade evitáveis, sua distribuição em diferentes espaços geográficos e populações, pode contribuir para a tomada de decisão de políticas de saúde direcionadas à qualidade dos serviços e redução das desigualdades entre classes e segmentos sociais específicos.
Uma limitação desse trabalho está relacionada ao curto período de tempo analisado e às causas de óbitos selecionadas. A análise comparativa no tempo, somada ao estudo mais específico dos óbitos evitáveis (categorias da CID-10) poderia fornecer informações relevantes para a avaliação dos serviços de saúde e o delineamento de políticas públicas mais eficientes.
Os resultados deste trabalho indicam uma grande proporção de óbitos evitáveis, ao se observarem as principais causas de morte na população do município de São Paulo. De maneira geral, esses óbitos geram uma perda de esperança de vida ao nascer e um impacto na probabilidade de morte de homens e mulheres em magnitudes distintas. Como conclusão, persistem diferenciais por sexo na mortalidade evitável, produzindo uma série de desafios não só para as políticas de atenção à saúde como também para aquelas destinadas à diminuição das desigualdades em grupos populacionais específicos.