Introdução
A avaliação da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, institucionalizada pelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), foi definida como um processo crítico-reflexivo sobre práticas e procedimentos desenvolvidos no âmbito dos serviços de saúde desse nível de complexidade.1 O PMAQ-AB constituiu-se como estratégia para a tomada de decisão e ação central voltada à melhoria da qualidade das ações de saúde. Organizado com base no trabalho em equipe, o programa vincula um incentivo financeiro aos municípios que atendam aos padrões de acesso e qualidade no atendimento à saúde.2
A tríade de Donabedian – estrutura-processo-resultados –4 para a avaliação da qualidade dos cuidados de saúde foi assumida como referência conceitual do PMAQ-AB, na avaliação da estrutura e do processo de trabalho desenvolvidos pelas equipes de saúde atuantes na APS, incluindo as equipes de saúde bucal (ESBs).3 Segundo esse modelo teórico, o ‘processo de trabalho’ consiste na soma das ações do trabalho em saúde e denota as relações entre usuários e prestadores de serviços na produção de cuidados.4
De acordo com Mendes Gonçalves, pautado na teoria marxista, o processo de trabalho em saúde diz respeito ao cotidiano de seus profissionais e deve ser analisado com relação aos seguintes componentes: objeto do trabalho, instrumentos, finalidade e agentes. As necessidades de saúde constituem o objeto de trabalho, sobre o qual incide a ação do trabalhador (agente). Os instrumentos não materiais são as ferramentas de natureza intelectual que permitem a apreensão do objeto de trabalho.5 A finalidade do trabalho em saúde, por sua vez, está em uma atenção integral e de qualidade, capaz de atender às necessidades e expectativas dos usuários. Finalmente, a presença atuante do agente torna possível o processo de trabalho, qual seja, a ação dinâmica entre objeto, instrumentos e atividade.7
A serviço da Saúde Pública, âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, os agentes do processo de trabalho em saúde bucal na APS atuam em equipes, organizadas sob duas modalidades: a de tipo I, composta por dois profissionais de saúde – um cirurgião-dentista (CD) e um auxiliar em saúde bucal (ASB) –; e a de tipo II, com três profissionais – CD, técnico em saúde bucal (TSB) e ASB.8 Nestas duas modalidades, é facultada a inserção do TSB no lugar do ASB.3 As ações da ESB são fundamentadas na Estratégia Saúde da Família (ESF), sua definição de território e da população adscrita, e devem se utilizar, em seu trabalho, ferramentas da epidemiologia e do planejamento, realizaram-se reuniões de equipe e se adotar uma abordagem multiprofissional e intersetorial, de maneira a promover qualidade no cuidado ao usuário.8
Evidências sugerem que a modalidade II das ESBs pode induzir a ampliação do acesso e melhorias na qualidade da atenção em saúde bucal,9 além da maior oferta de procedimentos odontológicos curativos.2 Somadas às tarefas comuns ao ASB e ao TSB, na promoção da saúde, levantamentos epidemiológicos, ações coletivas em creches e escolas, visitas domiciliares e participação em reuniões de equipe para planejamento das ações, o TSB também conta com atribuições clínicas, que incluem a remoção do biofilme, inserção e condensação de materiais restauradores, com potencial de otimizar o trabalho do CD e favorecer melhores resultados para as ESBs.9
Logo, a composição das ESBs pode influenciar a utilização dos instrumentos mais adequados à resolução das necessidades de saúde da população, refletindo-se em diferenças no processo de trabalho. A comparação das modalidades das ESBs compõe o escopo da avaliação das políticas de saúde bucal, como parte do PMAQ-AB. Considerando-se a dimensão territorial do Brasil e as evidências de desigualdades regionais na organização das práticase nos indicadores de resultado,12 justifica-se a comparação referida pela regionalização, para revelar os diferentes níveis de implementação das políticas de saúde bucal no país.
Buscando contribuir com o enfrentamento e redução das disparidades nos cuidados em saúde bucal, o presente estudo objetivou comparar as equipes de saúde bucal das modalidades I e II quanto ao desempenho no processo de trabalho e, assim, identificar diferenças nesse cuidado entre as regiões brasileiras.
Métodos
Estudo transversal exploratório, com base em dados públicos secundários hospedados em websites do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, relativos ao segundo ciclo do PMAQ-AB realizado em 2013-2014.15 Esses dados foram obtidos no endereço eletrônico do programa (https://aps.saude.gov.br/ape/pmaq/ciclo2/), acessado no mês de junho de 2017. A amostra do estudo foi composta por todas as ESBs nas unidades de saúde do SUS que aderiram ao PMAQ-AB; as ESBs constituíram a unidade de análise.
Os dados do programa foram obtidos da observação do consultório odontológico na unidade de saúde (US) e da entrevista com um dos profissionais da ESB, correspondentes aos módulos V e VI do PMAQ-AB respectivamente. O profissional entrevistado deveria ser o CD, pelo fato de ‘agregar o maior conhecimento sobre o processo de trabalho da equipe’. Outros membros da ESB (ASB ou TSB) poderiam conceder a entrevista, na ausência de um CD no momento da avaliação.3 As observações e entrevistas foram realizadas por uma equipe de avaliadores, sem vínculo com o serviço, previamente capacitados por instituições de ensino e pesquisa.3
Buscou-se avaliar o desempenho das ESBs quanto ao processo de trabalho, a partir da caracterização do uso de instrumentos de trabalho para o planejamento das ações, o desenvolvimento de ações de promoção da saúde e a atenção integral. O desempenho foi comparado entre modalidades de ESB e disparidades avaliadas, considerando-se as grandes regiões geográficas brasileiras.
O uso de instrumentos de trabalho, quanto ao planejamento das ações, foi estimado por sete variáveis que avaliavam se as ESBs realizavam esse planejamento: (i) construção de uma agenda de trabalho periódica; (ii) definição de metas para a Atenção Básica pactuadas pelo município; (iii) acesso ao Sistema de Informação da Atenção Básica (Siab); (iv) acesso a informações locais (estudo da demanda, cenário epidemiológico); (v) análise de questões relacionadas a riscos biológicos e vulnerabilidades individuais, familiares e sociais; (vi) análise de questões ambientais do território; e (vii) desafios apontados a partir da autoavaliação. Quanto ao planejamento das ações, outras duas variáveis referiam-se à realização de monitoramento, análise dos indicadores e informações de saúde bucal pela ESB, e se a gestão disponibilizava para a ESB informações que auxiliassem na análise de situação de saúde.
O uso de instrumentos de trabalho nas ações de promoção da saúde foi avaliado por quatro variáveis: (i) organização da agenda da ESB para ofertar atividades de educação em saúde bucal no território; (ii) realização de acompanhamento das gestantes por meio de consultas; (iii) realização de visita domiciliar pela ESB; e (iv) realização de atividades na escola/creche.
O uso de instrumentos de trabalho para uma atenção integral à saúde foi caracterizado pelos seguintes aspectos: (i) existência de central de regulação para encaminhamento dos usuários às especialidades odontológicas; (ii) oferta de consultas especializadas pela rede de saúde; e (iii) realização de ações de prevenção e detecção do câncer de boca.
Todas as variáveis para avaliação do uso de instrumentos de trabalho foram obtidas no módulo VI, em entrevista com os profissionais das ESBs. As variáveis são dicotômicas (não ou sim) e respostas positivas indicam o uso de instrumentos de trabalho que favorecem um melhor desempenho no processo de trabalho da ESB.
A variável ‘modalidade da ESB’ foi obtida pela seguinte questão, “Qual a modalidade da equipe de saúde bucal desta unidade de saúde?” (tipo I, tipo II ou parametrizada) e apresentada no módulo V (observação das unidades de saúde – US). As equipes parametrizadas são aquelas ESBs da Atenção Básica cuja organização do trabalho difere da organização das equipes de Saúde da Família e não há a obrigatoriedade da presença de ASB ou TSB.3
A variável ‘localização da ESB’ correspondeu à localização da ESB em uma das 27 Unidades da Federação, incluindo o Distrito Federal, e possibilitou avaliar sua distribuição entre as cinco regiões geográficas brasileiras: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. A frequência de equipes parametrizadas foi baixa (1,8%), variando de 0,3% na região Nordeste a 8,9% na Centro-Oeste, motivo pelo qual essa modalidade foi excluída das análises comparativas, realizadas entre as ESBs de tipos I e II exclusivamente.
O banco de dados foi construído a partir da vinculação de dois módulos, V e VI, pela variável comum ‘Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)’, responsável pela identificação de cada US, tendo em vista a ausência de uma variável para identificar cada ESB no módulo VI e o fato de a modalidade das ESBs ter sido obtida por US. No módulo V, houve registro de apenas uma ESB por US. Já no módulo VI, para a maioria das US (90,8%), profissionais de uma única ESB foram entrevistados. Para as US com duas ou mais equipes, em caso de discordância entre as respostas dos profissionais, optou-se por considerar a resposta mais positiva para representar as ESBs daquela unidade.
A identificação de subgrupos de ESBs quanto ao desempenho no uso de instrumentos de trabalho para planejamento das ações, ações de promoção da saúde e atenção integral foi realizada utilizando-se das análises de classes latentes (LCA, sigla em inglês para Latent Class Analysis). Três análises de classes latentes, separadas, foram realizadas para cada grupo de variáveis observadas, com o propósito de identificar subgrupos similares de ESBs de acordo com o perfil para esse conjunto de variáveis. A LCA é um modelo misto; ele postula a existência de uma variável categórica não observada (latente) que divide uma população em classes mutuamente exclusivas e completas. A participação dos indivíduos nas categorias é desconhecida, mas pode ser inferida a partir da medição de um conjunto de itens.16
Uma sequência de modelos para o conjunto de variáveis observadas, contendo de uma a cinco classes, foi testada para determinar o melhor ajuste baseado no valor mínimo do BIC (sigla em inglês para Bayesian Information Criterion). Em seguida, para cada variável latente, a probabilidade de cada ESB pertencer a um subgrupo (classe) foi estimada. Tendo-se como parâmetro os valores de probabilidade máximos, foi definida a distribuição das ESBs nas classes, que variaram entre duas ou três em cada variável latente. Para fins de interpretação, as classes representam os diferentes desempenhos das ESBs quanto ao processo de trabalho, no que diz respeito ao uso de instrumentos de trabalho. À luz dessa limitação, adotou-se o termo ‘processo de trabalho’ e o desempenho desse processo foi categorizado como ‘consolidado’, ‘em desenvolvimento’ ou ‘incipiente’, seguindo o gradiente da maior para a menor probabilidade de respostas positivas às variáveis observadas. A LCA foi realizada utilizando-se o Generalized Structural Equation Model (GSEM), com a função logit, haja vista todas as variáveis observadas serem binárias.
A análise descritiva possibilitou demonstrar o desempenho do processo de trabalho das ESBs de tipos I e II nas regiões brasileiras. O índice de disparidade (ID) foi empregado para estimar e comparar a magnitude das diferenças nas proporções de ESBs com processo de trabalho consolidado. Os valores desse índice indicam o desvio médio das proporções observadas em uma região, relativamente à proporção de referência, em percentuais, ou seja, o espalhamento das proporções em torno do valor de referência, que foi o valor observado para a região com maior proporção de processo de trabalho consolidado e o valor obtido pelo conjunto do Brasil. O teste qui-quadrado de Pearson avaliou diferenças no desempenho do processo de trabalho das ESBs, entre ambas as modalidades, para cada região brasileira, assumindo-se nível de significância de 5%.
O software Stata versão 15.0 foi utilizado para as análises estatísticas. Mapas temáticos foram elaborados para representar o percentual de ESBs das modalidades I e II com processo de trabalho consolidado, em cada região, empregando-se o software QGis®.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CEP/UFMG) em 1o de novembro de 2017 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética [CAAE] nº 76981917.4.0000.5149). Foram utilizados dados públicos secundários, sem a identificação dos participantes. A adesão das equipes ao PMAQ-AB foi voluntária, mediante assinatura de um Termo de Adesão.
Resultados
Um total de 18.114 ESBs foram identificadas no banco de dados do módulo VI, referente ao processo de trabalho. Ao serem agrupados os dados para as US com duas ou mais ESBs, passaram a ser 16.189 ESBs, das quais 12 foram excluídas porque não possuíam informações sobre localização. Afinal, totalizou-se 16.177 ESBs com informações completas para as variáveis referentes a processo de trabalho, modalidade e localização, e dessas, 291 (1,8%) eram equipes parametrizadas e, uma vez excluídas, restou um total de 15.886 (98,1%) ESBs consideradas na presente análise.
As regiões com maior número de ESBs participantes foram o Nordeste (44,4%) e o Sudeste (26,3%); nas regiões Norte e Centro-Oeste, as ESBs foram menos frequentes, com 6,8% e 8,6% respectivamente. A maioria das ESBs (86,3%) foi da modalidade I, e as regiões com maior frequência de ESB na modalidade II foram o Sudeste (19,2%) e o Sul (18,3%) (Tabela 1). Esta distribuição foi semelhante à do universo das ESBs no Brasil em janeiro de 2014.17
Regiões | ESBs que aderiram ao PMAQ-AB (2013/2014) n (%) | Total de ESBs (2014) N (%) | |||
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Tipo I | Tipo II | Parametrizada | Total | ||
Norte | 980 (89,3) | 108 (9,9) | 9 (0,8) | 1.097 (6,8) | 1.844 (7,5) |
Nordeste | 6.736 (93,6) | 439 (6,1) | 24 (0,3) | 7.199 (44,4) | 11.116 (45,0) |
Sudeste | 3.356 (78,8) | 816 (19,2) | 84 (2,0) | 4.256 (26,3) | 6.507 (26,4) |
Sul | 1.795 (79,4) | 415 (18,3) | 51 (2,3) | 2.261 (14,0) | 3.236 (13,1) |
Centro-Oeste | 1.115 (80,3) | 150 (10,8) | 124 (8,9) | 1.389 (8,6) | 1.963 (8,0) |
Brasil | 13.982 (86,3) | 1.928 (11,9) | 292 (1,8) | 16.202 (100,0) | 24.666 (100,0) |
Para o planejamento das ações, o modelo com três classes de desempenho – ‘consolidado’, ‘em desenvolvimento’ e ‘incipiente’ – apresentou melhor ajuste. Para as outras duas variáveis latentes, o modelo com duas classes apresentou melhor ajuste e, assim, foram denominadas como desempenho ‘consolidado’ ou ‘em desenvolvimento’. A Tabela 2 apresenta a frequência de uso dos instrumentos de trabalho entre as ESBs segundo níveis de desenvolvimento de processo de trabalho. As ESBs com processo de trabalho consolidado apresentaram alto percentual de uso de todos os instrumentos de trabalho para o planejamento das ações, ações de promoção da saúde e atenção integral. O percentual de uso dos instrumentos foi menor entre as equipes com desenvolvimento avaliado como incipiente ou em desenvolvimento.
Instrumentos de trabalho | Planejamento das ações: incipiente (N=1.476) % | Planejamento das ações: em desenvolvimento (N=5.147) % | Planejamento das ações: consolidado (N=9.566) % | Total N=16.189 % | |
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Planejamento das atividades pela ESB considerando a construção de uma agenda de trabalho semanal, quinzenal ou mensal | 55,5 | 91,6 | 98,5 | 92,4 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando as metas para a Atenção Básica pactuada pelo município | 31,2 | 76,5 | 99,1 | 85,8 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando as informações do sistema de informação da Atenção Básica | 15,1 | 64,1 | 98,7 | 80,1 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando as informações locais (estudo da demanda, cenário epidemiológico e outros) | 3,7 | 68,3 | 98,9 | 80,5 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando as questões relacionadas a riscos biológicos e vulnerabilidades individuais, familiares e sociais (violência, drogas e outras) | 6,9 | 67,5 | 95,4 | 78,5 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando as questões ambientais do território (incluindo acesso à terra) | 4,4 | 52,4 | 82,7 | 65,9 | |
Planejamento das atividades pela ESB considerando os desafios apontados a partir da autoavaliação | 10,5 | 53,1 | 91,3 | 71,8 | |
Realização de monitoramento e análise dos indicadores e informações de saúde bucal pela ESB | 12,9 | 38,9 | 90,1 | 66,8 | |
Gestão disponibiliza para a ESB informações que auxiliem na análise de situação de saúde | 18,0 | 48,5 | 95,9 | 73,8 | |
Instrumentos de trabalho | Ações de promoção da saúde: em desenvolvimento (N=1.654) % | Ações de promoção da saúde: consolidado (N=14.269) % | |||
Organização da agenda da ESB para ofertar atividades de educação em saúde bucal no território | 35,4 | 97,1 | 90,7 | ||
Realização de acompanhamento das gestantes mediante consultas pela ESB | 51,9 | 96,6 | 92,0 | ||
Realização de visita domiciliar pela ESB | 13,6 | 85,5 | 78,0 | ||
Realização de atividades na escola/creche pela ESB | 49,4 | 97,7 | 92,7 | ||
Instrumentos de trabalho | Atenção integral: em desenvolvimento (N=4.939) % | Atenção integral: consolidado (N=10.984) % | |||
Existência de central de regulação disponível para o encaminhamento dos usuários às especialidades odontológicas | 22,5 | 69,4 | 54,8 | ||
Disponibilidade de oferta de consultas especializadas pela rede de saúde | 15,9 | 100,0 | 73,8 | ||
Realização de ações de prevenção e detecção do câncer de boca pela ESB | 56,6 | 90,8 | 80,1 |
No Brasil, 51,2% das ESBs apresentaram planejamento das ações consolidado, percentual superado nas regiões Nordeste (55,3%) e Sudeste (56,4%). O Nordeste também apresentou a maior frequência de ações de promoção da saúde consolidadas (92,3%), sendo a única região com esse valor superior ao nacional (89,8%). As regiões Sul (78,3%) e Sudeste (77,0%) apresentaram as maiores frequências de equipes com atenção integral consolidada, valores maiores que o observado para o Brasil (68,8%) (Tabela 3).
Modalidade | Planejamento das ações N (%) | Ações de promoção da saúde N (%) | Atenção integral N (%) | Total N | ||||
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I | D | C | D | C | D | C | ||
Brasil | ||||||||
Tipo I | 1.714 (12,3) | 5.240 (37,5) | 7.008 (50,2) | 1.477 (10,6) | 12.485 (89,4) | 4.515 (32,3) | 9.447 (67,7) | 13.962 |
Tipo II | 184 (9,6) | 616 (32,0) | 1.124 (58,4) | 148 (7,7) | 1.776 (92,3) | 440 (22,9) | 1.484 (77,1) | 1.924 |
Total | 1.898 (11,9) | 5.856 (36,9) | 8.132 (51,2) | 1.625 (10,2) | 14.261 (89,8) | 4.955 (31,2) | 10.931 (68,8) | 15.886 |
p-valora | p≤0,001 | p≤0,001 | p≤0,001 | |||||
Norte | ||||||||
Tipo I | 199 (20,3) | 457 (46,6) | 324 (33,1) | 166 (16,9) | 814 (83,1) | 483 (49,3) | 497 (50,7) | 980 |
Tipo II | 28 (26,2) | 43 (40,2) | 36 (33,6) | 19 (17,8) | 88 (82,2) | 55 (51,4) | 52 (48,6) | 107 |
Total | 227 (20,9) | 500 (46,0) | 360 (33,1) | 185 (17,0) | 902 (83,0) | 538 (49,5) | 549 (50,5) | 1.087 |
p-valora | p=0,291 | p=0,831 | p=0,678 | |||||
Nordeste | ||||||||
Tipo I | 681 (10,1) | 2.342 (34,8) | 3.705 (55,1) | 525 (7,8) | 6.203 (92,2) | 2.312 (34,4) | 4.416 (65,6) | 6.278 |
Tipo II | 27 (6,2) | 155 (35,4) | 256 (58,4) | 24 (5,5) | 414 (94,5) | 116 (26,5) | 322 (73,5) | 438 |
Total | 708 (9,9) | 2.497 (34,8) | 3.961 (55,3) | 549 (7,7) | 6.617 (92,3) | 2.428 (33,9) | 4.738 (66,1) | 7.166 |
p-valora | p=0,025 | p=0,076 | p=0,001 | |||||
Sudeste | ||||||||
Tipo I | 350 (10,4) | 1.203 (35,9) | 1.798 (53,7) | 391 (11,7) | 2.960 (88,3) | 811 (24,2) | 2.540 (75,8) | 3.351 |
Tipo II | 51 (6,3) | 211 (25,9) | 553 (67,8) | 44 (5,4) | 771 (94,6) | 146 (17,9) | 669 (82,1) | 815 |
Total | 401 (9,6) | 1.414 (33,9) | 2.351 (56,5) | 435 (10,4) | 3.771 (89,6) | 957 (23,0) | 3.209 (77,0) | 4.166 |
p-valora | p≤0,001 | p≤0,001 | p≤0,001 | |||||
Sul | ||||||||
Tipo I | 258 (14,4) | 763 (42,7) | 767 (42,9) | 203 (11,3) | 1.585 (88,7) | 428 (23,4) | 1.360 (76,6) | 1.788 |
Tipo II | 42 (10,1) | 145 (35,0) | 227 (54,9) | 29 (7,0) | 385 (93,0) | 50 (12,1) | 364 (87,9) | 414 |
Total | 300 (13,6) | 908 (41,2) | 994 (45,2) | 232 (10,6) | 1.970 (89,4) | 478 (21,7) | 1.724 (78,3) | 2.202 |
p-valora | p≤0,001 | p≤0,001 | p≤0,001 | |||||
Centro-Oeste | ||||||||
Tipo I | 226 (20,3) | 475 (42,6) | 414 (37,1) | 192 (17,2) | 923 (82,8) | 481 (43,1) | 634 (56,9) | 1.115 |
Tipo II | 36 (24,0) | 62 (41,3) | 52 (34,7) | 32 (21,3) | 118 (78,7) | 73 (48,7) | 77 (51,3) | 150 |
Total | 262 (20,7) | 537 (42,5) | 466 (36,8) | 224 (17,7) | 1.041 (82,3) | 554 (43,8) | 711 (56,2) | 1.265 |
p-valora | p=0,561 | p=0,215 | p=0,200 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson para comparação dos percentuais de desempenho das ESBs quanto ao planejamento das ações, ações de promoção da saúde e atenção integral entre as modalidades das equipes, no Brasil e para cada região do país.
Nota: Em negrito, valor de p<0,05.
No Brasil e nas regiões Sudeste e Sul, a frequência de ESBs com processo de trabalho consolidado foi significativamente maior entre as equipes da modalidade II. Na região Nordeste, também houve melhor desempenho para as equipes da modalidade II, exceto para ‘ações de promoção da saúde’. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, não houve diferença estatística significativa no desempenho entre ambas as modalidades das ESBs (Tabela 3).
A maior disparidade entre as regiões, no percentual de ESBs com processo de trabalho consolidado, foi observada para aspectos relacionados a planejamento de ações, seguido por atenção integral, e entre equipes da modalidade II (Tabela 4). A Figura 1 retratou as frequências de ESBs, de tipos I e II, com processo de trabalho consolidado entre as grandes regiões brasileiras.
Variável | IDra Brasil | IDpb Brasil | ID ESB Tipo Ir | ID ESB Tipo Ip | OHT ID Type IIr | OHT ID Type IIp |
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Planejamento das ações | 19,6 | 18,7 | 18,4 | 18,3 | 26,5 | 21,1 |
Ações de promoção da saúde | 5,4 | 3,9 | 5,6 | 3,9 | 6,3 | 6,3 |
Atenção integral | 16,2 | 14,9 | 14,6 | 13,7 | 21,9 | 13,3 |
a) IDr: índice de disparidade calculado tendo como referência a região (r) com melhor percentual de ESBs com processo de trabalho consolidado.
b) IDp: índice de disparidade calculado tendo como referência a proporção (p) de ESBs com processo de trabalho consolidado no Brasil.
Discussão
Os resultados apontam para a associação entre a composição das ESBs (agentes) e o uso de instrumentos de trabalho, sendo mais favoráveis às ESBs da modalidade II, embora evidenciem, também, disparidades regionais no desempenho das ESBs.
Em relação ao total de ESBs, houve baixa frequência da modalidade II (11,9%). O exercício das profissões de ASB e TSB, regulamentado somente em 2008, apresenta um potencial para a ampliação do acesso aos serviços de saúde bucal;18 porém, há críticas quanto à adequação dos cursos de formação ao novo modelo de atenção em saúde bucal.11 A maior concentração de ESBs da modalidade II nas regiões Sul e Sudeste pode indicar diferenças no investimento em estrutura e recursos humanos, já tendo sido observada em municípios de maior índice de desenvolvimento humano (IDH).14 Embora a descentralização imponha uma responsabilização da gestão local da Saúde, o financiamento federal é um importante indutor de avanços e garantias do direito à saúde e sua insuficiência tem-se destacado no contexto atual e em projeções de cenários futuros.19 A distribuição regional de centros de formação profissional e políticas de fixação dos recursos humanos em áreas remotas também podem atuar como mecanismos indutores de redução dessas desigualdades.20
O planejamento das ações revelou-se desafiador, com menores proporções de ESBs de tipos I e II consolidadas e a maior disparidade entre as regiões. Dificuldades no uso de dados epidemiológicos sobre riscos, vulnerabilidades e questões ambientais, ou a não disponibilização dessas informações, têm sido o desafio de muitas equipes. A produção do cuidado com base no planejamento e organização do serviço evidenciou um protagonismo limitado das ESBs, diante das diretrizes estabelecidas na Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB),21 e a aproximação entre a gestão, educação permanente e práticas clínicas permanece como mais uma dificuldade.22 Nesta dimensão, a região Norte apresentou a maior proporção de ESBs incipientes. Caracterizada pela grande extensão territorial, baixa densidade demográficae predomínio de um importante ecossistema, a Amazônia, a região Norte apresentou desenvolvimento econômico nas últimas décadas mas seus indicadores sociais e de saúde não acompanharam esse avanço, motivando críticas sobre a sustentabilidade desse desenvolvimento.23
O planejamento das ações e a atenção integral apresentaram os maiores valores de disparidade entre as regiões, especialmente para a ESB de tipo II, devido à diferença do percentual de ESBs com processo de trabalho consolidado das regiões Centro-Oeste e Norte, em relação ao percentual de referência. Essa diferença fica ainda mais acentuada para a ESB de tipo II, pois os percentuais de ESBs com processo de trabalho consolidado não diferiram entre modalidades nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas foram maiores para as regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Assim, a importância das políticas de equidade em saúde fica evidenciada, considerando-se a necessidade de enfrentamento de barreiras sociais e econômicas para que o processo de trabalho incorpore o planejamento das ações e favoreça o alcance da integralidade no atendimento, buscando-se a redução da disparidade regional.24
Em todas as regiões brasileiras, ações de promoção da saúde foram o aspecto para o qual mais de 80% das ESBs apresentaram processo de trabalho consolidado e com menor disparidade entre as regiões. Estes resultados podem apontar para a reorganização das práticas proposta pela PNSB,21 enquanto indicativos de mudança do modelo curativista para uma prática que adota um conceito ampliado de saúde e pensa os problemas sociais a partir da integração de diferentes ações, promoção da saúde e reconhecimento do território.25 A aproximação com os preceitos da Estratégia Saúde da Família e da Política Nacional da Atenção Básica revelam avanços nas atividades de educação em saúde no território, ações intersetoriais na rede de educação e atenção a grupos prioritários;8 contudo, desafios relacionados ao empoderamento dos usuários26 e sua abordagem restrita ao ambiente familiar27 persistem. A região Nordeste destacou-se pelo maior percentual de ESBs com ações de promoção da saúde consolidadas; nas regiões Sul e Sudeste, por sua vez, observou-se diferença significativa entre as duas modalidades de ESB, nas proporções de ações de promoção da saúde consolidadas. Historicamente, o Sul e o Sudeste do país são pioneiros na implementação de atividades econômicas, financiamento de ações, investimento na infraestrutura e em modelos de gestão da Saúde,28 e tais condições podem atuar como catalisadoras da organização dos serviços, favorecendo a atuação das ESBs que contam com a modalidade de três profissionais.14
Se por um lado os resultados apontam melhor desempenho para as ESBs do tipo II em algumas regiões, por outro lado, eles sugerem que o potencial dessa modalidade não se manifestou em toda a sua capacidade; ou revelam a persistência de entraves em seu processo de trabalho. Dessa forma, é preciso reforçar a regionalização em saúde, especialmente no que compete ao planejamento das ações, organização e estrutura dos serviços e gestão das redes de atenção, favorecendo a atuação das ESBs. Embora o presente estudo se proponha a um recorte transversal de uma avaliação conduzida entre 2013 e 2014, os dados observados refletem avanços e desafios, consequência de políticas de saúde bucal desde a incorporação das ESBs na ESF, em 2000, logo impulsionada pela PNSB. O Brasil tem vivenciado um contingenciamento dos recursos destinados à Saúde Bucal, além da descontinuidade de processos avaliativos e mudanças no modelo de financiamento dos serviços de saúde, com impactos negativos nos indicadores de acesso e de qualidade desses serviços.30 O contexto atual e seus efeitos precisam ser revelados por ações permanentes de avaliação e monitoramento da qualidade dos serviços.
A metodologia utilizada pelo PMAQ-AB para avaliação das equipes inclui a adesão voluntária ao programa, podendo resultar em um viés de seleção, à medida que as equipes que aderiram podem representar aquelas com melhores condições de estrutura e processo de trabalho, superestimando os resultados. Contudo, a análise de classes latentes – LCA – permitiu a identificação de subgrupos de ESBs com desempenhos semelhantes quanto ao processo de trabalho e uma comparação entre regiões e modalidades das equipes. Embora a representatividade não tenha sido um critério para a adesão, a distribuição de frequência das ESBs na amostra do PMAQ-AB entre as regiões brasileiras foi semelhante ao universo das equipes no Brasil.17
Importantes aspectos sobre instrumentos e agentes do processo de trabalho foram explorados, embora o estudo não abranja toda a complexidade do processo de trabalho das ESBs no contexto das regiões brasileiras. As expectativas e necessidades de saúde da população, assim como a organização da atenção à saúde no território, não foram avaliadas e, entretanto, podem afetar o perfil epidemiológico. A despeito dessas limitações, o estudo retrata a distribuição das ESBs e seu desempenho, e aponta para futuras investigações, mais concentradas no entendimento dos fatores regionais que envolvam a gestão, a estrutura e os mecanismos indutores da qualidade dos serviços de saúde bucal, capazes de interferir no desempenho dessas equipes.
Neste estudo, de base nacional, as regiões Sudeste, Sul e Nordeste tiveram as maiores frequências de ESBs com melhor desempenho no processo de trabalho, quanto ao uso de instrumentos utilizados para planejamento das ações, ações de promoção da saúde e atenção integral, e a modalidade II parece contribuir para esse desempenho. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, o processo de trabalho foi semelhante entre as ESBs de tipos I e II, e essa similaridade pode ter contribuído para a maior disparidade entre as regiões. Conclui-se que as equipes de saúde bucal da modalidade II têm potencial para contribuir com melhor desempenho do processo de trabalho, não obstante os achados serem desiguais entre as regiões geográficas brasileiras.