Introdução
A dengue é a mais importante arbovirose que afeta o ser humano, sendo considerada doença endêmica em mais de 100 países. Estima-se que 390 milhões de indivíduos estejam sob o risco dessa infecção.1 No Brasil, o crescente número de casos graves e óbitos torna esse agravo ainda mais significativo.3
Em Mato Grosso do Sul e em sua capital, Campo Grande, entre 2000 e 2010, a incidência de dengue seguiu o padrão observado na região Centro-Oeste e no Brasil como um todo, com ciclos de alta transmissibilidade. Em 2010, o Mato Grosso do Sul registrou uma incidência de 1.167,8 casos por 100 mil habitantes, e Campo Grande especialmente, 3.952,5 casos por 100 mil hab.5Nos anos seguintes, as ocorrências de epidemias de dengue apresentaram um padrão bem definido, com ciclos a cada três anos. Em 2013, quando a infecção apresentou a maior casuística, registrou 3.017,9 casos por 100 mil hab. no estado e 5.605,0 casos por 100 mil hab. na capital. Em 2016, foram registrados 1.671,3 casos por 100 mil hab. no estado e 3.293,93 casos por 100 mil hab. na capital.6
Como estratégia para o enfrentamento da endemia, em 2002 foi criado o Programa Nacional de Controle da Dengue, tem como um de seus componentes, a integração das ações de controle da dengue pelos agentes de combate às endemias (ACE), com as atividades dos agentes comunitários de saúde (ACS) nas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF).8 Em 2009, o Ministério da Saúde apontou a necessidade de reorganização dos processos de trabalho e da definição de papéis e responsabilidades desses profissionais. No ano seguinte, a Portaria Ministerial GM/MS nº 1.007, de 4 de maio de 2010, reafirmou a integração dos ACEs na Atenção Primária à Saúde.9
Em Campo Grande, a implantação dessas recomendações ocorreu em 2011, coordenada pelas Diretorias de Assistência e de Vigilância em Saúde, tendo por referência um instrumento municipal, na forma de publicação: a ‘Cartilha Instrutiva – Integração ACE/ACS na ESF’ determinou o processo de trabalho e as atribuições de ACE e ACS em uma mesma base territorial.11
O estudo teve por objetivo descrever o processo de integração do ACE na ESF, na capital Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, em 2017.
Métodos
Realizou-se um estudo do tipo transversal descritivo, desenvolvido no período de fevereiro a maio de 2017, em quatro unidades de Saúde da Família (USF) de áreas urbanas de Campo Grande, MS.
As USFs foram selecionadas por conveniência, contemplando os quatro Distritos Sanitários do município, garantindo-se o tempo suficiente de experiência das equipes na proposta de integração do ACE. Foram quatro as USFs escolhidas, três por serem as primeiras participantes do projeto-piloto em 2011, e a quarta, em 2012.
Foram convidados a participar os ACEs em trabalho no momento da coleta de dados e com mais de seis meses de atuação na USF de referência.
Para a coleta de dados, utilizou-se questionário semiestruturado autoaplicável (ver material suplementar a este manuscrito), desenvolvido a partir da Cartilha Instrutiva do município, contendo 24 questões distribuídas em três dimensões: (i) a organização do processo de trabalho; (ii) as ações de controle vetorial; (iii) as competências profissionais.
A Cartilha Instrutiva propõe a utilização de duas ferramentas de trabalho: (i) o checklist, ferramenta específica do ACS, empregada como um recordatório das visitas domiciliares e cuja função é registrar os principais problemas encontrados na inspeção do imóvel, subsidiando as ações instrutivas e educativas do agente às famílias (dos imóveis visitados) e a notificação do morador quanto à necessidade de eliminação de reservatórios de água e lixo;12 e (ii) o uso do Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), um instrumento para estimar o grau de infestação e a distribuição do mosquito vetor no ambiente domiciliar.13
A coleta de dados foi agendada previamente, com a gerência da USF, de acordo com a disponibilidade dos profissionais.
O software Microsoft Excel® 2010 foi utilizado como apoio à organização e análise dos dados, sendo tabuladas frequências absolutas e relativas sobre a utilização pelos ACS/ACEs das diferentes ferramentas de trabalho, sua participação nas reuniões, a realização de supervisão de suas atividades e o profissional responsável por ela, e a importância da integração de ambas as categorias de agentes segundo sua percepção.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CEP/UFMS): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 62362716.7.0000.0021, emitido em 25 de janeiro de 2017. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Conjuntamente, as 12 equipes lotadas nas quatro USFs eram compostas por um total de 75 ACS e 8 ACEs. Foram considerados perdas 18 ACS: 5 por motivo de férias e 13 por estarem de licença médica. Enfim, participaram um total de 65 agentes (57 ACS e 8 ACEs).
Com relação às ferramentas de trabalho (Tabela 1), quando questionados sobre conduta frente aos itens insatisfatórios no checklist da inspeção do imóvel, a maioria dos ACS (42/57) informou realizar orientação ao morador e 40/57 afirmaram realizar controle mecânico do ambiente. Mais da metade dos ACS (33/57) não utilizava o LIRAa no planejamento das ações, justificando que raramente os resultados eram apresentados e discutidos em reunião de equipe, enquanto a maioria dos ACEs (7/8) afirmaram utilizá-lo rotineiramente. Ademais, os ACS reconheceram que o resultado do LIRAa pode influenciar nas atividades desenvolvidas por eles, por meio da visibilidade dos locais de maior risco (21/57) e intensificação das visitas (15/57).
Variáveis | ACSª (n=57) | ACEb (n=8) | Total (n=65) |
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n | n | n | |
Conduta frente ao resultado insatisfatório do checklistc | |||
| |||
Orientação ao morador | 42 | 2 | 44 |
Controle mecânico dos ambientes | 40 | 2 | 42 |
Solicita tratamento químico | 16 | 1 | 17 |
Encaminha ao enfermeiro | 11 | 1 | 12 |
Solicitação de encaminhamentos à Vigilância Sanitária | 5 | 1 | 6 |
Realiza visita sem a necessidade de nenhum encaminhamento | 4 | – | 4 |
| |||
Utilização do LIRAad | |||
| |||
Sim | 24 | 7 | 31 |
Não | 33 | 1 | 34 |
| |||
Discussão do LIRAad em reunião de equipe | |||
| |||
Nunca | 6 | 2 | 08 |
Raramente | 11 | – | 11 |
Às vezes | 18 | 1 | 19 |
Frequentemente | 11 | 2 | 13 |
Sempre | 11 | 3 | 14 |
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Influência do resultado do LIRAad no território | |||
| |||
Planejar ações de campo | 11 | 1 | 12 |
Visualizar locais de maior risco | 21 | 3 | 24 |
Intensificar as visitas | 15 | 3 | 18 |
Outros | 10 | 1 | 11 |
a) ACS: agente comunitário de saúde.
b) ACE: agente de combate às endemias.
c) Poderia ser assinalada uma ou mais alternativas.
d) LIRAa: Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti.
A Tabela 2 ilustra os resultados quanto ao processo de trabalho. Todos os 65 participantes prestavam orientações ao morador sobre como evitar e eliminar possíveis criadouros do Aedes aegypti, 62/65 sobre sinais e sintomas da dengue, e 58/65 realizavam controle mecânico dos ambientes. As reuniões semanais de equipe foram relatadas por 53/65 agentes. Todos os 8 ACEs e 54/57 ACS afirmaram receber supervisão das atividades de controle da dengue. Destes, 30/57 ACS relataram supervisão pelo enfermeiro, 2/57 ACS e 7/8 ACEs, pelo supervisor de área, e apenas um (1/8) ACE e 25/57 ACS citaram a supervisão compartilhada por ambos, enfermeiro e supervisor de área.
Variáveis | ACSa (n=57) | ACEb (n=8) | Total (n=65) |
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n | n | n | |
Frequência das reuniões de equipe | |||
| |||
Semanal | 47 | 6 | 53 |
Quinzenal | 7 | 2 | 9 |
Mensal | 1 | – | 1 |
Raramente | 2 | – | 2 |
| |||
Participação nas reuniões de equipec | |||
| |||
ACEb/ACSa | 57 | 7 | 64 |
Enfermeiro | 57 | 6 | 63 |
Todos os membros da equipe | 18 | 5 | 23 |
Supervisor de área | 19 | 6 | 25 |
| |||
Supervisão de campo | |||
| |||
Sim | 54 | 7 | 61 |
Não | 3 | 1 | 4 |
| |||
Profissional que realiza supervisão de campo | |||
| |||
Enfermeiro | 30 | – | 30 |
Supervisor de área | 02 | 7 | 09 |
Enfermeiro/supervisor de área | 25 | 1 | 26 |
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Atividades desenvolvidasc | |||
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Orientações ao morador sobre como evitar e eliminar possíveis criadouros do vetor | 57 | 8 | 65 |
Informa ao morador sobre a doença, sintomas, riscos, agente transmissor | 55 | 7 | 62 |
Vistoria de cômodos, realizando controle mecânico dos ambientes | 51 | 7 | 58 |
Comunica ao supervisor presença de focos | 49 | 7 | 56 |
Encaminha casos suspeitos à unidade | 48 | 6 | 54 |
Atualiza cadastro de imóveis e de pontos estratégicos | 43 | 7 | 50 |
Vistoria de cômodos, verificando existência de focos | 37 | 7 | 44 |
Vistoria de cômodos, realizando coleta de larvas | 5 | 5 | 10 |
Atende a queixas de vizinhos sobre denúncias de possíveis criadouros na microárea | 6 | 2 | 8 |
Identifica criadouros e realiza aplicação de larvicidas quando indicado | 2 | 4 | 6 |
a) ACS: agente comunitário de saúde.
b) ACE: agente de combate às endemias.
c) Poderia ser assinalada uma ou mais alternativas.
Sete (7/8) ACEs e 29/57 ACS consideraram a integração do ACE às equipes da ESF muito importante, tendo como pontos positivos dessa integração (i) o trabalho em equipe, para 7/8 ACEs e 23/57ACS, e (ii) a priorização das ações da ESF, destacada por 8/57 ACS. Quanto aos fatores negativos, a falta de autonomia para intervenções legais predominou para 6/8 ACEs; entre os ACS, 14/57 declararam ausência de fluxo intersetorial, enquanto 8/57, acúmulo de funções (Tabela 3).
Variáveis | ACSa (n=57) | ACEb (n=8) | Total (n=65) |
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n | n | n | |
Importância da integração | |||
| |||
Muito importante | 29 | 7 | 36 |
Importante | 24 | 1 | 25 |
Pouco importante | 4 | – | 4 |
| |||
Satisfação com a integração | |||
| |||
Satisfeito | 55 | 7 | 62 |
Insatisfeito | 2 | 1 | 3 |
| |||
Aspectos positivosc | |||
| |||
Trabalho em equipe | 23 | 7 | 18 |
Compartilhamento de informações | 7 | 1 | 8 |
Notificação imediata de casos | 8 | – | 8 |
Priorização das ações da ESFd | 8 | – | 8 |
| |||
Aspectos negativosc | |||
| |||
Falta de autonomia para intervenções legais | 9 | 6 | 15 |
Ausência de fluxo intersetorial | 14 | – | 14 |
Ausência de integração | 5 | – | 5 |
Acúmulo de funções | 8 | 2 | 10 |
a) ACS: agente comunitário de saúde.
b) ACE: agente de combate às endemias.
c) Falas predominantes.
d) ESF: Estratégia Saúde da Família.
Discussão
Este estudo descreveu o processo de integração do ACE na ESF, a partir das dimensões (i) organização do processo de trabalho, (ii) ações de controle vetorial e (iii) competências profissionais. A totalidade dos participantes prestava orientações ao morador sobre possíveis criadouros do vetor, e dois terços, sobre sinais e sintomas da dengue. O LIRAa era usado pela minoria dos ACS e pela maioria dos ACEs. A integração do ACE no ESF era compreendida como muito importante para a maioria dos ACEs e cerca da metade dos ACS.
A integração do ACE na ESF, regulamentada pelo Ministério da Saúde,6 foi apoiada em Campo Grande pela ‘Cartilha Instrutiva – Integração ACE/ACS na ESF’, que também propõe a utilização de instrumentos de trabalho, como o checklist, ferramenta específica do ACS. Instrumento semelhante foi desenvolvido em São José do Rio Preto, São Paulo, denominado ‘histórico do imóvel’, que permitiu o acompanhamento da situação encontrada no imóvel, mediante avaliação de necessidades de mudanças no comportamento do responsável em relação às considerações realizadas na visita anterior.14
O LIRAa foi pouco utilizado pelos ACS deste estudo, haja vista o baixo retorno de seus resultados para a equipe. A socialização de resultados é importante para a obtenção de apoio nas ações de enfrentamento de endemias no município, e para que se possa contar com a adesão da população e de setores externos à Saúde.13
No escopo de atribuições propostas na Cartilha Instrutiva, cabe ao gerente da unidade fomentar reuniões e incentivar a inserção do ACE nesses espaços de discussão.14 No presente estudo, verificou-se a periodicidade semanal das reuniões da equipe, com predomínio da presença de enfermeiros, ACS e ACEs. Ressalta-se que o Ministério da Saúde recomenda a participação de todos os profissionais integrantes das equipes da ESF.15
A supervisão compartilhada foi pouco relatada no estudo. A supervisão das ações dos ACS relativas à vigilância em saúde, realizada pelos enfermeiros, e dos ACEs relativas ao controle vetorial e zoonoses, realizada pelo supervisor de área, reforçam as ações integradas no rol de atividades da Atenção Primária.9 Outrossim, a supervisão das atividades dos ACEs por profissionais de nível superior da ESF facilita sua integração como membros da equipe.16
A identificação dos fatores que dificultam ou potencializam o processo de integração dos ACEs nas atividades de prevenção e controle da dengue na ESF contribui para a cooperação e coordenação, e subsidia a gestão local na avaliação e análise dos impactos de suas ações.17Em relação aos aspectos positivos, os relatos sobre o trabalho em equipe, compartilhamento de informações, notificação imediata de casos e priorização das ações da ESF sugerem a pertinência da integração dos ACEs junto às equipes da ESF para as ações de controle da dengue. Quanto aos aspectos negativos, o acúmulo de funções dos ACS e a ausência de fluxo intersetorial, de integração efetiva, na visão de alguns ACS, e de autonomia para intervenções legais, esta referida por ACEs e ACS, podem colocar em descrédito o trabalho realizado pelos agentes comunitários junto às famílias sob sua responsabilidade.
Embora não se tenha contemplado a participação de outros profissionais – enfermeiro, supervisor de área, gestor local etc. –, os achados deste estudo podem fundamentar outras pesquisas e, assim, ampliar a discussão sobre o tema da integração entre os agentes de combate às endemias e os agentes comunitários de saúde.