Introdução
Desde 1968 o sarampo é uma doença de notificação compulsória no Brasil. Em 1986, houve o maior número de casos da doença notificados (n=129.942), representando uma taxa de incidência de 97,7 por 100 mil habitantes. Até o ano de 1991, o país enfrentou nove epidemias, sendo aproximadamente uma a cada dois anos. Entre os meses de março de 2013 e março de 2014, foram confirmados no estado de Pernambuco 224 casos da doença. No estado do Ceará, de dezembro de 2013 a maio de 2014, foram confirmados 174 casos de sarampo. Em 2014, ocorreram 114.900 óbitos por complicações de sarampo no mundo todo, cerca de 314 óbitos/dia ou 13 óbitos/hora.1
Eliminado das Américas em 2016, o sarampo mantém-se como um problema de Saúde Pública, principalmente na Europa e na Ásia, onde sua ocorrência é endêmica, causa de frequentes surtos. Este cenário epidemiológico impõe a necessidade de manutenção de altas e homogêneas coberturas vacinais, constante vigilância epidemiológica, mesmo em países onde não há mais circulação do vírus.2
Cabe salientar que, em 2012, o Brasil vivia a menor cobertura vacinal dos últimos dez anos, de 84,9%, inferior à meta estabelecida pela autoridade sanitária, tornando o país suscetível à transmissão do vírus.3 O fluxo intenso de pessoas circulando pelo território brasileiro pode ter contribuído para o ressurgimento da doença, que não era registrada desde 1998 no Ceará.4
O primeiro novo caso de sarampo notificado no estado aconteceu no município de Fortaleza, em dezembro de 2013. No mesmo período, dos 184 municípios cearenses, 38 registraram pelos menos um caso confirmado. Entretanto, três se sobressaem pelo número de casos: Fortaleza (395), Massapê (129) e Caucaia (91). Destaca-se, ainda, a incidência da infecção em crianças menores de 1 ano de idade (40% dos casos), a maior parte delas concentrada em bairros da Coordenadoria Regional de Saúde V (CORES V) de Fortaleza, palco do presente estudo.5
O sistema de vigilância epidemiológica da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará notificou, de dezembro de 2013 a setembro de 2015, 4.631 casos suspeitos de sarampo, dos quais 23% (1.052) se confirmaram e 77% (3.559) foram descartados. No período de março a novembro de 2014, foi registrada a maior incidência, com 8,6 casos/100 mil hab. O vírus do sarampo foi identificado em 38 (20,7%) dos 184 municípios do estado, e a transmissão permaneceu por 20 meses.1
O ressurgimento do sarampo foi um grande revés para a Saúde Pública, mostrando que a doença continua a representar uma ameaça real, e demanda vigilância contínua e novas formas de enfrentamento para que não volte a ser, como na década de 1970, principal causa de morte entre doenças imunopreveníveis da infância.6
Cabe salientar a importância da Estratégia Saúde da Família como porta de entrada no sistema de saúde, na prevenção das doenças imunopreveníveis e promoção da educação em saúde e vigilância das doenças em sua área de abrangência. A equipe de Saúde da Família deve estar apta a identificar o agravo, notificá-lo às instâncias superiores e oferecer o tratamento adequado, quando possível.
Este artigo relata a atuação da Estratégia Saúde da Família (ESF) de uma unidade de Atenção Primária à Saúde (APS) com o objetivo de enfrentar a epidemia de sarampo no município de Fortaleza, Ceará, de dezembro de 2013 a setembro de 2015.
Contexto
A cidade de Fortaleza é dividida em sete Secretarias Regionais - I, II, III, IV, V, VI e Centro -, constituídas por espaços geográficos contínuos, delimitados por bairros e características vinculadas ao território que cada uma delas ocupa, estando a Saúde do município organizada por coordenadorias administrativas responsáveis pelo planejamento, organização e execução de ações de promoção da saúde de sua população.
A unidade de APS José Paracampos se encontra no âmbito da Coordenadoria Regional V (CORES V), uma das maiores do município, menor em extensão apenas do que a CORES VI. Entretanto, a CORES V é a maior em adensamento populacional, com 83,5 hab./ha,1 e apresenta um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) da cidade: 0,44. A CORES V possui 18 bairros oficiais e um dado importante para a temática do sarampo: é uma regional das mais jovens populações, 44% de seus residentes têm menos de 20 anos.7
A unidade de APS em questão contava com cinco equipes de Saúde da Família, quatro delas completas - com médico, enfermeiro, dentista, auxiliares de enfermagem e de saúde bucal e agentes comunitários de saúde (ACS) (39) - e uma incompleta. O território possuía uma população de 31.417 habitantes, distribuídos em 39 microáreas, das quais oito desassistidas por ACS.
Fontes de dados
O estudo utilizou os seguintes instrumentos: cronograma semanal de ações contra o sarampo, por equipe; notificação negativa semanal; monitoramento diário do número de vacinados; notificação compulsória dos casos suspeitos; e realização de monitoramento rápido de cobertura vacinal (MRC). A unidade de saúde optou por ampliar, mediante quadro localizado na sala de situação, o acompanhamento diário da meta de vacinação por equipe. Assim, todas as equipes poderiam acompanhar seu desempenho frente à meta estabelecida.
O MRC correspondia à coleta amostral em crianças de 6 meses a 5 anos de idade, solicitada pela Secretaria Municipal de Saúde e realizada por equipe externa, nas áreas onde haviam ocorrido as varreduras, com o objetivo de verificar a homogeneidade das coberturas e realizar possíveis resgates de crianças não vacinadas.
Os dados levantados, registrados diariamente na sala de situação da unidade de saúde, foram analisados por meio da estatística descritiva.
Estratégias adotadas
A estratégia central, instituída pela Secretaria da Saúde do Estado e pela Secretaria Municipal, consistia na intensificação vacinal com a vacina dupla viral (sarampo/rubéola) na população de 5 a 29 anos de idade. Nesse processo, estiveram envolvidos, direta ou indiretamente, cerca de 70 profissionais, entre ACS, enfermeiras, técnicos de enfermagem e outros. Destaca-se que então se contava, para além das equipes existentes, com enfermeiras volantes, cujo papel era o de auxílio nas varreduras, bloqueios e sistematização da vacinação extramuros, ou seja, fora das dependências da unidade de saúde.
Foram realizados, por equipe, cronogramas semanais de ações contra o sarampo, tais como: vacinação diária; notificação negativa semanal; monitoramento diário do número de vacinados; notificação compulsória dos casos suspeitos; e realização de monitoramento rápido de cobertura vacinal (MRC).
As ações se iniciaram com a capacitação e atualização sobre a doença e o calendário nacional básico de vacinação. Após esse primeiro momento, as enfermeiras foram incluídas na coordenação e supervisão dos técnicos de enfermagem e ACS nas seguintes ações:
varredura casa a casa em 100% das microáreas (inclusive as descobertas);
vacinação seletiva de todas as pessoas na faixa etária de 5 a 29 anos;
incentivo ao aleitamento materno dos menores de 6 meses;
dose extra nas crianças de 6 a 11 meses de idade (dose única - recomendação do Ministério da Saúde, em sua Nota Informativa nº 19/2014);
reconhecimento e suspeição de casos, com encaminhamento à unidade de saúde e notificação imediata;
bloqueio oportuno, em até 72 horas, a partir do caso-índice suspeito, em todo o seu entorno e percurso;
coleta precoce de material para sorologia, até quatro dias do 1º dia do exantema, com 2ª coleta após 20-25 dias;
monitoramento dos casos confirmados, até sua cura; e
verificação do estado vacinal das demais faixas etárias existentes no território.
Destaca-se o importante trabalho do ACS: (i) o levantamento nominal de todas as crianças menores de 5 anos, em planilha específica para registro do endereço e da situação vacinal de cada uma; (ii) o acompanhamento de todas as visitas domiciliares de varreduras; participação nos mutirões em equipamentos sociais e/ou comerciais; e (iii) as visitas programadas aos casos de recusa.
Com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a unidade de APS tinha como meta alcançar as 20.249 mil pessoas vacinadas no prazo aproximado de 22 dias (1.000 doses/dia). No planejamento local, decidiu-se trabalhar nos sete dias da semana, inclusive feriados e período noturno, com o objetivo de alcançar a população jovem que se deslocava para o trabalho durante o dia, como também atingir locais cujo principal horário/período de encontro era o noturno ou os finais de semana.
Decorrente da meta diária de pessoas a serem vacinadas, de 1.000/dia, contava-se com a participação maciça dos profissionais de enfermagem (enfermeiros e técnicos), os vacinadores propriamente ditos. O apoio oferecido pelos ACS era imprescindível, haja vista serem eles os que levavam as equipes de vacinação aos locais de mais difícil acesso.
Para atingir a população jovem, entre 12 e 29 anos, em que a cobertura vacinal foi mais baixa, as equipes realizaram a vacinação nos mais diversos locais, escolas e universidades, empresas e fábricas, supermercados e mercadinhos, associações de moradores etc., procurando-os em seus locais de estudo e trabalho. Estes foram os principais desafios à consecução das ações de vacinação.
Contou-se, ademais, com a disponibilidade e parceria dos espaços sociais para a realização da vacinação. A comunidade se tornou corresponsável, juntamente com as equipes de saúde, na facilitação de todo o processo de trabalho para o enfrentamento da epidemia.
Outro importante destaque a se fazer é a articulação entre a vigilância epidemiológica e as equipes de Saúde da Família, medida fundamental para a tomada de decisões em tempo hábil.8
Resultados
O número de pessoas vacinadas por dia, por equipe, oscilou de 36 a 547, e estava diretamente relacionado à quantidade de equipes de trabalho, resultado possível de visualizar na tabela de monitoramento de cobertura vacinal utilizada durante a epidemia, cujo objetivo era acompanhar a intensificação da vacina dupla viral, contemplando, ademais, a população pendente de vacinação, meta diária acumulada e rendimento por equipe/hora. Na mesma tabela, era registrado o número de doses de vacinas aplicadas por dia, na faixa etária de 5 a 29 anos, e o número de equipes que realizavam a vacinação; as demais filas atualizavam-se automaticamente (Tabela 1).
Variáveis | Faixa etária (em anos) | Total | |
---|---|---|---|
5 a 11 | 12 a 29 | ||
Meta (número de doses) | 4.931 | 15.318 | 20.249 |
Doses diárias máximas aplicadas (N) | 574 | 976 | 1.550 |
Doses acumuladas (N) | 4.980 | 11.770 | 16.726 |
Cobertura vacinal (%) | 101 | 76,8 | 82,6 |
População pendente de vacina (N) | - | - | 3.523 |
Equipes (M) | - | - | 5 |
Número de doses administradas por equipe, por dia (N) | - | - | 133 |
Número de doses administradas (N) | - | - | 17 |
Ao final da campanha, havia-se vacinado um total de 16.726 pessoas na faixa etária de 5-29 anos, e alcançado meta de cobertura vacinal de 82,6% estipulada para a unidade de saúde. Dos vacinados, 4.980 foram crianças entre 5 e 11 anos de idade, com cobertura de 101%; e 11.770, jovens de 12 a 29 anos, alcançando 76,8% de cobertura nesta faixa etária (Tabela 1). O resultado da vacinação manteve a área de abrangência da unidade de APS categorizada como zona de baixo risco.
Das 20 unidades de APS existentes na CORES V, cinco contavam com população similar à da unidade em estudo, estimada entre 17.500 e 21.500 hab., média de 19.607 hab.; a unidade estudada obteve o segundo melhor êxito em cobertura vacinal.
Importante ressaltar que, no MRC de 2015/2, alcançou-se a cobertura vacinal com a vacina tríplice viral de 95% em crianças que haviam recebido a 1ª dose de vacina em dia (D1), e de 100% em crianças com as duas doses aplicadas (D2).
Frisa-se que a unidade de saúde registrou em sua área de abrangência, em 2014 e 2015, 19 casos suspeitos de sarampo, dos quais três se confirmaram: dois em crianças menores de 1 ano e um em jovem de 27 anos. Seus dados eram monitorados pela Vigilância Epidemiológica da CORES V e atualizados diariamente, para as unidades de saúde, com especial atenção às suspeições de casos novos, para que as ações do dia seguinte fossem redirecionadas com o objetivo de quebrar, de maneira oportuna, a cadeia de transmissão da doença.
Discussão
As estratégias adotadas contribuíram para o alcance da meta de cobertura vacinal na população-alvo, fazendo com que a população adscrita à área de abrangência da unidade de APS se situasse na categoria de baixo risco para transmissão do sarampo.
A escassez de literatura sobre a atuação das equipes da ESF em situações de crise foi um fator dificultador para a superação dos desafios impostos. Junto às coordenações municipal e estadual, as equipes tiveram de criar estratégias próprias para que pudessem enfrentar a epidemia.
Diferentemente do ocorrido no estado do Ceará, em investigação realizada no estado do Pará sobre o surto de sarampo, verificou-se que as elevadas taxas de coberturas vacinais alcançadas na vacinação de rotina ou em campanhas anteriores contribuíram para a contenção do surto na região, visto que foram aplicadas poucas doses no período, e que os bloqueios e intensificações foram direcionadas.9
Após 20 semanas de epidemia, em setembro de 2015, o Ceará decretou a interrupção da transmissão do vírus do sarampo. Importante salientar que, em todo o estado, grande parte da população de 6 meses de vida a 29 anos de idade não havia realizado a vacinação contra sarampo, visto em mais de 90% dos casos confirmados e 40% dos suspeitos, indicando que a cobertura vacinal acima de 95% era apenas administrativa, e não efetiva.1
A reemergência da epidemia aponta a permanência dos desafios de promover (i) uma vigilância epidemiológica receptiva e adequada para detecção da suspeição de casos, (ii) a busca ativa, de casos suspeitos e/ou confirmados em unidades silenciosas, pelas equipes de saúde, e (iii) a sensibilização de profissionais de saúde da rede pública e privada quanto à obrigatoriedade da notificação compulsória.9
Nos últimos anos, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) tem apresentado muitos avanços, sendo um destes o Sistema de Informações do PNI (SI-PNI). O SI-PNI possibilita registrar a vacina administrada de cada indivíduo, e sua procedência, permitindo uma avaliação mais fidedigna dessas informações, além de servir a estimativas da cobertura vacinal, cujo impacto pode ir além do âmbito administrativo.1
Espera-se que as campanhas periódicas de vacinação, juntamente com a vacinação de rotina, continuem a assegurar a imunidade da população, minimizando os riscos da ocorrência de novas epidemias. Seu sucesso dependerá do empenho de todos, não só do setor Saúde, mas também da sociedade em geral, cujo apoio tem-se mostrado imprescindível para a eliminação do sarampo no Brasil e na Região das Américas.9
Diante do exposto, destaca-se o envolvimento - competente e responsável - dos trabalhadores das equipes da Estratégia Saúde da Família, imprescindível para o desenvolvimento, organização e implementação de um planejamento fundado na definição de objetivos e estratégias de ação, tão complexas quanto céleres na prevenção e controle de epidemias, a exemplo do sarampo. A corresponsabilização e o acolhimento da comunidade, acompanhados do apoio e do compromisso institucional com sua operacionalização, são essenciais para o sucesso dessas ações.