Introdução
A febre amarela é uma doença infecciosa febril aguda, imunoprevenível, caracterizada por dois ciclos epidemiológicos de transmissão distintos: silvestre e urbano.1 A febre amarela silvestre é considerada uma doença endêmica no Brasil (Região Amazônica) e na África. Na Região Extra-Amazônica, períodos epidêmicos são registrados ocasionalmente, caracterizando a reemergência da doença no país.2
No ciclo silvestre, os transmissores são mosquitos de atividade diurna com hábitos estritamente silvestres, sendo os gêneros Haemagogus e Sabethes os mais importantes na América Latina.3 Os primatas não humanos funcionam como amplificadores da infecção de mosquitos e disseminam o vírus à medida que se deslocam na mata.4 No ciclo urbano, a doença é uma antroponose, o vírus é transmitido entre seres humanos e mosquitos, predominantemente o Aedes aegypti , em áreas urbanizadas.3
O atual surto da doença em humanos no país ocorreu, principalmente, em regiões metropolitanas, onde se observa uma ampla dispersão do vetor Aedes aegypti , de tal forma que se estabeleceu um risco para reintrodução da febre amarela urbana.2
Surtos substanciais de febre amarela ocorreram nos últimos anos, além do Brasil, em Angola e na República Democrática do Congo. Concomitantemente à distribuição global do principal vetor urbano, o Aedes aegypti , a infecção tem o potencial de se espalhar internacionalmente, aumentando não só o impacto da febre amarela na saúde das populações como também os encargos financeiros dos sistemas de Saúde Pública nacionais.
O vírus amarílico ressurgiu em dezembro de 2016, na região Sudeste,5 causando o maior surto de febre amarela silvestre no país desde o período de 1934 a 1940, atingindo principalmente os estados da região Sudeste, onde existe maior concentração populacional e um índice considerável de infestação pelo Aedes aegypti .6 A epidemia do período de 2106/2017 envolveu, principalmente, os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2017, as maiores taxas de incidência da doença foram registradas no Espírito Santo (6,3/100 mil habitantes) e em Minas Gerais (2,2 casos/100 mil hab.). Em todo o país, foram notificados 261 óbitos, com letalidade de 33,6%; no Espírito Santo, foram 83 óbitos, com letalidade de 32,9%.8
Para analisar e compreender a real magnitude dessa epidemia de febre amarela, é importante poder contar com um sistema de informações de qualidade, confiável, com os campos das fichas de notificação preenchidos de forma correta, com dados completos e atualizados. A baixa qualidade do sistema de vigilância limita a análise epidemiológica do agravo e dificulta o acompanhamento da dinâmica da doença, comprometendo a adoção de medidas de intervenção de forma adequada para minimizar os efeitos do surto da doença e sua expansão para outras regiões.5
Nesse sentido, o presente estudo teve por objetivo descrever a completude de dados das fichas de notificação de febre amarela nos municípios do estado do Espírito Santo, Brasil, em 2017.
Métodos
Neste estudo, foram incluídas todas as fichas de notificação dos casos suspeitos ou confirmados de febre amarela registradas pelas secretarias municipais do Espírito Santo, no ano de 2017. Foram excluídas as fichas de notificação que apresentassem duplicidade de registro.
A ficha de investigação para febre amarela apresenta 70 campos a serem preenchidos. Para a análise da completude dos dados, foram selecionadas variáveis obrigatórias e variáveis essenciais, segundo sua importância epidemiológica para o agravo. As variáveis obrigatórias estudadas neste trabalho foram: classificação final, local provável de infecção e data do encerramento do caso. As variáveis essenciais foram: ocupação, dados da investigação entomológica e de epizootias (ocorrência de epizootias, isolamento de vírus em mosquitos e presença de mosquito Aedes aegypti em área urbana), sinais e sintomas, exames inespecíficos e critério de confirmação/descarte do caso. A completude das variáveis foi definida pelo preenchimento dos respectivos campos de informações, à exceção do campo ‘Ignorado’.
Para a análise, utilizou-se o item ‘Qualidade dos dados’ do documento Update Guidelines for Evaluating Public Health Surveillance Systems, publicado pelo Centers for Diseases, Control and Prevention (CDC) do Estados Unidos, e que reflete a integralidade e a validade dos dados registrados nos sistemas de vigilância em Saúde Pública.5 Uma medida direta e fácil para avaliar a qualidade dos dados consiste em examinar a porcentagem de itens dos formulários da vigilância epidemiológica em que as respostas são desconhecidas ou os campos de preenchimento são deixados em branco.5
Para melhor exemplificar a análise e melhor visualizar os resultados, as taxas de completude das variáveis selecionadas foram estratificadas segundo sua completude: ruim, quando menos de 70% do dado é preenchido, entre todos os casos; regular, com 70 a 89,9%; e ótima, quando o dado é preenchido em 90% ou mais dos casos.13 Primeiramente, o banco de dados foi organizado com uso do aplicativo Microsoft Excel, versão 10, posteriormente incluído no programa Arcgis 10.3 juntamente com a malha digital contendo as informações geográficas do estado, disponível no sítio eletrônico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).14
Foram elaborados mapas temáticos da completude no preenchimento das categorias de variáveis representadas pelos itens da ficha de notificação descritos a seguir: [32] Ocupação; [33] Informar os dados da investigação entomológica e de epizootias; [39] Sinais e sintomas; [45] Exames Inespecíficos; [57] Classificação Final; [58] Critério de Confirmação/Descarte; e [70] Data do Encerramento.
O item da ficha de notificação supracitado, em que são informados os dados da investigação entomológica (mosquitos) e de epizootias, composto por três campos de preenchimento – Ocorrência de Epizootias; Isolamento de vírus em mosquitos; Presença de mosquito Aedes aegypti em área urbana –, teve sua completude calculada pela média das taxas desses três campos.
A taxa de completude da categoria Sinais e sintomas, por sua vez, resultou do cálculo da média das taxas das variáveis Dor abdominal, Sinal de Faget, Sinais hemorrágicos e Distúrbios de excreção renal.
A completude da categoria Exames Inespecíficos, por sua vez, correspondeu à taxa média dos campos destinados aos registros dos exames de bilirrubina total, bilirrubina direta e aminotransferases AST (TGO) e ALT (TGP).
Finalmente, realizou-se o cálculo da completude das variáveis referentes à média das taxas de Classificação Final, Critério de Confirmação/Descarte e Data do Encerramento. Seus resultados foram traduzidos em um mapa do estado.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES), em 26 de junho de 2017: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 68580617.3.0000.5060; Parecer nº 2.137.234.
Resultados
Em 2017, 858 casos suspeitos de febre amarela foram notificados no estado do Espírito Santo. Havia 63 notificações duplicadas e, após sua exclusão, foram estudadas 795 fichas. Os casos confirmados para a doença representaram 26,9% das fichas de investigação (N=214); e os inconclusivos, 36,4% (N=290).
Sobre a distribuição de casos suspeitos, no ano de 2017, houve notificação desses casos em 49 dos 78 municípios do estado, destacando-se a capital, Vitória, com 157 notificações (19,7%) ( Tabela 1 ).
Município de notificação | N | % |
---|---|---|
Vitória | 157 | 19,7 |
Serra | 99 | 12,4 |
Colatina | 63 | 7,9 |
Santa Leopoldina | 48 | 6,0 |
Domingos Martins | 43 | 5,4 |
Vila Velha | 42 | 5,3 |
Ibatiba | 37 | 4,6 |
Santa Maria de Jetibá | 30 | 3,7 |
Cariacica | 24 | 3,0 |
Laranja da Terra | 19 | 2,3 |
Cachoeiro de Itapemirim | 17 | 2,1 |
Itarana | 17 | 2,1 |
Muniz Freire | 17 | 2,1 |
Alfredo Chaves | 15 | 1,8 |
Castelo | 14 | 1,7 |
Baixo Guandu | 11 | 1,3 |
Conceição do Castelo | 11 | 1,3 |
Viana | 10 | 1,2 |
| ||
Total dos demais municípios | 121 | 15,2 |
| ||
Total do estado do Espírito Santo | 795 | 100,0 |
No que se refere ao local provável de infecção, os casos confirmados distribuíram-se em 34 municípios, com concentração na região serrana do estado, principalmente nos municípios de Domingos Martins e Marechal Floriano. Os cinco municípios que compõem a região metropolitana da Grande Vitória tiveram registros de febre amarela; contudo, não foi observado caso autóctone dentro dos limites da capital.
A Figura 1 corresponde ao mapa da completude das fichas de notificação de febre amarela quanto às variáveis de ocupação, antecedentes epidemiológicos, sinais e sintomas e exames inespecíficos.
Para a categoria Ocupação ( Figura 1A ), o percentual de completude no preenchimento variou de ruim a ótimo. A média do estado foi classificada como ruim. Os municípios que compreendem a região metropolitana da Grande Vitória, assim como aqueles localizados no litoral do estado, foram classificados como de completude ruim; ao todo, 24 municípios do Espírito Santo apresentaram completude para essa variável.
Quanto às variáveis de antecedentes epidemiológicos ( Figura 1B ), os municípios que compõem a região metropolitana da Grande Vitória foram classificados como de completude ruim para o preenchimento desses dados, à exceção de Guarapari e Vila Velha, cujas completudes foram classificadas como regulares.
Para a categoria Sinais e Sintomas ( Figura 1C ), 33 municípios apresentaram classificação ótima, enquanto Vitória foi classificada como ruim no preenchimento desse indicador.
Dos 78 municípios do estado, 37 não preencheram as variáveis relacionadas à completude da categoria Exames Inespecíficos ( Figura 1D ), classificada, portanto, como ruim. Apenas cinco municípios foram classificados como de completude ótima para essa categoria: São Mateus (região norte do estado), Itaguaçu e Afonso Cláudio (região metropolitana de Vitória), Ibatiba e Jerônimo Monteiro (região sul do estado).
A Figura 2 apresenta a classificação de cada município como ruim, regular ou ótima quanto à completude média das variáveis Classificação Final, Critério de Confirmação/Descarte e Data do Encerramento do caso. Vinte e seis municípios que realizaram as notificações encontraram sua completude entre ruim e regular. A capital Vitória apresentou completude ruim. Vinte e três cidades do estado foram classificadas como de completude ótima, com destaque para a região sul do estado, da qual 11 municípios alcançaram essa classificação.
Discussão
O estudo apontou que os municípios do Espírito Santo apresentaram classificação entre ruim e regular para muitas variáveis da ficha de notificação, com destaque para a capital do estado, Vitória. Com referência às variáveis de ocupação, antecedentes epidemiológicos, sinais e sintomas e exames inespecíficos, identificou-se completude ruim nos municípios integrantes da região metropolitana de Vitória – salvo as exceções de Vila Velha e Guarapari, quanto aos antecedentes epidemiológicos.
Além disso, os resultados mostram a duplicidade da notificação dos casos suspeitos de febre amarela no estado. Observou-se, também, a presença de casos todavia inconclusivos, para os quais não foi possível descartar ou confirmar o adoecimento pela doença amarílica devido a dados insuficientes, a campos da ficha deixados em branco ou preenchidos de forma inadequada, ou ainda, por conta da não coleta de amostras para a realização dos exames diagnósticos.
Entre as variáveis classificadas como de completude ruim a ótima, encontram-se as de ocupação, sinais e sintomas e exames inespecíficos, consideradas essenciais, embora não obrigatórias para inserção dos dados no sistema.13 São variáveis importantes para as análises epidemiológicas, identificação de características específicas da febre amarela e localização da circulação viral, além de servirem para o cálculo de indicadores.18 Os municípios notificadores – equivalentes a 75,5% – não preencheram os dados dos exames inespecíficos. Tais exames compreendem os valores de bilirrubina total e indireta, e das aminotransferases AST (TGO) e ALT (TGP); são realizados para verificar a função hepática, visando detectar a presença de doença hepática, fazer diagnóstico diferencial com outras doenças, avaliar a extensão da lesão do tecido hepático e orientar a condução do tratamento.20
Com referência às variáveis Classificação Final, Local Provável de Infecção e Data do Encerramento, necessárias para a conclusão do caso, trata-se de campos considerados de preenchimento obrigatório, porque sua ausência impossibilita a inclusão da notificação no Sinan.12 Evidenciou-se que a proporção de informação ignorada e deixada em branco foi elevada, implicando classificação da completude entre ruim e regular. Uma vez que tais dados não são coletados no primeiro momento da investigação, faz-se necessário seu acompanhamento para posterior preenchimento dessas variáveis. Este método passivo de coleta de dados pode gerar subnotificação, atraso nas notificações e na digitação, problemas no processamento e transferência das informações atualizadas, ausência de uma retroalimentação adequada à fonte notificadora, e, consequentemente, desestímulo e descontinuidade no processo de vigilância.20 Já o encerramento dos casos em tempo oportuno permite o conhecimento dos casos confirmados e descartados, e a adoção de medidas de controle.
Um estudo publicado no Reino Unido em 2018, sobre zonas de risco de infecção existentes e potenciais para febre amarela, relatou subnotificação dos casos da doença e desconhecimento de sua distribuição exata. Estratégias de controle da infecção necessitam de uma base de dados com qualidade, para identificar as populações mais vulneráreis a adoecer.22
As variáveis classificadas como de completude ruim e regular podem decorrer da falta de motivação, de profissionais, ou de tempo insuficiente para o preenchimento completo da ficha de notificação, diante da priorização de outras demandas das unidades notificadoras. Pode-se também considerar, como outro fator para o preenchimento incompleto da fichas, o fato de os profissionais de saúde considerarem a atividade meramente burocrática, de importância secundária.16 Mais um possível motivo a justificar a incompletude dos campos de notificação da febre amarela no Espírito Santo seria o fato de o estado, considerado área indene para circulação do vírus amarílico,9 contar com profissionais que, por desconhecimento da forma de notificação, métodos diagnósticos, sinais e sintomas da manifestação da doença, estariam despreparados para lidar com uma epidemia de grande magnitude como a observada no período entre 2016 e 2017.
Em um sistema de informações de saúde, casos duplicados costumam ocorrer em função da notificação do mesmo evento por diferentes unidades, e da falta de acompanhamento dessas notificações. A existência desses casos no Sinan pode ocasionar uma superestimação, aumentando a incidência do agravo.12
Já o sub-registro de casos atribui-se a diversos fatores, como atraso nas notificações e digitação dos dados, problemas no processamento e transferência das informações, demora na liberação dos resultados de exames, ausência de atualização dos dados ou de uma retroalimentação adequada da fonte notificadora, o que também pode gerar desestímulo e descontinuidade do processo.17
Embora o estudo revele achados importantes para a vigilância e avaliação da qualidade da informação em saúde, como também para a replicação dos métodos utilizados na avaliação da completude das fichas do Sinan em outros estados do país – e para outros agravos –, apresenta uma limitação que reside, justamente, em suas características regionais, peculiares ao Espírito Santo, não extensivas à realidade de outros estados do país.
Sabe-se que a análise geoespacial e o mapeamento são ferramentas úteis para detectar padrões espaciais de doenças e seus fatores associados, oferecendo possibilidades inovadoras de vincular dados epidemiológicos de Saúde Pública; e de situá-los, sobrepô-los geograficamente, facilitando a visualização dos dados estatísticos no território.28
Os resultados encontrados no Sinan sobre a distribuição espacial da febre amarela demonstram completude ruim a regular para diversas variáveis do estudo, apontando a necessidade de uma avaliação sistemática da qualidade da informação gerada pelos sistemas de informações em saúde.
Análises realizadas a partir de dados de má qualidade podem não representar o real perfil epidemiológico dos agravos, prejudicando a adoção de medidas de controle mais adequadas e o mapeamento das regiões de risco.10
É necessário treinar e conscientizar os profissionais para (i) o preenchimento das fichas de notificação de doenças e agravos de forma correta, evitando deixar campos em brancos ou preenchê-los como ‘Ignorado’, e promover entre eles (ii) o entendimento da importância desse serviço não apenas burocrático, uma vez que, a partir do perfil epidemiológico traçado pelos sistemas de informações em saúde, são adotadas as medidas de prevenção, distribuição de recursos e implementação de políticas públicas na área.