Introdução
Anualmente, são diagnosticados cerca de 70 mil casos novos de tuberculose (TB) no Brasil,1 onde pessoas com maior vulnerabilidade social estão mais susceptíveis ao adoecimento.2,3 A TB é uma doença de tratamento longo, com diferentes fármacos que podem causar efeitos adversos.4,5
Na busca pelo bem-estar e qualidade de vida, as plantas medicinais tornaram-se uma alternativa, dada sua credibilidade terapêutica e baixo custo. Estas condições se apresentam como convite para a introdução de terapias alternativas, na busca pela cura ou até mesmo para amenizar efeitos adversos dos medicamentos.
É crescente o uso de terapias complementares no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular o uso de plantas medicinais e fitoterápicos;6-10entretanto, não existem no Brasil recomendações sobre essas práticas de cuidado no tratamento da TB. Apesar disso, na busca pelo bem-estar e qualidade de vida, as plantas medicinais tornaram-se uma alternativa, dada sua credibilidade terapêutica e baixo custo.11 Estas condições se apresentam como convite para a introdução de terapias alternativas, na busca pela cura ou até mesmo para amenizar efeitos adversos dos medicamentos.
O presente estudo teve o objetivo de descrever o consumo de plantas medicinais utilizadas por pessoas diagnosticadas com TB em municípios do norte do estado da Bahia, no ano de 2017.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo, baseado em entrevistas domiciliares com pessoas diagnosticadas com TB (casos novos e retratamentos), residentes em municípios do norte baiano, no ano de 2017.
A Bahia é constituída por 417 municípios, distribuídos em nove Núcleos Regionais de Saúde (NRS), e somava uma população estimada para o ano de 2017 em 15.344.447 habitantes.11 O NRS Norte da Bahia contempla 27 municípios e uma população que representava, aproximadamente, 7% da população baiana no ano do estudo.12-14
A população estudada foi composta por todos os indivíduos notificados com TB em 2017, residentes em municípios da região norte da Bahia e que apresentaram (i) uma população >50 mil habitantes e/ou (ii) >10 casos de TB notificados em 2016. Estes critérios foram adotados para assegurar a existência de casos e a viabilidade do estudo no território. As entrevistas domiciliares aconteceram entre 1° de outubro e 30 de dezembro de 2017, por meio de um instrumento semiestruturado, com que um único entrevistador questionou sobre a prática do consumo de plantas medicinais antes do diagnóstico da TB ou depois do início do tratamento. Registra-se, ainda, que foram excluídos indivíduos em tratamento há mais de dois meses, os menores de 18 anos de idade e aqueles com limitação cognitiva.
As questões abertas foram propostas por livre expressão do entrevistado, e suas citações, sintetizadas pelos pesquisadores após a compilação das falas. A síntese das citações foi feita com base nos seguintes questionamentos:
“Você utilizou alguma planta medicinal antes ou depois do início do tratamento da TB?”
“Qual?”
“Para que você utilizou planta medicinal?”
e
“Com quem você aprendeu a utilizar as plantas medicinais?”
Também foram observadas as variáveis independentes da pessoa, durante sua entrevista:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 18 a 36; 37 a 46; 47 ou mais);
estado civil (solteira; casada; outros);
escolaridade (até o ensino primário completo; até o ensino fundamental completo; ensino médio ou mais);
raça/cor da pele (autodeclarada: parda/preta; branca/amarela/indígena);
ocupação (autodeclarada: economicamente ativa; não economicamente ativa);
rendimento econômico pessoal (reais [R$]/mês);
consumo de álcool (sim; não);
consumo de tabaco (sim; não);
condição de domicílio (próprio; não próprio);
história anterior de TB (sim; não);
presença de tosse (sim; não);
presença de febre (sim; não);
sudorese (sim; não); e
perda de peso (sim; não).
As variáveis foram agrupadas considerando-se o prévio conhecimento da literatura científica e suas distribuições. As fontes de dados foram (i) o registro populacional12 dos 27 municípios da região administrativa e (ii) o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan),15 consultado para a confirmação dos casos notificados.
As análises descritivas foram processadas com uso do software Stata/MP 12.0, pelo qual se registraram valores absolutos para a medida do consumo de plantas e apresentação das espécies citadas, que, por sua vez, tiveram a nomenclatura botânica conferida nas bases de dados Tropicos®. Missouri Botanical Garden, versão on-line.16
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco (CEP-UNIVASF): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 67456117.3.0000.5196, de 23 de setembro de 2017. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Os municípios do norte da Bahia que preencheram os critérios de elegibilidade para o estudo foram Campo Formoso, Casa Nova, Juazeiro, Paulo Afonso, Pindobaçu e Senhor do Bonfim. No ano de 2017, foram notificados no Sinan 199 casos de TB nesses municípios. Desse total de casos notificados, 29 (14,6%) tiveram desfecho de tipo óbito, 36 (18,0%) transferência para outras localidades, 10 (5,0%) privação da liberdade e 10 (5,0%) abandono do tratamento no momento da coleta de dados. No período do estudo, 114 casos foram considerados viáveis para investigação; entretanto foram excluídas 12 pessoas (6,0%) não encontradas em suas residências, 10 (5,0%) menores de 18 anos de idade, 5 (2,5%) com limitações cognitivas no momento da entrevista e 7 (3,5%) por recusa em participar da pesquisa.
Foram entrevistadas 80 pessoas com TB, e entre elas, 50 referiram o uso de plantas medicinais como prática de cuidado com a doença. Observou-se maior frequência de uso de planta medicinal por pessoas do sexo masculino (34), com 47 anos ou mais de idade (22), de raça/cor da pele parda ou preta (34), com até o ensino primário completo (25), casadas (26), não economicamente ativas (30), dispondo de até R$ 300,00/mês (26), com tosse (33) e sem história anterior da doença (44) (Tabela 1).
Características | n | Uso de plantas | ||
---|---|---|---|---|
Sim | Não | |||
50 | 30 | |||
Sexo | ||||
Masculino | 56 | 34 | 22 | |
Feminino | 24 | 16 | 8 | |
Faixa etária (em anos) | ||||
18-36 | 21 | 12 | 9 | |
37-46 | 22 | 16 | 6 | |
≥47 | 37 | 22 | 15 | |
Raça/cor da pele | ||||
Parda/preta | 58 | 34 | 24 | |
Branca/amarela/indígena | 22 | 16 | 6 | |
Escolaridade | ||||
Até o ensino primário completo | 38 | 25 | 13 | |
Até o ensino fundamental completo | 28 | 15 | 13 | |
Ensino médio ou mais | 14 | 10 | 4 | |
Estado civila | ||||
Casada | 39 | 26 | 13 | |
Solteira | 28 | 14 | 14 | |
Outros | 13 | 10 | 3 | |
Ocupaçãob | ||||
Economicamente ativa | 32 | 20 | 12 | |
Não economicamente ativa | 48 | 30 | 18 | |
Rendimento pessoal (reais [R$]/mês) | ||||
R$ 0,00 a R$ 300,00 | 40 | 26 | 14 | |
R$ 301,00 a R$ 937,00 | 28 | 18 | 10 | |
Maior que R$ 937,00 | 12 | 6 | 6 | |
Condição de domicílioc | ||||
Próprio | 50 | 30 | 20 | |
Não próprio | 30 | 20 | 10 | |
História anterior de tuberculose | ||||
Sim | 12 | 6 | 6 | |
Não | 68 | 44 | 24 | |
Consumo de álcool | ||||
Sim | 15 | 11 | 4 | |
Não | 65 | 39 | 26 | |
Consumo de tabaco | ||||
Sim | 13 | 11 | 2 | |
Não | 67 | 39 | 28 | |
Presença de tosse | ||||
Sim | 44 | 33 | 11 | |
Não | 36 | 17 | 19 | |
Presença de febre | ||||
Sim | 21 | 16 | 5 | |
Não | 59 | 34 | 25 | |
Perda de sudorese | ||||
Sim | 37 | 23 | 14 | |
Não | 43 | 27 | 16 | |
Perda de peso | ||||
Sim | 46 | 28 | 18 | |
Não | 34 | 22 | 12 |
a)Estado civil: categoria ‘outros’ = pessoa separada, viúva e outros.
b)Ocupação: categoria ‘economicamente ativa’ = pessoa empregada, aposentada e beneficiária do INSS; categoria ‘não economicamente ativa’ = pessoa desempregada e dona de casa sem rendimento econômico mensal.
c)Condição de domicílio: categoria ‘próprio’ = 1. Moradia própria ou 2. Moradia cedida por amigo ou parente.
Duas plantas destacaram-se: Chenopodium ambrosioides L. (mastruz), citada por 23 pessoas; e Solanum capsicoides All. (melancia-da-praia), citada por 17 pessoas. Entretanto, o uso de outras ervas medicinais foi citado como prática de cuidado com a TB (Figuras 1 e 2). Os entrevistados atribuíram às plantas medicinais o alívio da tosse (13) ou expectoração (10), controle da febre e outros sintomas da doença (7), sendo o seu uso também relacionado ao controle dos efeitos colaterais advindos dos medicamentos adotados no tratamento da TB. O conhecimento sobre o uso de plantas medicinais foi atribuído, principalmente, ao aprendizado com pais e avós (30), e com amigos, vizinhos e conhecidos (8) (Figura 3).
Discussão
Neste estudo, foi possível observar a alta prevalência do consumo de plantas medicinais entre as pessoas com TB, motivado pela tosse e outros sintomas da doença. Observou-se a influência da família na manutenção transgeracional desse conhecimento, amplamente discutido na literatura científica.17,18 A planta mais citada, mastruz (Chenopodium ambrosioides L.), é utilizada na medicina popular para diversos fins;19 sua atividade antimicrobiana contra cepas de M. tuberculosis confere melhoras dos sintomas da TB, por inibir o crescimento do bacilo,20 e o fato pode motivar a incorporação dessa espécie na prática do cuidado prestados às pessoas com TB. Contudo, sob condição alguma, ela deve substituir o tratamento comprovadamente capaz de levar à cura.4
Utilizada na forma de “lambedor”, semelhante ao xarope caseiro, a melancia-da-praia (Solanum capsicoides All.) foi a segunda planta mais citada nas entrevistas: seu uso esteve relacionado ao alívio da tosse, expectoração e gripe, embora não se tenha encontrado evidência científica que a relacionasse à prática do cuidado da pessoa com TB; dada a frequente citação de consumo, sugere-se a continuidade da investigação sobre essa espécie.
As pessoas entrevistadas já se encontravam em tratamento medicamentoso, razão por que, na tentativa de minimizar o viés de recordatório no resgate das informações sobre uso de plantas medicinais antes do início do tratamento, as entrevistas aconteceram no início do tratamento. É mister, também, destacar o tamanho da amostra, insuficiente para analisar associações do uso das plantas medicinais, durante o tratamento, com variáveis de interesse. Em que pesem as limitações consideradas, os dados obtidos, além de servirem para ampliar a discussão sobre formas e práticas de cuidado, evidenciam a inserção de espécies vegetais no cenário da TB.
Há mais de 40 anos, a Organização Mundial da Saúde tem incentivado a incorporação do conhecimento tradicional às atividades de Atenção Primária à Saúde.7 No Brasil, a publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, em 2006 apontou a necessidade de fornecer treinamento aos profissionais da saúde para o manejo adequado dessas práticas.6 Os gestores do SUS devem colaborar para a efetivação dessa política, mediante incentivo financeiro e manutenção do tema na pauta de educação permanente. Da mesma forma, universidades e faculdades podem considerar e discutir a possibilidade de inclusão desse conhecimento nos currículos de ensino da área da Saúde.21
Observou-se ampla utilização de plantas medicinais como prática de cuidado com a TB em municípios do norte da Bahia. Nesse panorama, recomenda-se questionar e orientar sobre seu uso adequado, e, na ausência de evidência científica que sustente os benefícios trazidos por elas durante o tratamento da doença, desaconselhar a manutenção da terapia combinada.