Introdução
Acidentes ofídicos persistem como um problema de Saúde Pública, pela assiduidade com que ocorrem e morbimortalidade que ocasionam, principalmente nos países tropicais, detentores da maior diversidade de serpentes de importância médica do planeta.( 1 )Esse agravo à saúde acomete, frequentemente, homens jovens, trabalhadores rurais, em idade economicamente ativa.( 1 )
Em 2009, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o ofidismo na lista de doenças tropicais negligenciadas. No ano de 2019, estimou-se ocorrerem em todo o mundo, anualmente, 2,7 milhões casos de envenenamento ofídico e de 81 mil a 138 mil óbitos decorrentes, além de 400 mil vítimas sobreviventes com incapacidade física e psicológica.( 2 )Apesar dessas estimativas, dados globais são relativamente incipientes, e o número de pessoas acometidas, em sua totalidade, subestimado.( 1 )
No período selecionado para o estudo, ocorreram cerca de 28,5 mil acidentes ofídicos por ano no Brasil, com uma incidência de 14,5/100 mil habitantes e uma letalidade de 0,41%,( 6 )nove vezes superior à estimativa mundial. A região Norte do país se destaca pela alta taxa de incidência: 56,0 casos/100 mil hab.( 4 )
O conhecimento sobre o ofidismo avançou muito nas últimas décadas,( 8 ) embora pouco se tenha investigado, sob uma perspectiva do contexto espacial, que considerasse a ocorrência desse agravo um evento complexo da sociedade, uma vez que as condições socioeconômicas e ambientais podem compor fatores de risco.( 4 )
O presente estudo teve por objetivo investigar o perfil dos casos de acidentes ofídicos, seus determinantes e áreas de risco no estado do Tocantins, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de múltiplos grupos, em que o município foi a unidade de análise para a ocorrência de acidentes ofídicos no período de 2007 a 2015, no estado do Tocantins.
O Tocantins integra a região Norte do Brasil e suas principais atividades econômicas são a agricultura e a pecuária.( 10 )O estado possui 139 municípios, extensão territorial de 277.720,567km2 e população estimada de 1.515.126 habitantes.( 11 )Os indígenas correspondem a aproximados 5% dessa população, distribuídosentre nove etnias: Apinayé; Xerente; Karajá; Krahô; Xambioá; Krahô-Kanela; Javaé; Pankararu; e Avá-Canoeiro.( 10 ) O Tocantins apresenta índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,699 e índice de Gini de 0,60: 32,36% de sua população encontra-se em condições de pobreza.( 11 ) O estado é composto por oito regiões de saúde: Médio Norte Araguaia; Bico do Papagaio; Sudeste; Cerrado Tocantins Araguaia; Ilha do Bananal; Capim Dourado; Cantão; e Amor Perfeito.( 13 )
Todos os municípios do estado foram incluídos no estudo, uma vez que notificaram casos de ofidismo no período selecionado.
Dados referentes à caracterização do ofidismo foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins (SESAU/TO), por município de ocorrência. As variáveis socioeconômicas e demográficas foram obtidas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil. Utilizaram-se dados censitários de 2010 e as progressões estatísticas para os períodos intercensitários.
As variáveis relacionadas aos indivíduos foram:
sexo (masculino; feminino);
idade (em anos: <15; 15 a 34; 35 a 54; 55 ou mais);
escolaridade (não estudou; até ensino fundamental completo; ensino médio completo; ensino superior completo; sem informação);
raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena; sem informação); e
ocupação (agropecuário; trabalhador em geral; sem informação).
Em relação ao acidente ofídico, as variáveis investigadas foram:
município de ocorrência;
zona (urbana; rural; periurbana; sem informação);
mês de ocorrência;
local anatômico da picada (eixo central; membros inferiores; membros superiores; sem informação);
gênero de serpente ( Bothrops; Crotalus; Micrurus; Lachesis ; não peçonhenta; sem informação);
tempo transcorrido do acidente ao atendimento (até seis horas; acima de seis horas; sem informação);
estadiamento (leve; moderado; grave; sem informação);
evolução clínica (cura; óbito; sem informação); e
acidente relacionado ao trabalho (sim; não; sem informação).
Foram investigadas as seguintes variáveis para o município:
índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM);
índice de Gini;
produto interno bruto (PIB) per capita (U$);
população empregada (%);
área destinada à agricultura (%);
população empregada na agropecuária (%);
população com acesso a água e coleta de lixo (%);
proporção de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais de idade (%);
proporção da população indígena do município, em relação à população geral municipal (%);
densidade demográfica (hab./km2); e
aspecto climático (período seco; período chuvoso).
As variáveis relacionadas à agropecuária foram selecionadas a partir das principais atividades desenvolvidas no Tocantins, por município, tendo como referência o ano de 2015. As variáveis relativas à agricultura consistiram das áreas cultivadas (em km2) de arroz, abacaxi, banana, cana-de-açúcar, feijão, mandioca, melancia, milho, soja e sorgo. Quanto à pecuária, considerou-se o total efetivo de rebanho, por cabeças de bovino, caprino, equino, galináceo e suíno. Todos os dados socioeconômicos provieram do banco de dados do IBGE.
Foram calculadas a taxa de incidência (número de casos dividido pela população, a cada 100 mil hab.), a taxa de mortalidade (número de óbitos divididos pela população, a cada 100 mil hab.) e a letalidade (proporção do número de óbitos em relação ao número de casos) para o ofidismo, por ano e por município. A descrição do perfil epidemiológico foi feita pelas frequências – absoluta e relativa – das variáveis referentes aos indivíduos acidentados e aos acidentes.
Na análise de regressão linear múltipla, foram consideradas como exposição as variáveis demográficas e socioeconômicas municipais. Os casos de ofidismo municipal registrados no período foram a variável-resposta. A associação do ofidismo com as variáveis demográficas e socioeconômicas municipais foi analisada por meio de regressão linear múltipla. As variáveis que atingiram o nível de significância de 5% no modelo não ajustado foram selecionadas e submetidas à análise. Os resultados foram apresentados como coeficiente (Coef.) e intervalo de confiança de 95% (IC95%). O critério de informação de Akaike (AIC) foi usado para avaliar a qualidade do ajuste do modelo. Para investigação de sazonalidade, foi realizada análise de associação entre frequência mensal de acidentes e o período sazonal (período seco, de maio a setembro; e período chuvoso, de outubro a abril), pelo teste de Mann-Whitney. Para a identificação das áreas de risco, utilizou-se o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis (p-valor ajustado). Os grupamentos resultantes foram classificados como de baixo ou alto risco, com base nos coeficientes de incidência de ofidismo. Posteriormente, foram elaborados mapas para análise da distribuição espacial.
O programa Stata® versão 12.0 foi utilizado para o processamento dos testes de regressão linear, Mann-Whitney e Kruskal-Wallis; e o Tabwin versão 3.6, do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus)/Ministério da Saúde), para a elaboração dos mapas.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA): Parecer nº 2.091.150, de 30 de maio de 2017.
Resultados
No Tocantins, foram notificados 7.764 acidentes ofídicos no período de 2007 a 2015. A incidência média estadual foi de 62,1/100 mil hab., variando de 52,2 a 78,4/100 mil hab. ( Figura 1 ). A incidência municipal variou de 2,8 a 288,8/100 mil hab. Os municípios com maiores incidências foram Recursolândia (288,8/100 mil hab.), Centenário (260,4/100 mil hab.), Tocantínia (252,8/100 mil hab.), Santa Maria (240,0/100 mil hab.) e Conceição do Tocantins (235,3/100 mil hab.) ( Figura 2 ).
Fontes: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)/Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins (Sesau/TO) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)/Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins (Sesau/TO).
As regiões de saúde Médio Norte Araguaia e Cerrado Tocantins Araguaia foram as que mais notificaram casos, com 22,7% e 16,8% dos registros, respectivamente. As regiões de saúde Médio Norte Araguaia e Cerrado Tocantins Araguaia referiram os maiores coeficientes de incidência, 97,3/100 mil hab. e 89,1/100 mil hab., respectivamente ( Tabela 1 e Figura 3 ).
Regiões de saúde | APE | BCP | CAN | CPD | CTA | IBA | MNA | SUD | Classificação de risco | Coeficiente de incidência (por 100 mil hab.) |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
APE | – | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | Alto | 80,9 |
BCP | Diferente | – | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Baixo | 43,9 |
CAN | Igual | Igual | – | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | Alto | 75,3 |
CPD | Diferente | Diferente | Diferente | – | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Baixo | 40,8 |
CTA | Igual | Diferente | Igual | Diferente | – | Diferente | Igual | Diferente | Alto | 89,1 |
IBA | Diferente | Igual | Diferente | Diferente | Diferente | – | Diferente | Igual | Baixo | 48,4 |
MNA | Diferente | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | – | Diferente | Alto | 97,3 |
SUD | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | Igual | Diferente | – | Baixo | 45,7 |
a) De acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com correção robusta de White.
Legenda:
APE: Amor Perfeito
BCP: Bico do Papagaio
CAN: Cantão
CPD: Capim Dourado
CTA: Cerrado Tocantins-Araguaia
IBA: Ilha do Bananal
MNA: Médio Norte Araguaia
SUD: Sudeste
Nota:
Nesta comparação entre as medianas da incidência municipal das regiões de saúde, (i) a diferença significa que as medianas são estatisticamente distintas, e (ii) a igualdade significa que não há diferença estatisticamente significativa entre as regiões.
Ocorreram, no período, 36 óbitos, perfazendo uma letalidade média de 0,5%, com variação entre 0,3 e 0,9% para o estado e entre 0,0 e 8,7% para os municípios. O acidente crotálico foi o mais letal (1,4%), seguido do botrópico (0,4%). Não foram registrados óbitos por Micrurus e Lachesis . O gênero da serpente não foi informado em 3 óbitos. A mortalidade variou de 0,0 a 0,5/100 mil hab. entre os municípios ( Figura 1 ).
Os acidentes ocorreram sobretudo no período chuvoso (65,3%) (p<0,001). A maioria das pessoas era do sexo masculino (76,9%), com idade entre 15 e 34 anos (36,3%). Houve perda de informação sobre escolaridade em 21% dos casos e, entre as notificações preenchidas com essa variável, predominou escolarização até no máximo o ensino fundamental (61,7%). A ocupação, quando referida, identificou trabalhadores agropecuários (31,1%) como os mais afetados. Quanto à raça/cor da pele, 76,6% eram pardos e 4,1% indígenas ( Tabela 2 ).
Variáveis | 2007-2009 | 2010-2012 | 2013-2015 | 2007-2015 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
N (2.356) | (%) | N (2.991) | (%) | N (2.417) | (%) | N (7.764) | (%) | |
Sexo | ||||||||
Masculino | 1.839 | 78,1 | 2.275 | 76,1 | 1.856 | 76,8 | 5.970 | 76,9 |
Feminino | 517 | 21,9 | 716 | 23,9 | 561 | 23,2 | 1.794 | 23,1 |
Idade (anos) | ||||||||
<15 | 404 | 17,1 | 566 | 18,9 | 436 | 18,0 | 1.406 | 18,1 |
15-34 | 926 | 39,4 | 1.078 | 36,0 | 815 | 33,8 | 2.819 | 36,3 |
35-54 | 691 | 29,3 | 893 | 29,9 | 743 | 30,7 | 2.327 | 30,0 |
≥55 | 335 | 14,2 | 454 | 15,2 | 423 | 17,5 | 1.212 | 15,6 |
Escolaridade | ||||||||
Sem estudo | 139 | 5,9 | 145 | 4,8 | 111 | 4,6 | 395 | 5,1 |
Ensino fundamental completo | 1.639 | 69,6 | 1.812 | 60,6 | 1.330 | 55,0 | 4.781 | 61,7 |
Ensino médio completo | 97 | 4,1 | 197 | 6,6 | 212 | 8,8 | 506 | 6,5 |
Ensino superior completo | 13 | 0,6 | 23 | 0,8 | 29 | 1,1 | 65 | 0,8 |
Não se aplica | 114 | 4,8 | 142 | 4,7 | 127 | 5,3 | 383 | 4,9 |
Sem informação | 354 | 15,0 | 672 | 22,5 | 608 | 25,2 | 1.634 | 21,0 |
Ocupação | ||||||||
Agropecuário | 750 | 31,8 | 969 | 32,4 | 693 | 28,7 | 2.412 | 31,1 |
Trabalho em geral | 159 | 6,7 | 202 | 6,8 | 223 | 9,2 | 584 | 7,4 |
Outros | 556 | 23,6 | 674 | 22,5 | 576 | 23,8 | 1.806 | 23,3 |
Sem informação | 891 | 37,9 | 1.146 | 38,3 | 925 | 38,3 | 2.962 | 38,2 |
Raça/cor da pele | ||||||||
Branca | 278 | 11,8 | 245 | 8,2 | 178 | 7,4 | 701 | 9,0 |
Preta | 204 | 8,7 | 232 | 7,8 | 174 | 7,2 | 610 | 7,9 |
Amarela | 40 | 1,6 | 30 | 1,0 | 34 | 1,4 | 104 | 1,3 |
Parda | 1.724 | 73,2 | 2.330 | 77,9 | 1.895 | 78,4 | 5.949 | 76,6 |
Indígena | 87 | 3,7 | 123 | 4,1 | 107 | 4,4 | 317 | 4,1 |
Sem informação | 23 | 1,0 | 31 | 1,0 | 29 | 1,2 | 5.970 | 1,1 |
Gênero de serpente | ||||||||
Bothrops | 1.761 | 74,8 | 2.390 | 79,9 | 1.840 | 76,1 | 5.991 | 77,2 |
Crotalus | 262 | 11,1 | 260 | 8,7 | 243 | 10,1 | 765 | 9,9 |
Micrurus | 19 | 0,8 | 17 | 0,6 | 12 | 0,5 | 48 | 0,6 |
Lachesis | 18 | 0,8 | 13 | 0,4 | 7 | 0,3 | 38 | 0,5 |
Não peçonhenta | 133 | 5,6 | 128 | 4,3 | 151 | 6,2 | 412 | 5,2 |
Sem informação | 163 | 6,9 | 183 | 6,1 | 164 | 6,8 | 510 | 6,6 |
Zona de ocorrência | ||||||||
Urbana | 308 | 13,1 | 365 | 12,2 | 366 | 15,1 | 1.039 | 13,4 |
Rural | 1.970 | 83,6 | 2.514 | 84,1 | 1.963 | 81,2 | 6.447 | 83,0 |
Periurbana | 42 | 1,8 | 54 | 1,8 | 38 | 1,6 | 134 | 1,7 |
Sem informação | 36 | 1,5 | 58 | 1,9 | 50 | 2,1 | 144 | 1,9 |
Aspecto climático – precipitação pluviométrica | ||||||||
Mais chuvoso | 1.480 | 62,8 | 2.009 | 67,2 | 1.582 | 65,5 | 5,071 | 65,3 |
Menos chuvoso | 876 | 37,2 | 982 | 32,8 | 835 | 34,5 | 2.693 | 34,7 |
Sem informação | – | 0,0 | – | 0,0 | – | 0,0 | – | 0,0 |
Tempo transcorrido do acidente até o atendimento | ||||||||
Até seis horas | 1.912 | 81,1 | 2.500 | 83,6 | 2.018 | 83,4 | 6.430 | 82,8 |
Acima de seis horas | 324 | 13,8 | 362 | 12,1 | 301 | 12,5 | 987 | 12,7 |
Sem informação | 120 | 5,1 | 129 | 4,3 | 98 | 4,1 | 347 | 4,5 |
Local anatômico da picada | ||||||||
Eixo central | 22 | 0,9 | 33 | 1,1 | 29 | 1,2 | 84 | 1,1 |
Membros inferiores | 1.951 | 82,8 | 2.434 | 81,4 | 1.996 | 82,6 | 6.381 | 82,2 |
Membros superiores | 358 | 15,2 | 480 | 16,0 | 361 | 14,9 | 1.199 | 15,4 |
Sem informação | 25 | 1,1 | 44 | 1,5 | 31 | 1,3 | 100 | 1,3 |
Estadiamento | ||||||||
Leve | 1.140 | 48,4 | 1.311 | 43,9 | 1.123 | 46,5 | 3.574 | 46,0 |
Moderado | 947 | 40,2 | 1.361 | 45,5 | 1.012 | 41,9 | 3.320 | 42,8 |
Grave | 169 | 7,2 | 160 | 5,3 | 166 | 6,9 | 495 | 6,4 |
Sem informação | 100 | 4,2 | 159 | 5,3 | 116 | 4,8 | 375 | 4,8 |
Evolução clínica | ||||||||
Cura | 2.314 | 98,2 | 2.896 | 96,8 | 2.212 | 91,5 | 7.422 | 95,7 |
Óbito | 17 | 0,7 | 11 | 0,4 | 14 | 0,6 | 36 | 0,5 |
Sem informação | 25 | 1,1 | 84 | 2,8 | 191 | 7,9 | 300 | 3,8 |
Acidente relacionado ao trabalho | ||||||||
Sim | 687 | 29,2 | 906 | 30,3 | 542 | 22,4 | 2.135 | 27,5 |
Não | 1.574 | 66,8 | 1.926 | 64,4 | 1.644 | 68,0 | 5.144 | 66,3 |
Sem informação | 95 | 4,0 | 159 | 5,3 | 231 | 9,6 | 485 | 6,2 |
A maioria dos acidentes envolveu o gênero Bothrops (77,2%). Em 6,6% dos casos, a serpente não foi identificada, e em 5,2% a serpente não era peçonhenta. Os acidentes procederam, hegemonicamente, da zona rural (83,0%), com atendimento médico nas primeiras horas pós-picada (82,8%). Os membros inferiores foram mais acometidos (82,2%). Os casos foram predominantemente classificados como de gravidade leve (46,0%) e com evolução para cura (95,7%). Em 27,5% dos casos, o acidente teve relação com o trabalho ( Tabela 2 ).
Após a análise não ajustada, alcançaram significância estatística (5%) as seguintes variáveis: IDHM (Coef.=4,29 – IC95% 2,04;6,55), índice de Gini (Coef.=1,48 – IC95% 0,63;4,32), densidade demográfica (Coef.=1,78 – IC95% 0,99;2,58), proporção de analfabetismo (Coef.=4,78 – IC95% 2,60;6,96), desemprego entre os maiores de 18 anos de idade (Coef.=2,48 – IC95% 0,63;4,32) e áreas cultivadas de soja (Coef.=0,12 – IC95% 0,02;0,21), mandioca (Coef.=20,60 – IC95% 13,65;27,65), milho (Coef.=0,31 – IC95% 0,07;0,55), sorgo (Coef.=5,56 – IC95% 2,08;9,05), feijão (Coef.=4,67 – IC95% 0,15;9,19) e banana (Coef.=58,58 – IC95%33,55;83,63).
A regressão linear múltipla evidenciou forte associação do ofidismo (p<0,001) com 7 das 16 variáveis investigadas: densidade demográfica; trabalho agropecuário; IDHM; área cultivada de mandioca; população indígena; taxa de analfabetismo; e emprego ( Tabela 3 ). O modelo proposto explicou 64,48% (R2 ajustado = 0,6448) do ofidismo no Tocantins.
Variáveis | Coeficiente | Teste t | p-valor >| t |a | IC95%b |
---|---|---|---|---|
Densidade demográfica (hab./km2) | 1,36 | 4,23 | 0,001 | 0,72;1,99 |
Trabalho agropecuário | 0,02 | 3,54 | 0,001 | 0,01;0,03 |
IDHMc | 2,99 | 2,47 | 0,015 | 0,60;5,38 |
Área cultivada de mandioca (km2) | 8,49 | 2,46 | 0,015 | 1,66;15,32 |
População indígena | 0,02 | 2,32 | 0,022 | 0,00; 0,04 |
Analfabetismo | 4,70 | 2,28 | 0,024 | 0,61; 8,79 |
Emprego | 3,00 | 2,87 | 0,005 | 0,93;5,06 |
Constante (casos/100 mil hab.) | -540,38 | -4,39 | 0,001 | -784,15;-296,60 |
a) Valor de p derivado do teste T.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) IDHM: índice de desenvolvimento humano municipal.
Nota:
R2 ajustado = 0,6448.
Critério de informação de Akaike (AIC) = 460.45.
A Tabela 1 apresenta os resultados do teste de Kruskal-Wallis. Quanto ao risco de acidente ofídico, a comparação entre as regiões de saúde identificou duas áreas distintas (p<0,005): (i) uma área de alto risco, com incidência acumulada de 85,7/100 mil hab., composta pelas regiões de saúde Amor Perfeito, Cantão, Cerrado Tocantins Araguaia e Médio Norte Araguaia; e (ii) uma área de “baixo risco”, com incidência acumulada de 44,7/100 mil hab., composta pelas regiões de saúde Bico do Papagaio, Capim Dourado, Ilha do Bananal e Sudeste.
Discussão
As análises dos casos notificados de ofidismo no Tocantins de 2007 a 2015 evidenciaram que esse tipo de acidente acomete, predominantemente, homens adultos jovens, trabalhadores rurais, nos membros inferiores, por envenenamento botrópico. Esses casos se distribuíram desigualmente, no estado, delimitando áreas de alto risco (regiões de saúde Amor Perfeito, Cantão, Cerrado Tocantins Araguaia e Médio Norte Araguaia) e de “baixo risco” (regiões de saúde Bico do Papagaio, Capim Dourado, Ilha do Bananal e Sudeste). Os acidentes ofídicos estiveram relacionados a densidade demográfica, trabalho agropecuário, IDHM, área cultivada de mandioca, população indígena, taxa de analfabetismo e emprego.
O perfil epidemiológico encontrado é consonante com o padrão mundial, nacional e regional.( 1 ) A precocidade no atendimento médico divergiu do atraso comumente referido para a região Norte,( 7 ) provavelmente porque o Tocantins destoa da região quanto às principais questões de acessibilidade geográfica características da Amazônia.( 4 )
No período estudado, o Tocantins apresentou o terceiro mais alto coeficiente de incidência de ofidismo, tanto para o conjunto do Brasil quanto para a região Norte, ficando atrás apenas dos estados de Roraima e Pará.( 6 ) A maioria dos municípios apresentou incidência superior à média nacional,( 6 ) o que reforça a necessidade de priorizar o enfrentamento do ofidismo no plano municipal de saúde, com incremento circunstancial de ações efetivas de vigilância e educação em saúde com foco na melhoria da qualidade das notificações e na prevenção. São necessárias pactuações entre municípios ou regiões de saúde, com o objetivo de se constituírem redes para o atendimento em tempo oportuno.
Todas as regiões de saúde do estado, inclusive as que compõem a região de “baixo risco” para ofidismo, apresentaram risco triplicado em relação aos parâmetros nacionais, considerando-se o mesmo período de estudo como referência.( 6 ) Comparadas ao padrão nacional, todas as regiões de saúde do Tocantins seriam de alto risco.
A análise da situação desse agravo no estado, com apreciação das áreas de “baixo risco” e alto risco de ofidismo, sazonalidade e barreiras geográficas, deve ser levada em conta, para orientação das estratégicas de distribuição de soros antiofídicos e fortalecimento das ações de vigilância. Essa dedicação à análise – contínua e oportuna – é indispensável diante de eventuais problemas de acesso a determinadas áreas, baixo estoque de soros e indisponibilidade desses imunobiológicos nos municípios, seja por não se constituírem em áreas consideradas de risco, seja por não conterem unidades de saúde adequadas para realização de soroterapia.( 16 )
A letalidade média estadual é equiparável à média nacional para o mesmo período. Entretanto, a estimativa observada no município de Tupirama é problemática, considerando-se que os soros antiofídicos são ofertados pela rede pública de saúde do Brasil.( 17 )Sabe-se que o êxito letal é um desfecho complexo, influenciado por diversos fatores, como gênero de serpente, uso de torniquete e picada em extremidades (dedos de mãos e pés), como também pelo tempo decorrido entre o acidente e o atendimento (principalmente em casos provenientes da zona rural), tipo de soro utilizado e número de ampolas adotadas, estes três últimos relacionados ao serviço de saúde.( 18 )Tais fatores devem ser considerados na análise da ocorrência de casos graves e, consequentemente, nos óbitos por envenenamento ofídico.
No Tocantins, o trabalho agropecuário foi associado ao ofidismo. Fragilidades sociais como a baixa escolaridade e o analfabetismo,típicas em pessoas acometidas pelo ofidismo, são recorrentes nesse grupo ocupacional,( 19 )uma situação que parece refletir a invisibilidade desses trabalhadores na formulação de políticas e programas de proteção à saúde do trabalhador. O cenário é particularmente grave quando o ofidismo é um agravo de fácil prevenção, mediante concessão de equipamento de proteção individual (EPI), constantemente não utilizado durante a atividade agropecuária.( 18 ) Áreas plantadas de mandioca ( Manihot esculenta Crantz) (em km2 cultivados), especialmente, associaram-se ao ofidismo no estado. Essa lavoura explora intensamente o solo, cujo preparo para o plantio pode provocar impactos de desflorestamento.( 20 )
A associação do IDHM com o ofidismo pode estar relacionada com a economia agropecuária predominante no estado. A densidade demográfica foi fortemente associada ao ofidismo no Tocantins. Esse padrão é consonante com achados para o continente americano, em 2017, embora diverso do Rio de Janeiro em 2004.( 21 ) O Tocantins, por ser o estado mais recente do Brasil, encontra-se em expansão demográfica, com maior dinâmica populacional em municípios de intensa atividade agropecuária, fomentada mediante incentivos fiscais para grandes empresários.( 22 ) Esse cenário propicia o recrutamento de pessoas para o trabalho rural. Consistente com essa associação, a variável ‘emprego’ relacionou-se com o ofidismo, provavelmente pelo perfil econômico dos municípios, hegemonicamente agropecuários.( 11 ) Esses achados sugerem que as atividades laborais referentes à agricultura (plantio, colheita, acondicionamento, transporte etc.) e pecuária são realizadas sem proteção adequada, cenário clássico do ofidismo.( 23 )
A ausência de escolaridade como fator determinante evidencia um problema de vulnerabilidade social, padrão apontado desde os trabalhos de Vital Brazil com indivíduos picados na região Sudeste do país, no início do século XX.( 24 ) Assim, é indispensável o enfrentamento dessa vulnerabilidade com políticas públicas que priorizem ações eficazes de fornecimento e sensibilização dos trabalhadores rurais quanto ao uso de EPIs, considerados os aspectos locais de sazonalidade e atividade agropecuária.
A associação do ofidismo com populações indígenas reforça a necessidade de estudos que envolvam essa população. Trata-se de uma temática complexa, presente em escassos estudos científicos sobre ofidismo nessa etnia. O conhecimento específico da situação epidemiológica de envenenamento ofídico nessas populações é essencial à elaboração de políticas públicas efetivas, voltadas à melhoria da assistência à saúde dos indígenas. Todavia, é mister ampliar a discussão sobre preservação ambiental para além das áreas indígenas, como estratégica para evitar o refúgio das serpentes e sua concentração próxima a esse grupo étnico.
Os resultados deste estudo devem ser considerados sob algumas condições limitantes, como a subnotificação e a incompletude dos dados de notificação do Sinan, especialmente para variáveis socioeconômicas. Esses atributos, historicamente, apresentam problemas na notificação, não obstante a qualidade do preenchimento dos dados ter melhorado nos útimos. Também cumpre lembrar as limitações metodológicas inerentes ao desenho ecológico.
Conclui-se que o ofidismo no Tocantins tem alta incidência e é fortemente associado a atributos sociodemográficos e ao perfil agrícola municipal. O estudo apontou, ainda, as áreas de maior ocorrência, um resultado destinado a auxiliar no planejamento da distribuição de soro antiofídico no estado. Grupos vulneráveis da sociedade estiveram fortemente associados ao ofidismo no Tocantins, assim como características agropecuárias e demográficas municipais relacionadas com desigualdades sociais, impactos no modo de vida e novas necessidades de saúde dos trabalhadores rurais.
A vigilância de acidentes ofídicos no Tocantins deve ser priorizada, no sentido de se fortalecerem a educação em saúde para prevenção, a prestação dos primeiros socorros, diagnóstico e tratamento, além dos serviços de manejo clínico e distribuição eficiente dos antivenenos. Para tanto, é fundamental se considerarem as áreas de risco, a distribuição espacial e sazonal dos casos e as barreiras geográficas, no acesso ao atendimento.