Introdução
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) são o principal conjunto de doenças prevalentes e de causas de morte nos diferentes segmentos socioeconômicos da população.1 No ano de 2011, tais doenças foram responsáveis por mais de 850 mil mortes entre brasileiros, correspondendo a 72,7% dos óbitos registrados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).3
Diversos fatores podem influenciar na diminuição da ocorrência de DCNT na população brasileira.4 Nesse sentido, a prática de atividade física (AF) figura como importante comportamento com impacto na prevenção primária e/ou tratamento de diversas doenças crônicas,5 e a adoção de um estilo de vida fisicamente ativo reduz de 6% a 10% dos acometimentos de DCNT.6
A prática regular de AF está diretamente relacionada com a melhora e/ou manutenção da saúde em indivíduos de todas as idades,7 e encontra-se inversamente associada a diferentes fatores de risco à saúde (aumento dos níveis pressóricos, lipídicos e glicêmicos), reduzindo em cerca de 30% a 35% a mortalidade prematura por todas as causas.8
Contudo, a avaliação do nível de AF (NAF) ainda apresenta questões metodológicas que dificultam sua verificação em amostras representativas da população.9 A principal dificuldade consiste na divergência sobre uma técnica universalmente padronizada para mensuração do NAF em seus diversos domínios.10
Entre os instrumentos, questionários são amplamente utilizados para determinação do NAF em estudos epidemiológicos de base populacional, devido à facilidade e ao baixo custo de aplicação. Nesse sentido, o Questionário Internacional de Atividade Física (IPAQ) tem sido o mais vastamente empregado em investigações ao redor do mundo.12
Altas prevalências de prática insuficiente de AF têm sido verificadas em diferentes populações, estando presente em cerca de 23% dos adultos com idade 18 anos,7 figurando como o quarto principal fator de risco para a mortalidade mundial. Nas capitais brasileiras, 13,7% dos adultos são insuficientemente ativos fisicamente, notadamente pessoas do sexo feminino e com menor escolarização.14
O NAF também está sujeito a influências ambientais. Observa-se que moradores de comunidades rurais corriqueiramente apresentam menor adesão às recomendações globais de AF; pesquisas15 sugerem que esta disparidade estaria relacionada às condições estruturais impostas a essas pessoas (isolamento geográfico; restrito acesso a serviços de saúde, de educação, aos serviços de transporte e à renda).
Um estudo com participação de comunidades remanescentes de quilombos do norte de Minas Gerais identificou que 63% praticavam menos AF que o recomendado para a obtenção de benefícios à saúde.17 Pesquisa com quilombolas de um município do sudoeste baiano indicou que estes são mais ativos no domínio do trabalho que no tempo livre (ou de lazer), com 42,1% e 13,1%, respectivamente.18 Mussi et al.19também identificaram baixa quantidade de AF de tempo livre em uma comunidade quilombola baiana, ribeirinha ao São Francisco.
Apesar dos reconhecidos benefícios da prática de AF para a saúde,5 investigações com participação de quilombolas indicaram baixos níveis de AF.17 No entanto, diante das perspectivas amostrais local,19 municipal18 e regional,17 a disponibilidade de informações sobre seus impactos negativos à saúde da população quilombola ainda são restritos. Assim, a presente investigação pretende analisar as variáveis sociodemográficas associadas ao NAF insuficiente em quilombolas baianos.
Métodos
Esta análise é recorte do estudo transversal de base populacional intitulado “Perfil Epidemiológico dos Quilombolas Baianos”, realizado entre os meses de fevereiro e novembro de 2016.
O campo empírico é a região geográfica de Guanambi, Bahia, que contava com 42 quilombos contemporâneos certificados até o ano de 2016, distribuídos em dez municípios. Diante da indisponibilidade de informações oficiais prévias relativas à quantidade de moradores dos quilombos dessa microrregião baiana, a população foi estimada considerando-se 80 famílias por quilombo, com dois adultos (>18 anos) por família em cada comunidade, totalizando 6.720 adultos.
O cálculo amostral considerou: correção para população finita, prevalência de 46%20 para o desfecho (<150 minutos semanais de AF considerando-se os seguintes domínios: lazer; trabalho; domésticas/domiciliares; e o deslocamento), intervalo de confiança de 95%, erro amostral de 5 pontos percentuais (p.p.), efeito de 1,5 vez para conglomerado, acréscimo de 30% para recusas e 20% para perdas e confundimento, determinando amostra de 813 sujeitos.
O desenho amostral consistiu em duas etapas: sorteio dos quilombos (conglomerado) e, em seguida, coleta censitária. Inicialmente foi realizado sorteio aleatório dos quilombos. Por meio das respectivas associações de moradores, 14 unidades sorteadas permitiram visitações para a realização da pesquisa, e três recusaram participação.
Considerando todos os adultos nos quilombos elegíveis, as associações de moradores informaram a presença de 1.025 adultos residentes durante o período das coletas. Todos foram convidados, sendo informados sobre os aspectos do estudo, garantindo-se igual probabilidade de participação (Figura 1).
Indivíduos com deficiência cognitiva ou de comunicação independente foram excluídos das entrevistas. Acamados, amputados, engessados, grávidas e nutrizes (até seis meses pós-parto) foram excluídos das medidas antropométricas. As perdas foram definidas pela não realização de alguma medida, exame ou ausência de resposta de alguma questão da entrevista.
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, desenvolvidas por equipes compostas por profissionais e/ou acadêmicos da área de saúde conforme suas habilitações, após capacitação. As coletas foram realizadas em sistema de mutirão, durante os finais de semana e feriados.
O nível de AF, variável dependente, foi determinado, conforme o International Physical Activity Questionaire (IPAQ versão curta).21 A classificação do IPAQ foi realizada de forma binária, sendo os indivíduos classificados como “muito ativos” e/ou “ativos” agrupados como “ativos”; e os indivíduos classificados como “irregularmente ativos” e/ou “inativos”, agrupados como “insuficientemente ativos”.22
As variáveis sociodemográficas foram: sexo (feminino, masculino), grupo etário (adultos=18 a 59 anos; idosos= 60 anos ou mais), estado civil (casado; separado/divorciado; viúvo e solteiro), alfabetização (sim, não), renda familiar (<1 salário mínimo, ≥ 1 salário mínimo), trabalhando atualmente (sim, não), ter religião (sim, não).
A população estudada foi caracterizada conforme as frequências absolutas e relativas das variáveis sociodemográficas, de estilo de vida e relativas à situação de prática de AF.
Para análise de associação dos preditores com o NAF, foram estimadas razões de odds (RO), a partir da regressão logística. Inicialmente foram verificadas as RO brutas. As variáveis que apresentaram p-valor <0,20 foram incluídas na análise ajustada. Foi adotado um nível de significância de 5%. Todas as análises foram realizadas com utilização do programa The Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 22.0.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado da Bahia em 09/01/2016, e aprovado por meio do parecer no 1.386.019/2016. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Compareceram às atividades e aceitaram participar, por meio da assinatura ou fornecimento da impressão digital no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido individual, 850 quilombolas, compondo a amostra final (Figura 1). Não compareceram às atividades 17% dos convidados, caracterizando recusas. Os participantes tinham idade média de 45,0 (±17,0) anos; 61,2% eram do sexo feminino; 80,6%, adultos; 74,6% tinham relacionamento marital; 71,9% eram alfabetizados; 49,1% trabalhavam; e 79,0% tinham renda familiar menor que 1 salário mínimo (Tabela 1).
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 520 | 61,2 |
Masculino | 330 | 38,8 |
Grupo etário | ||
Adultos | 685 | 80,6 |
Idosos | 165 | 19,4 |
Estado civil | ||
Casado | 634 | 74,6 |
Separado/divorciado | 29 | 3,4 |
Viúvo | 41 | 4,8 |
Solteiro | 122 | 14,4 |
Alfabetizado | ||
Sim | 595 | 71,9 |
Não | 232 | 28,1 |
Trabalhando atualmente | ||
Sim | 406 | 49,1 |
Não | 421 | 50,9 |
Renda Familiar | ||
< 1 salário mínimo | 579 | 79,0 |
≥ 1 salário mínimo | 154 | 21,0 |
Tem religião | ||
Sim | 804 | 96,5 |
Não | 28 | 3,5 |
Quanto ao NAF, 21,9% (IC95%19,1;24,7) foram classificados como insuficientemente ativos. O estilo de vida insuficientemente ativo se associou ao grupo etário, à alfabetização e ao trabalho dos participantes (Tabela 2).
Nível de atividade física (NAF) | ||||
---|---|---|---|---|
Insuficientemente ativo | Ativo | p-valor | ||
% (n) | % (n) | |||
Sexo | ||||
Feminino | 22,4 (114) | 77,6 (394) | ||
Masculino | 21,0 (68) | 79,0 (256) | 0,621 | |
Grupo etário | ||||
Adultos | 18,2 (123) | 81,8 (551) | ||
Idosos | 37,3 (59) | 62,7 (99) | <0,001 | |
Estado civil | ||||
Casado | 21,5 (136) | 78,5 (498) | ||
Separado/divorciado | 20,7 (6) | 79,3 (23) | ||
Viúvo | 26,8 (11) | 73,2 (30) | ||
Solteiro | 18,2 (22) | 81,8 (99) | 0,615 | |
Alfabetizado | ||||
Sim | 19,5 (116) | 80,5 (479) | ||
Não | 26,3 (61) | 73,7 (171) | 0,032 | |
Renda familiar | ||||
< 1 salário mínimo | 20,2 (91) | 79,8 (359) | ||
≥ 1 salário mínimo | 25,4 (72) | 74,6 (211) | 0,098 | |
Trabalhando atualmente | ||||
Sim | 16,0 (65) | 84,0 (641) | ||
Não | 26,6 (112) | 73,4 (309) | <0,001 | |
Tem religião | ||||
Sim | 21,5 (173) | 78,5 (631) | ||
Não | 32,1 (9) | 67,9 (19) | 0,181 |
As análises de regressão logística binária indicaram que ser idoso (OR=2,67; IC95%1,83;3,89), não alfabetizado (OR=1,47; IC95%1,03;2,10) e não estar trabalhando (OR=1,90; IC95%1,35;2,68) se associaram ao estilo de vida insuficientemente ativo (Tabela 3).
Insuficientemente ativo N (%) | Análise bruta OR (IC95%) | p-valor | Análise ajustada OR (IC95%) | p-valor | |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | |||||
Feminino | 114 (22,4) | 1 | |||
Masculino | 68 (21,0) | 0,92 (0,65;1,29) | 0,621 | ||
Grupo etário | |||||
Adultos | 123 (18,2) | 1 | 1 | ||
Idosos | 59 (37,3) | 2,67 (1,83;3,89) | <0,001* | 2,12 (1,29;3,49) | 0,003* |
Estado civil | |||||
Casado | 136 (21,5) | 1 | |||
Separado/divorciado | 6 (20,7) | 0,96 (0,38;2,39) | 0,922 | ||
Viúvo | 11 (26,8) | 1,34 (0,66;2,75) | 0,420 | ||
Solteiro | 22 (18,2) | 0,81 (0,49;1,34) | 0,418 | ||
Alfabetizado | |||||
Sim | 116 (19,5) | 1 | 1 | ||
Não | 61 (26,3) | 1,47 (1,03;2,10) | 0,033* | 1,03 (0,67;1,56) | 0,903 |
Renda familiar | |||||
< 1 Salário mínimo | 91 (20,2) | 1 | 1 | ||
≥ 1 Salário mínimo | 72 (25,4) | 1,35 (0,95;1,92) | 0,099 | 1,01 (0,68;1,50) | 0,947 |
Trabalhando atualmente | |||||
Sim | 65 (16,0) | 1 | 1 | ||
Não | 112 (26,6) | 1,90 (1,35;2,68) | <0,001* | 1,47 (1,01;2,14) | 0,047* |
Tem religião | |||||
Sim | 173 (21,5) | 1 | 1 | ||
Não | 9 (32,1) | 1,73 (0,77;3,89) | 0,186* | 1,09 (0,35;3,41) | 0,880 |
RO (razão de odds) para um intervalo de confiança (IC) de 95% para a razão de chances de prevalência.
* p<0,05.
Na análise ajustada, foram inseridas as variáveis que apresentavam p<0,20 na análise bruta (grupo etário; alfabetização; renda familiar; estar trabalhando; e ter religião). Nesse sentido, o nível insuficiente de AF entre os adultos quilombolas manteve-se associado com o grupo etário idoso (OR=2,12; IC95%1,29; 3,49) e com aqueles que não estavam trabalhando (OR=1,47; IC95%1,01; 2,14) (Tabela 3).
Discussão
A análise indicou que 1 em cada 5 adultos quilombolas não atendem às recomendações globais de AF suficiente para manutenção da saúde, independentemente associado ao grupo etário idoso e a não estar trabalhando.
A prevalência de AF insuficiente na população quilombola estudada é menor que os 31,1% da população mundial registrados em levantamento realizado em 122 países no ano de 2012,13e que os 46,0% identificados em população adulta brasileira em 2013.23 No entanto, é próximo aos 26,3% encontrados em quilombolas do município de Vitória da Conquista, Bahia, em 2011,24 e maior que os 17,1% observados em comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, entre 2008 e 2009.15
As disparidades nas prevalências, entre outros fatores, podem ser explicadas pelo cotidiano dos diferentes grupos populacionais. Os moradores de espaços rurais tendem a maior desenvolvimento de trabalho e deslocamento ativo,15 que impactam no aumento do dispêndio energético, em comparação àqueles residentes em espaços urbanos. Entretanto, deve-se considerar que o emprego de diferentes instrumentos de mensuração e avaliação da AF também pode gerar resultados discrepantes quanto ao desfecho investigado. Por exemplo, mesmo que se utilize o mesmo instrumento de aferição da AF, ao se deixar de considerar algum domínio de verificação de AF23 para interpretação dos dados, podem-se gerar prevalências diferentes daquelas identificadas por estudos que utilizam mais domínios.
Assim como encontrado em população negra quilombola, a baixa quantidade de AF diante do envelhecimento também foi observada em estudos de caráter nacional25 e mundial.13 O decréscimo no NAF observado com o aumento da idade pode ter relação com diversos fatores fisiologicamente limitantes impostos pela idade (redução das capacidades físicas e aparecimento de doenças), bem como aspectos sociais e psicológicos.26
Outro ponto importante refere-se às limitações ambientais impostas aos idosos residentes em comunidades vulneráveis, visto que essas comunidades podem apresentar maiores restrições de transporte, menores opções de lazer (parques, quadras e ciclovias) e/ou menores acessos a programas governamentais de incentivo à prática de AF (áreas equipadas para ginástica, por exemplo).18
Os dados obtidos neste estudo apresentaram associação positiva entre maiores NAF e estar trabalhando. Essa associação pode ser explicada pela alta aderência à prática de AF no domínio do trabalho nessas comunidades. Em estudo com população rural, foi observada uma prevalência de 30,8% (IC95% 27,0; 34,6),15 e, em estudo com comunidade rural quilombola, a prevalência de AF no domínio do trabalho foi de 42,1% (IC95% 38,6; 45,5).18
Diferentemente do observado em outros estudos de base populacional, que identificaram associação entre NAF insuficiente com sexo feminino13 ou com sexo masculino,26 a presente investigação não acompanha essa perspectiva, não tendo sido identificada a associação entre sexo biológico e NAF. A ausência de associação entre esses fatores pode estar relacionada com as particularidades do meio rural, pois, nessas localidades, mulheres e homens realizam atividades, especialmente as laborais, que demandam alto esforço físico.28
Ao contrário de outros estudos de base populacional,15 a escolaridade, após ajuste dos dados, não manteve associação positiva com a prática de AF na população negra quilombola. Essa situação leva a crer que a escolarização não é um fator consistente para a adesão à prática regular de AF nas comunidades rurais remanescentes de quilombos pesquisadas neste estudo. A divergência dos resultados aqui apresentados, em relação a outras investigações de âmbito populacional, pode ser explicada pelas particularidades sociodemográficas, econômicas, ambientais, laborais e comportamentais da população estudada. Outras pesquisas18 com participação de populações rurais alertaram que as particularidades do meio rural dificultam comparações com achados de outras análises com grupos urbanos, ou mesmo com populações rurais de outras regiões.
O presente estudo apresenta algumas limitações que devem ser apontadas. O levantamento de corte transversal não permite estabelecimento de relações de causa e efeito entre as variáveis em análise. A utilização da versão curta do IPAQ, que trabalha com informações autorreferidas pode subestimar ou superestimar os valores de AF, não permite o fracionamento dos domínios de AF e, enquanto questionário, é sujeito ao viés de compreensão e de memória. Contudo, o instrumento passou por processo de validação na população brasileira,21 além de ser bastante difundido em trabalhos internacionais.12
Este estudo contribui na apresentação de informações de população remanescente quilombola. As dimensões populacional e territorial podem ser utilizadas para a implementação de políticas e programas públicos de AF e saúde em comunidades que frequentemente se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Além disso, questões metodológicas, como a utilização de acelerômetros para avaliação do NAF e de um questionário detalhado sobre a prática religiosa desse grupo populacional, podem ser exploradas em estudos futuros.
As informações epidemiológicas obtidas no estudo indicam que os moradores de comunidades remanescentes de quilombos no interior baiano apresentam baixa prevalência de comportamento insuficiente de AF. Além disso, estilo de vida ativo apresentou-se inversamente relacionado com a idade e positivamente associado com o exercício de atividade laboral, o que chama a atenção para a necessidade de implementação de políticas públicas para o incentivo de AF entre idosos.