Introdução
Quando o primeiro óbito por COVID-19 (acrônimo para Corona Virus Disease 2019) foi notificado no Brasil, em 17 de março de 2020, 20 dias após o registro do primeiro caso, a doença já havia sido declarada como pandêmica pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e havia sido, em grande parte, controlada na China. A Europa acumulava mais de 64 mil casos e 3 mil mortes, sendo a Itália o país mais afetado.1 Naquele momento, autoridades sanitárias e governamentais do Brasil, assim como a maioria da população, já acompanhavam os avanços e os impactos da pandemia em outros países.
Um evento de Saúde Pública de larga escala como esse, provocado por um vírus novo, exige esforços em inúmeras áreas, especialmente na organização dos serviços de saúde. A necessidade de garantir a adequada provisão de equipamentos e leitos nas unidades de terapia intensiva (UTIs) conduziu as autoridades sanitárias e governamentais de todos os países mais atingidos pela pandemia a recomendar e decretar, em maior ou menor grau, duração e extensão territorial, medidas de quarentena, isolamento ou distanciamento social.2,3
Diante de contextos como o presente, é compreensível que os esforços práticos e científicos estejam focados nos aspectos biológicos da doença em questão.4 Todavia, o contexto pandêmico e as medidas de controle preconizadas afetam a população em muitas dimensões das condições de vida e de saúde e, entre elas, de forma significativa, o componente de saúde mental. A presença de transtornos mentais, sofrimento psíquico e alterações do sono exerce reconhecidos efeitos negativos no cotidiano e na qualidade de saúde e de vida das pessoas, contribuindo com percentual relevante de anos vividos com incapacidades.5,6 Transtornos mentais podem se agravar ou constituir fatores de risco para doenças crônicas7 e doenças virais,8 além de influenciar a adoção de comportamentos relacionados à saúde.9 Em períodos de epidemias e isolamento social, a incidência ou agravamento desses quadros tende a aumentar.
Revisão desenvolvida por Brooks et al.,2 sobre pesquisas que analisaram o impacto psicológico da quarentena em epidemias prévias, reporta que a maioria dos estudos verificou efeitos psicológicos negativos, e que os principais fatores de estresse identificados foram a duração da quarentena, o medo da infecção, os sentimentos de frustração e de aborrecimento, a informação inadequada sobre a doença e seus cuidados, as perdas financeiras e o estigma da doença. Os estudos revistos relatavam a ocorrência, nas pessoas em quarentena, de sintomas psicológicos, distúrbios emocionais, depressão, estresse, humor depressivo, irritabilidade, insônia e sintomas de estresse pós-traumático. Outros aspectos que vêm sendo identificados como estressores na pandemia de COVID-19 são a veiculação de informações falsas e sem base científica, as notícias alarmantes e o excesso de tempo dedicado às notícias sobre a pandemia,10 além de condições bastante concretas de falta de alimentos, de recursos financeiros e de medicação para outras doenças.3,11
A relevância dos aspectos emocionais durante processos epidêmicos tem levado autores a identificar, junto à ocorrência de COVID-19, uma “pandemia do medo”3 ou a “coronafobia”.12 Pesquisas realizadas na China têm reportado prevalências elevadas de depressão e ansiedade no conjunto da população estudada, especialmente em alguns segmentos específicos da população, como nos trabalhadores do setor da Saúde.5,10,13 Pessoas que precisaram respeitar a quarentena apresentaram maiores prevalências de depressão e de ansiedade, comparadas aos não afetados pela medida.14 Estudo no País Basco encontrou altas prevalências de depressão e ansiedade durante a pandemia, com maiores valores no sexo feminino.14
As pesquisas também apontam que indivíduos com transtornos mentais tendem a apresentar níveis mais elevados de estresse e sofrimento psicológico durante a quarentena provocada pela COVID-19, comparados a pessoas sem esses transtornos,15 em decorrência tanto da maior vulnerabilidade psíquica como de outros fatores; por exemplo, a dificuldade de acesso a tratamento durante a pandemia.11 Nesse sentido, a observação da presença de tristeza e ansiedade durante a pandemia, entre pessoas com ou sem transtornos mentais como depressão, pode ajudar na definição e/ou orientação de políticas específicas para grupos de risco.
Considerando-se as evidências quanto à relevância de problemas emocionais e de sono, iniciados ou agravados em processos epidêmicos, este estudo teve por objetivo analisar a frequência de tristeza, nervosismo e alterações do sono durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, identificando os segmentos demográficos mais afetados.
Métodos
Este estudo transversal utilizou dados da pesquisa ‘ConVid – Pesquisa de Comportamentos’, desenvolvida por iniciativa da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coletados entre 24 de abril e 24 de maio de 2020. A ConVid é uma pesquisa de saúde, conduzida por um questionário virtual, constituído de questões sobre características sociodemográficas e alterações em estilos de vida, atividades de rotina, estado de ânimo e condições de saúde, e também no acesso aos serviços de saúde, durante o período de distanciamento social decorrente da pandemia de COVID-19.
O questionário, elaborado com a utilização do aplicativo RedCap (Research Eletronic Data Capture), que consiste em uma plataforma digital de coleta, gerenciamento e disseminação de dados, foi preenchido por telefone celular ou computador com acesso à internet.
O processo de obtenção da amostra foi não probabilístico. Os participantes foram convidados a participar da pesquisa por meio de um procedimento de amostragem em cadeia. Na primeira etapa, cada pesquisador do estudo escolheu 20 outros pesquisadores de diferentes estados do Brasil, chamados de influenciadores. Os influenciadores enviaram o link da pesquisa para pelo menos 12 pessoas das suas redes sociais, obedecendo a uma estratificação por sexo, faixa de idade (em anos: 18 a 39; 40 a 59; 60 e mais) e grau de escolaridade (ensino médio incompleto ou menos; ensino médio completo ou mais), para se conseguir uma diversidade de respondentes. A cada uma dessas pessoas, foi solicitado que convidasse outras três pessoas de suas redes sociais, e assim por diante. Foram selecionados influenciadores de todas as macrorregiões do país, buscando-se obter uma amostra de abrangência nacional. As informações sobre o estudo também foram divulgadas mediante comunicados à imprensa e comunicação social das instituições de pesquisas participantes, secretarias de estado de saúde e mídias sociais.
Neste estudo, foram analisados os relatos de sentir-se triste ou deprimido, por meio da pergunta:
No período da pandemia, com que frequência você se sentiu triste, cabisbaixo(a) ou deprimido(a)?
E o relato de sentir-se ansioso ou nervoso, analisado com a pergunta:
No período da pandemia, com que frequência você se sentiu preocupado(a), ansioso(a) ou nervoso(a)?
Para ambas as perguntas, estavam previstas as categorias de resposta ‘Nunca’, ‘Poucas vezes’, ‘Muitas vezes’ e ‘Sempre’.
Em relação ao sono, foram analisadas as variáveis: ‘começou a ter problema de sono durante a pandemia’ (entre os que não apresentavam esse problema antes da pandemia) e ‘piora de problema de sono’ (entre os que já apresentavam o problema antes da pandemia). Essas variáveis foram construídas a partir da pergunta:
A pandemia afetou a qualidade do seu sono?
Esta pergunta apresentava, como alternativas de resposta: ‘Não afetou nada, continuo dormindo bem’, ‘Com a pandemia, comecei a ter problemas de sono’, ‘Eu já tinha problemas de sono e eles continuaram da mesma forma’, ‘Eu já tinha problemas de sono e eles pioraram bastante’ e ‘Eu já tinha problemas de sono, mas eles diminuíram’.
Essas variáveis foram analisadas segundo faixa etária (em anos: 18 a 29; 30 a 59; 60 e mais), sexo e presença de antecedente de depressão.
A variável ‘antecedente de depressão ou relato de depressão prévia’ foi obtida com a proposição da seguinte questão:
Algum médico já lhe deu o diagnóstico de alguma dessas doenças?
Entre as seis doenças elencadas, encontrava-se a depressão.
Foram utilizados pesos de pós-estratificação com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2019) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a fim de obter, para a amostra, a mesma distribuição por sexo, faixa etária, raça/cor da pele e escolaridade da população brasileira. Estimaram-se as prevalências e intervalos de confiança de 95% (IC95%) de (i) sentir-se triste ou deprimido, (ii) sentir-se ansioso ou nervoso e (iii) alteração da qualidade do sono, durante a pandemia. Para essas variáveis, também foram calculadas as razões de prevalências (RP), brutas e ajustadas por sexo e idade, e os valores de p e os IC95% segundo faixa etária, sexo e presença de antecedente de depressão, utilizando-se modelos de regressão múltipla de Poisson. Em todas as análises, considerou-se o nível de significância de 5%. Todas as análises foram conduzidas com o uso do software Stata 15.0, utilizando-se os módulos survey, que permitem considerar os pesos de pós-estratificação.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz (CEP/Fiocruz) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), sob o Parecer n° 3.980.277, emitido em 19 de abril de 2020, e o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 30598320.1.0000.5241. Fez-se um upload do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para o aplicativo RedCap. Após ler sobre a pesquisa e concordar em responder ao questionário, o respondente poderia fazer o download do TCLE em seu celular ou notebook.
Resultados
Os resultados referem-se aos dados de uma amostra de 45.161 respondentes, que incluiu pessoas de todas as macrorregiões do país (45,5% do Sudeste, 25,0% do Nordeste, 15,1% do Sul, 7,7% do Norte e 6,7% do Centro-Oeste). Entre os participantes da amostra, 53,6% (IC95% 52,1;55,0) eram do sexo feminino, 20,3% (IC95% 19,1;21,6) contavam 60 anos ou mais, e 24,7% (IC95% 23,5;25,9), 18 a 29 anos de idade; 14,9% (IC95% 13,9;15,8) registravam antecedente/diagnóstico prévio de depressão. Entre os adultos jovens (18 a 29 anos), 44,0% (IC95% 41,4;46,7) eram estudantes, e 19,2% (IC95% 17,1;21,4) casados. Entre os idosos, 38,7% (IC95% 35,4;42,2) eram aposentados e não trabalhavam.
O estudo revelou que, durante o período da pandemia e de distanciamento social analisado, 40,4% (IC95% 39,0;41,8) dos brasileiros sentiram-se tristes ou deprimidos muitas vezes ou sempre (Tabela 1), e um percentual ainda maior, 52,6% (IC95% 51,2;54,1), referiu sentir-se ansioso ou nervoso sempre ou quase sempre. Entre os brasileiros adultos que não tinham problema de sono antes da pandemia, 43,5% (IC95% 41,8;45,3) passaram a apresentar o problema e, entre aqueles que referiram história prévia de problema de sono, 48,0% (IC95% 45,6;50,5) tiveram o problema agravado.
Variáveis | % (IC95%)b | |
---|---|---|
Frequência de sentir-se triste ou deprimido | ||
Nunca | 18,6 (17,4;19,9) | |
Poucas vezes | 41,0 (39,6;42,4) | |
Muitas vezes | 35,2 (33,8;36,6) | |
Sempre | 5,2 (4,7;5,8) | |
Frequência de sentir-se ansioso ou nervoso | ||
Nunca | 12,3 (11,3;13,3) | |
Poucas vezes | 35,1 (33,7;36,5) | |
Muitas vezes | 41,3 (39,9;42,8) | |
Sempre | 11,3 (10,4;12,3) | |
Problemas de sono | ||
Aumento de problema de sono prévio | 48,0 (45,6;50,5) | |
Início de problema de sono | 43,5 (41,8;45,3) |
a)Estimativas ponderadas pelo peso de pós-estratificação.
b)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Constata-se que os adultos jovens, na faixa de 18 a 29 anos, foram os mais afetados em relação aos problemas listados (Tabela 2). Enquanto 27,5% (IC95% 24,7;30,6) dos idosos relataram sentir-se muitas vezes ou sempre tristes ou deprimidos, esse sentimento atingiu 53,8% (IC95% 51,1;56,4) dos adultos jovens; 9,1% (IC95% 7,8;10,5) dos adultos jovens referiram sentir-se sempre tristes, percentual que é 2,9 (IC95% 2,0;4,1) vezes o observado nos idosos. Sentir-se nervoso ou ansioso sempre ou quase sempre também foi reportado por 31,7% (IC95% 28,6;34,9) dos idosos e por 69,5% (IC95% 67,1;71,7) dos adultos jovens. A prevalência de sentir-se sempre ansioso/nervoso, nos mais jovens, foi 3,7 (IC95% 2,7;5,2) vezes a observada nos idosos. Ainda comparados com os idosos, para os adultos jovens a piora de problema prévio de sono foi duas vezes maior (IC95% 1,7;2,4), e o início de problema de sono, 84% maior (IC95% 1,6;2,1).
Variáveis | Faixas etárias (anos) | RPa (IC95%)b (1/3) | RPa (IC95%)b (2/3) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
18-29 (1) | 30-59 (2) | ≥60 (3) | ||||
Frequência de sentir-se triste ou deprimido | ||||||
Nunca | 9,6 | 19,0 | 28,5 | 0,32 (0,26;0,39) | 0,65 (0,56;0,75) | |
Poucas vezes | 36,6 | 41,9 | 43,9 | 0,83 (0,74;0,92) | 0,95 (0,87;1,04) | |
Muitas vezes | 44,7 | 35,0 | 24,2 | 1,91 (1,67;2,17) | 1,47 (1,29;1,67) | |
Sempre | 9,1 | 4,1 | 3,3 | 2,87 (1,99;4,14) | 1,28 (0,88;1,87) | |
Frequência de sentir-se ansioso ou nervoso | ||||||
Nunca | 7,0 | 10,6 | 23,1 | 0,29 (0,23;0,36) | 0,45 (0,38;0,53) | |
Poucas vezes | 23,5 | 36,6 | 45,2 | 0,51 (0,54;0,57) | 0,80 (0,73;0,88) | |
Muitas vezes | 50,2 | 42,9 | 26,3 | 1,94 (1,72;2,19) | 1,65 (1,47;1,86) | |
Sempre | 19,3 | 9,9 | 5,4 | 3,71 (2,67;5,16) | 1,86 (1,34;2,59) | |
Problemas de sono | ||||||
Aumento de problema de sono prévio | 58,8 | 50,1 | 30,2 | 2,03 (1,69;2,44) | 1,69 (1,41;2,03) | |
Início de problema de sono | 53,2 | 44,3 | 29,1 | 1,84 (1,59;2,15) | 1,53 (1,32;1,77) |
a)RP: razões de prevalência ajustadas por sexo, utilizando-se 60 anos e mais como categoria de referência.
b)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Nota: Valores em negrito: p<0,05.
Sentir-se sempre com tristeza/depressão e sentir-se sempre com ansiedade/nervosismo foram duas vezes mais frequentes nas mulheres, comparadas aos homens (Tabela 3), com RP=2,1 (IC95% 1,6;2,6) e RP=1,9 (IC95% 1,6;2,4), respectivamente. Passaram a ter problema de sono durante a pandemia 37,1% (IC95% 34,2;40,2) dos homens e 49,8% (IC95% 47,9;51,8) das mulheres, e um percentual maior delas apresentou agravamento de problema prévio de sono (RP=1,4 – IC95% 1,2;1,6) (Tabela 3). Vale ressaltar que as diferenças entre os sexos persistem, com valores similares, quando ajustadas pela presença de depressão prévia (dados não apresentados em tabela).
Variáveis | Sexo | RPa (IC95%)b | ||
---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | |||
Frequência de sentir-se triste ou deprimido | ||||
Nunca | 26,2 | 12,1 | 0,44 (0,39;0,51) | |
Poucas vezes | 44,3 | 38,2 | 0,86 (0,80;0,92) | |
Muitas vezes | 26,2 | 43,0 | 1,67 (1,52;1,84) | |
Sempre | 3,4 | 6,8 | 2,09 (1,65;2,65) | |
Frequência de sentir-se ansioso ou nervoso | ||||
Nunca | 16,6 | 8,5 | 0,49 (0,42;0,57) | |
Poucas vezes | 40,3 | 30,6 | 0,74 (0,69;0,80) | |
Muitas vezes | 35,4 | 46,4 | 1,33 (1,24;1,44) | |
Sempre | 7,7 | 14,4 | 1,95 (1,60;2,38) | |
Problemas de sono | ||||
Aumento de problema de sono prévio | 39,6 | 53,7 | 1,41 (1,25;1,58) | |
Início de problema de sono | 37,1 | 49,8 | 1,35 (1,24;1,48) |
a)RP: razão de prevalências ajustada por idade, utilizando-se o sexo masculino como categoria de referência.
b)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Nota: Valores em negrito: p<0,05.
A frequência desses sentimentos negativos foi maior nas pessoas com antecedente/diagnóstico prévio de depressão (Tabela 4). Tristeza/depressão sempre ou quase sempre ocorreu em 70% (IC95% 67,1;72,9) das pessoas com diagnóstico prévio de depressão e em 35,2% (IC95% 33,7;36,7) daquelas sem esse diagnóstico. Da mesma forma, entre os indivíduos com antecedente de depressão, sentir-se sempre ansioso/nervoso foi 2,3 (IC95% 1,9;2,7) vezes o observado naqueles que não tinham esse diagnóstico. Um maior percentual de indivíduos com antecedente de depressão reportaram piora de problema prévio de sono – 62,1% (IC95% 57,6;66,5) – quando comparados aos que não tinham esse antecedente – 43,1% (IC95% 40,32;45,9) –, e surgimento de problema de sono durante a pandemia – 56,6% (IC95% 51,5;61,6) – quando comparados aos 42,2% (IC95% 40,3;44,1) que não apresentavam depressão antes da pandemia.
Variáveis | Sem antecedente de depressão | Com antecedente de depressão | RPa (IC95%)b | |
---|---|---|---|---|
Frequência de sentir-se triste ou deprimido | ||||
Nunca | 20,9 | 5,4 | 0,30 (0,22;0,42) | |
Poucas vezes | 43,9 | 24,6 | 0,57 (0,51;0,64) | |
Muitas vezes | 31,3 | 57,6 | 1,59 (1,44;1,74) | |
Sempre | 3,9 | 12,4 | 1,87 (1,47;2,36) | |
Frequência de sentir-se ansioso ou nervoso | ||||
Nunca | 13,8 | 3,6 | 0,31 (0,22;0,45) | |
Poucas vezes | 38,3 | 17,1 | 0,47 (0,41;0,54) | |
Muitas vezes | 38,8 | 55,9 | 1,35 (1,26;1,46) | |
Sempre | 9,2 | 23,3 | 2,26 (1,92;2,66) | |
Problemas de sono | ||||
Aumento de problema de sono prévio | 43,1 | 62,1 | 1,35 (1,23;1,49) | |
Início de problema de sono | 42,2 | 56,5 | 1,24 (1,12;1,37) |
a)RP: razão de prevalências ajustada por sexo e idade, utilizando-se ‘sem antecedente de depressão’ como categoria de referência.
b)IC95%: intervalos de confiança de 95%.
Nota: Valores em negrito: p<0,05.
Discussão
Os resultados da pesquisa mostram que, durante o período da pandemia estudado, em que os casos confirmados de COVID-19 no Brasil ascenderam de 45.757 para 330.890, e as mortes, de 2.906 para 21.048,1 o sentimento frequente de tristeza/depressão atingiu 40% dos adultos brasileiros, e a frequente sensação de ansiedade e nervosismo foi reportada por mais de 50% deles. Entre os que não tinham problema de sono, mais de 40% passaram a ter e quase 50% dos que já tinham tiveram o problema agravado. Os sentimentos de tristeza e de ansiedade e os problemas do sono revelaram prevalências mais elevadas em adultos jovens, mulheres e pessoas com diagnóstico prévio de depressão.
Na China, estudo que incluiu 1.210 respondentes de 194 cidades, realizado entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro de 2020, revelou que 53,8% dos entrevistados apresentaram impacto psicológico moderado ou grave, sendo que 16,5% foram detectados com sintomas depressivos, 28,8% com ansiedade e 8,1% com elevado nível de estresse.4 Outro estudo, conduzido com 1.593 participantes do sudoeste da China, em províncias próximas a Hubei (o epicentro da epidemia no país), comparou pessoas afetadas pela quarentena (ou seja, elas mesmas, seus familiares ou amigos ficaram em quarentena) com pessoas que não foram afetadas por essa condição.13 Os autores detectaram, entre as pessoas não afetadas pela quarentena, proporções de 6,7% de ansiedade e 11,9% de depressão, sendo essas prevalências maiores nas pessoas afetadas pela quarentena, 12,9% e 22,4% respectivamente.13 Pesquisa mais abrangente, com 7.236 pessoas, igualmente realizada na China, encontrou prevalência de 35,1% de ansiedade, 20,1% de sintomas depressivos e 18,2% de pessoas com qualidade de sono ruim. As prevalências foram superiores na província de Chingging, que faz divisa com Hubei.10
Também no País Basco, norte da Espanha, pesquisa realizada durante a pandemia, no período de 11 a 15 de março, com 976 pessoas, detectou 21% de depressão e 25,9% de ansiedade nos indivíduos do sexo feminino e, respectivamente, 17,3% e 13% no sexo masculino.14 Valores elevados de ansiedade e depressão durante a pandemia e em condição de quarentena ou isolamento social, conforme detectado no presente estudo, também foram verificados nessas outras pesquisas, embora com prevalências diferentes em função do uso de diferentes tipos de amostras, realização desses estudos em diferentes momentos e contextos da pandemia, diferenças culturais, ademais da utilização de diferentes instrumentos de avaliação, como Impact of Event Scale-Revised (IES-R),4 Depression, Anxiety and Stress Scale (DASS),4,14 Self-rating Anxiety Scale (SAS),13 Self-rating Depression Scale (SDS),13 Generalized Anxiety Disorcer-7 Scale (GAD-7)10 Center for Epidemiology Scale for Depression (CES-D),10 entre outros motivos.
No presente estudo, constatou-se que os adultos jovens apresentaram maior prevalência de sintomas negativos de saúde mental no decorrer da pandemia, frente aos participantes nas idades mais avançadas. ‘Sentir-se sempre triste’ é quase o triplo e ‘sentir-se sempre ansioso’ quase o quádruplo nesse segmento etário, em comparação aos mais idosos. Também entre os mais jovens, foi mais frequente o início de problemas de sono durante a pandemia ou o agravamento desses problemas quando preexistentes. É interessante destacar que, inversamente a esses achados, alguns autores chamam a atenção para a maior vulnerabilidade dos idosos a problemas emocionais/mentais durante crises e epidemias.16,17 A maior letalidade da infecção por COVID-19 nos idosos e o fato de a China ter a maior população idosa do planeta levaram à organização de serviços especiais para atender à saúde mental desse segmento,16 especialmente quando se considera que a prevalência de sintomas depressivos em idosos na China atinge 23,6%.18
Entretanto, assim como na presente pesquisa brasileira, o estudo realizado por Huang e Zhao,10 na China, encontrou maior prevalência de desordens de ansiedade e de sintomas depressivos nos indivíduos com menos de 35 anos de idade, comparados aos demais, em uma amostra de 7.236 pessoas entre 6 e 80 anos. Entretanto, diferentemente do estudo brasileiro, esses autores não encontraram associação da qualidade do sono com a idade.15 Lei et al. (2020),13 ao analisarem amostra de pessoas com 18 anos ou mais, encontraram médias de escores de ansiedade e depressão significativamente superiores no segmento de menos de 30 anos, comparado ao de 50 anos ou mais. Na pesquisa de Wang et al.,4 com indivíduos de 12 a 59 anos (portanto, sem incluir idosos), não foi detectada associação com idade; porém, os autores verificaram maior impacto psicológico, com maiores níveis de estresse, ansiedade e depressão, entre os estudantes. Vale ressaltar que, no estudo brasileiro, a proporção de estudantes entre os adultos de 18 a 29 anos corresponde a 44,0% (IC95% 41,4;46,7). Estudo avaliativo de impacto psicológico e solidão em 1.468 norte-americanos, realizado em abril de 2020, também apontou que os sintomas de sofrimento psíquico foram mais frequentes entre adultos jovens (18 a 29 anos), sendo as menores taxas encontradas em adultos com 55 anos ou mais.19
Várias condições poderiam explicar a maior prevalência, entre os mais jovens, de sintomas de depressão e ansiedade e problemas de sono durante uma pandemia, em contexto de isolamento social. A pandemia de COVID-19 introduziu diversos estressores, incluindo solidão decorrente do isolamento social, medo de contrair a doença, tensão econômica e incerteza sobre o futuro. Embora esses elementos atinjam a sociedade como um todo, entre os idosos, a pandemia tenderia a impactar menos as condições de trabalho e de renda, pois uma parcela deles (38,7%) já se encontra aposentada e não trabalhando. Outro aspecto é a resiliência adquirida pelos idosos, no enfrentamento às dificuldades acumuladas no maior tempo de vida,20 além do fato de estarem mais propensos a uma vida social menos intensa e agitada, em comparação aos mais jovens, sofrendo menos com uma situação de privação dessas atividades. Entre os adultos mais jovens, muitos ainda estão estudando (44%) e buscando definir suas futuras carreiras, e especialmente nos casados (19,2%), é provável que as reponsabilidades com a preservação das condições de sustento da família incidem mais fortemente sobre esse aspecto. Adicionalmente, é possível que o atual contexto de uso intensificado de ferramentas on-line tenha um papel a observar, de maior impacto emocional sobre os mais jovens: dois exemplos desse contexto comportamental seriam o acesso ininterrupto a informações em tempo real, inclusive às chamadas fake news, e decorrente aumento das preocupações com a pandemia, além da contingência da migração para o trabalho na condição de home office. Entre os adultos jovens, a necessidade de permanecer on-line, a intensa utilização de ambiente virtual para estudo ou trabalho, ou mesmo o engajamento excessivo em atividades on-line, como jogos, mídias sociais ou compras, podem contribuir para o maior abalo à saúde emocional nesse grupo.21
Os dados da presente pesquisa também revelam o maior impacto psicológico da quarentena nas mulheres, em relação aos homens. Além do relato de maior frequência de sentimentos de depressão/tristeza e de ansiedade/nervosismo, a proporção de mulheres mostrou-se maior que a dos homens, entre quem passou a ter problemas de sono ou percebeu seu problema de sono existente, agravado. Wang et al.4 também revelaram, como no presente estudo, diferenças significativas entre os sexos em relação a depressão, ansiedade e estresse. Lei et al.,13 embora tenham encontrado diferenças estatisticamente significativas nos escores de sintomas de depressão e ansiedade entre os sexos, observaram que tais variações foram de pequena magnitude. O estudo de Huang e Zhao,10 já citado e também realizado na China, não encontrou diferenças significativas em relação a ansiedade, depressão e sono ruim entre os sexos. No Brasil, os estudos detectam, em geral, maior prevalência de queixas de saúde e de transtornos mentais comuns no sexo feminino.22 As mulheres, historicamente, tiveram menor acesso à escolaridade, foram mais conduzidas a assumir as tarefas domésticas e, na atualidade, mesmo com os avanços obtidos, ainda são submetidas a ocupações de menor renda e prestígio, e menores salários.23 As mulheres são mais preocupadas com a saúde e mais atentas a seus sinais e sintomas, e os resultados do presente estudo apontam para uma atenção maior à saúde mental e à qualidade do sono. Vale também mencionar a intensificação das rotinas diárias das mulheres, incluindo cuidados com crianças e idosos, limpeza da casa e preparo de refeições, atividades que na maior parte das vezes recaem sobre elas, além do crescimento da violência doméstica, durante a pandemia e o contingente distanciamento social.24
A associação entre saúde mental e qualidade do sono tem sido consistentemente reportada. Pesquisa desenvolvida em município brasileiro detectou que a presença de transtornos mentais comuns se associava a um aumento de 61% na prevalência de má qualidade do sono, mesmo após ajuste por variáveis sociodemográficas, comportamentais e de condição de saúde.25 Uma metanálise com 21 estudos longitudinais, desenvolvidos entre 1980 e 2010, confirmou a insônia como fator de risco para depressão, com razão de chances (odds ratio) de 2,10.26 Além disso, estudo longitudinal conduzido na China identificou um relacionamento bidirecional entre sono e otimismo, sendo que o humor depressivo intermediava total ou parcialmente a relação.27
Vários artigos têm alertado para o surgimento de problemas mentais durante a pandemia de COVID-19, muitos deles a destacar as pessoas com doenças e transtornos mentais prévios como mais vulneráveis. Ornell et al.3 afirmavam: […] em uma pandemia, o medo aumenta os níveis de ansiedade e estresse em indivíduos saudáveis e intensifica os sintomas naqueles com desordens psiquiátricas preexistentes. Os resultados do presente estudo confirmam e reforçam essa preocupação, revelando, mediante análises já ajustadas por sexo e idade, que, entre os brasileiros com diagnóstico prévio de depressão, o percentual dos que se sentiram sempre tristes foi 87% superior durante a pandemia, e o dos que se sentiram sempre ansiosos foi mais de duas vezes superior, comparados aos conterrâneos sem esse diagnóstico. Os presentes resultados confirmam achados prévios, sobre maior vulnerabilidade a sentimentos de estresse psicológico durante a quarentena por COVID-19 entre pessoas com transtornos mentais.15 Destaca-se, nesse sentido, que pessoas com condições mentais preexistentes necessitam de atenção especial nos cuidados à saúde mental, também e especialmente, durante a pandemia.
É preciso levar em conta, na apreciação dos resultados deste trabalho, que a realização da pesquisa por internet, a abrangência de aspectos que precisariam ser avaliados e a necessidade de restrição da duração do tempo para o preenchimento do instrumento impediram um aprofundamento maior de cada tópico. Para respeitar o tempo de resposta, que deveria ser curto, não foi possível incluir instrumentos padronizados na avaliação de depressão e de sintomas de ansiedade, de forma que a presente análise se restringe aos dados de relatos de frequência de sentimento de tristeza/depressão e de nervosismo/ansiedade. Também sobre o sono, a questão da pesquisa enfocou as alterações ocorridas durante a pandemia, priorizando detectar o relato de início e de agravamento de problemas de sono. O objetivo do estudo tampouco incluiu a avaliação do papel de outras variáveis independentes para tristeza, nervosismo e problemas de sono. Ademais, a análise considerou o período inicial da pandemia (entre um e dois meses das primeiras medidas de distanciamento social implantadas no Brasil), fato a ser considerado na interpretação dos resultados. A amostra do estudo não foi probabilística, porém a pesquisa foi bem-sucedida em abranger participantes de todas as regiões brasileiras e atingir um grande número de respondentes. Por sua vez, a aplicação de pesos de pós-estratificação produziu uma aproximação dos resultados obtidos aos valores experimentados pela população brasileira. Os resultados nos temas contemplados neste artigo também se revelam consistentes com a literatura correlata.
A necessidade de enfrentamento das repercussões negativas na saúde mental, em um período de emergência como o presente, quando contatos pessoais físicos devem permanecer restritos para evitar a contaminação e a disseminação do vírus, e milhões de pessoas devem manter o distanciamento ou isolamento social por um período de duração incerta, têm levado a propostas de organização e implementação de serviços de atenção à saúde mental em novos moldes. A Comissão Nacional de Saúde da China, logo em janeiro de 2020, promulgou princípios básicos para atendimento psicológico durante a pandemia, organizando rapidamente o estabelecimento de serviços de apoio psicológico on-line e de assistência psicológica, por meio de hot-lines, a serem prestados por profissionais da saúde mental em instituições médicas e acadêmicas nas 24 horas do dia.13 A OMS e as sociedades e associações de profissionais de saúde mental de vários países têm produzido e divulgado guias com recomendações de práticas e condutas para a preservação e atendimento à saúde mental em meio à pandemia e durante períodos de distanciamento ou isolamento social.28,29 Recomendações especiais são dirigidas aos profissionais de saúde, que costumam ser os grupos mais fortemente atingidos nesses episódios.30
Os achados revelam a dimensão do impacto da pandemia e do isolamento social sobre aspectos da saúde mental e da qualidade do sono da população no contexto brasileiro. O maior impacto nos adultos jovens e nas mulheres sinaliza segmentos demográficos de maior vulnerabilidade, a demandar a aplicação e o aprimoramento das estratégias de preservação e atenção à saúde mental durante a pandemia. Os resultados ressaltam que as pessoas com antecedentes de depressão são as mais vulneráveis no contexto pandêmico. Entende-se como necessária uma maior divulgação das medidas e práticas de preservação da saúde mental e da qualidade do sono recomendadas pela OMS, sociedades e associações de profissionais da saúde mental. Também é essencial a disponibilização de serviços on-line para atenção a pacientes necessitados de cuidados quanto às suas condições emocionais e mentais.