Introdução
No final de 2019, o mundo assistiu ao surgimento de uma nova doença, ocasionada pelo Coronavírus 2 (SARS-CoV-2). Denominada de COVID-19, seus sinais e sintomas incluem febre, dificuldade para respirar e infiltrados pneumônicos, podendo evoluir com resposta inflamatória acentuada, falha cardiopulmonar e multissistêmica.1
Em 11 de março de 2020, a doença foi elevada à condição de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).5No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado em fevereiro e o primeiro óbito em março.6 No Ceará, até 29 de junho, foram 108.136 casos, 6.153 óbitos e letalidade de 5,7%.7
A disseminação da COVID-19 restringiu significativamente os programas de transplante no mundo.8 No Brasil, no primeiro semestre de 2020, houve diminuição dos transplantes de fígado (6,9%), rim (18,4%), coração (27,1%), pulmão (27,1%), pâncreas (29,1%) e principalmente córneas (44,3%), pela suspensão de grande parte dos serviços.9
Considerando-se os reflexos nessa área, objetivou-se descrever as doações e os transplantes de órgãos no Ceará após o decreto da pandemia da COVID-19.
Métodos
Estudo descritivo, com base no número de potenciais doadores falecidos, doadores efetivos e transplantes realizados no estado do Ceará, no período de abril a junho de 2020. Os dados foram obtidos em setembro de 2020, mediante acesso ao Registro Brasileiro de Transplantes,9 disponibilizado pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), que atualiza esses indicadores de forma acumulada a cada trimestre.
O Ceará tem uma população estimada de 9.187.103 habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,682 em 2020.13 Em 2019, o estado registrou 1.454 transplantes, nas modalidades de rim, fígado, pâncreas, coração, pulmão e córneas. Naquele momento, quase três meses antes da pandemia, o Ceará era o estado do Nordeste com maior número de transplantes hepáticos e de córneas.14
As variáveis consideradas nesta análise foram as frequências absolutas de potenciais doadores falecidos e doadores efetivos, e o número de transplantes de fígado, rim, coração e córneas realizados. Foram excluídas as modalidades de pâncreas, pâncreas-rim e pulmão, por não terem sido realizadas em 2020, mesmo antes do decreto da pandemia.
Os dados foram organizados com uso do software Excel, para análise descritiva das frequências. Com o decreto da pandemia em meados do mês de março e a previsão da ABTO de que seus reflexos seriam observados a partir do segundo trimestre,11 os resultados do período de abril a junho de 2020 foram comparados aos do primeiro trimestre do ano, considerando-se a frequência absoluta e relativa de cada variável. Assim, foi possível acompanhar a evolução temporal das doações e transplantes imediatamente antes e após a pandemia. Para se chegar aos dados do período de abril a junho, os números do primeiro trimestre foram subtraídos do total acumulado no primeiro semestre (janeiro a junho).
As frequências absolutas de potenciais doadores falecidos, doadores efetivos e transplantes realizados no segundo trimestre de 2020 também foram comparadas às correspondentes frequências do mesmo período de 2019, tendo sido calculada a variação percentual para cada variável.
Por utilizar informações públicas, sem identificação dos casos, a pesquisa não necessitou ser submetida à análise de um Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
No Ceará, no primeiro semestre de 2020, houve 72 doadores efetivos, 55 notificados no primeiro trimestre (76,4%) e 17 no segundo trimestre (23,6%). Em relação aos transplantes, dos 352 procedimentos do primeiro semestre, 37 (10,5%) foram realizados no período de abril a junho, indicando um declínio nas doações e transplantes imediatamente após o decreto da pandemia. A Figura 1 apresenta o número de potenciais doadores falecidos, doadores efetivos e transplantes realizados.
Ao se analisar cada modalidade individualmente, observou-se que os programas de transplante renal e cardíaco foram praticamente interrompidos, com a realização de apenas um transplante de cada um desses órgãos no segundo trimestre de 2020. Dos 71 transplantes hepáticos do primeiro semestre, 16 (22,5%) foram realizados entre abril e junho. Os transplantes de córneas também se reduziram expressivamente, com 190 (91%) procedimentos no primeiro trimestre e 19 (9%) no trimestre seguinte (Figura 1).
A Tabela 1 apresenta o número de potenciais doadores falecidos, doadores efetivos e transplantes realizados no período de abril a junho de 2020. Em comparação com o mesmo período de 2019, houve uma redução de 38,8% no número de potenciais doadores e de 67,9% no número de doadores efetivos. Foram registrados 37 transplantes, 89,3% menos que no mesmo período de 2019, quando foram realizados 348 procedimentos. Observou-se maior declínio dos transplantes renais, cardíacos e de córneas.
Variáveis | Abril a junho de 2019 | Abril a junho de 2020 | Variação percentual (%) |
---|---|---|---|
Potenciais doadores | 147 | 90 | 38,8 |
Doadores efetivos | 53 | 17 | 67,9 |
Total de transplantesa | 348 | 37 | 89,3 |
Transplantes renais | 61 | 1 | 98,3 |
Transplantes cardíacos | 6 | 1 | 83,3 |
Transplantes hepáticos | 52 | 16 | 69,2 |
Transplantes de córneas | 229 | 19 | 91,7 |
a) Número total de transplantes de rim, coração, fígado e córneas.
Discussão
Os resultados apontam para uma redução importante no número de potenciais doadores falecidos e doadores efetivos imediatamente após a declaração da pandemia da COVID-19. Todas as modalidades de transplante incluídas neste estudo foram afetadas, especialmente os programas de transplante de rim, coração e córneas.
Com os primeiros casos da COVID-19 no estado confirmados em março, o governo instituiu medidas de isolamento social,15 com o objetivo de diminuir o contágio e disponibilizar leitos para pessoas com sintomas graves da doença. Nos primeiros 15 dias, os acidentes de trânsito diminuíram 61%.16Contudo, em abril e maio, observou-se um incremento de quase 500% na ocupação de leitos destinados ao tratamento da COVID-19. Vários hospitais registraram 100% de ocupação dos leitos de UTI.17
A redução das notificações de potenciais doadores pode estar relacionada à diminuição dos acidentes, o que impacta nos casos de morte encefálica. Além disso, a infecção de potenciais doadores pelo SARS-CoV-2 contribuiu para uma redução ainda maior dos doadores efetivos. Potenciais doadores com COVID-19 ativa, teste RT-PCR positivo para o SARS-CoV-2 e síndrome respiratória aguda grave, sem etiologia definida ou com teste laboratorial não definido, recebem contraindicação absoluta à doação.2
O Ceará foi o primeiro estado a implementar a testagem de potenciais doadores. De março a junho de 2020, 23% dos potenciais doadores notificados no estado testaram positivo para o SARS-CoV-2,19o que pode ter contribuído para elevar a taxa de contraindicaçãomédica à doação. Em 2019, essa taxa foi de 17% no estado, saltando para 28% no primeiro semestre de 2020.9
Não existem hospitais exclusivos para a realização de transplantes no estado, de modo que esses procedimentos são realizados em grandes hospitais gerais, que passaram a atender a casos da COVID-19, não sendo possível assegurar áreas totalmente isentas de risco de exposição ao vírus, para os indivíduos transplantados. Assim, os centros transplantadores reservaram os procedimentos para situações graves e urgentes, e adotaram medidas mais conservadoras para a utilização de doadores limítrofes.
Seguindo orientações do Ministério da Saúde, suspendeu-se a busca ativa de doadores em morte circulatória para doação de córneas, sendo mantidas as captações de tecidos oculares de doadores em morte encefálica.2 Os transplantes hepáticos foram continuados, uma vez que para muitas doenças essa é a única e imediata terapêutica. O estado não realiza transplante hepático com doador vivo.
Em relação ao transplante renal, considerou-se a existência de terapias substitutivas, como a diálise. Transplantes renais a partir de doadores vivos foram suspensos, conforme recomendação do Ministério da Saúde, que indicou avaliar a suspensão de transplantes com doadores vivos eletivos durante o período de transmissão comunitária do SARS-CoV-2.2 No primeiro semestre de 2019, foram oito transplantes renais com doadores vivos no estado, e somente um no mesmo período de 2020.9
Estudos indicam que permanecem incertas as considerações acerca do risco de transmissão dessa doença, da resposta imunológica dos receptores e da exposição de doadores vivos saudáveis.3Uma revisão sistemática apontou que a apresentação clínica da COVID-19 em receptores de transplante renal pode ser diferente na população geral, por apresentar uma taxa mais alta de doença grave. Com base em 24 estudos e relatos de 129 transplantados renais infectados pelo SARS-CoV-2, o estudo de revisão mostrou que, em média, 20% dos receptores infectados necessitaram de internação em UTI e 34,1% apresentaram lesão renal aguda; a taxa de mortalidade pela COVID-19 foi de 18,8%, enquanto na população geral, de 3,4%.22 Em relação ao transplante hepático, um estudo multicêntrico prospectivo, realizado com receptores infectados pela COVID-19, identificou uma letalidade de 12%, aumentando para 17% se considerados apenas os receptores hospitalizados.23
Na Espanha, houve uma drástica redução no número de doadores e transplantes, já no primeiro mês da pandemia.4No Ceará, os meses de abril e maio foram os mais críticos, não tendo sido realizados transplantes renais e cardíacos.24 Nesse período, manteve-se a extração dos rins de doadores falecidos com teste RT-PCR não detectável para COVID-19 e sem sinais clínicos da doença, sendo disponibilizados à Central Nacional de Transplantes.
A redução dos doadores e transplantes é multifatorial, relacionando-se com o distanciamento social, a capacidade hospitalar, a realocação de leitos e ventiladores mecânicos, a disponibilidade reduzida da força de trabalho dos profissionais de saúde e as incertezas dos resultados, o que leva os centros de transplante a indicar o procedimento apenas em situações graves.3
No presente estudo, analisou-se um único cenário e apenas o trimestre seguinte ao decreto da pandemia. Não foram realizadas comparações com outros estados brasileiros. Como transplantes de pulmão, pâncreas e pâncreas-rim não foram realizados no Ceará em 2020, mesmo antes do decreto da pandemia, este estudo considerou apenas os transplantes hepáticos, renais, cardíacos e de córneas. Novos estudos são necessários para monitorar o impacto nas doações e transplantes no longo prazo, e em outros cenários.
Concluiu-se que os números de doadores e transplantes do Ceará apresentaram importante declínio nos três meses seguintes ao decreto da pandemia da COVID-19. Esse declínio pode restringir o ingresso em lista de espera e, por conseguinte, aumentar o tempo de espera de receptores já listados, ademais de favorecer complicações. Assim, espera-se que os resultados deste estudo possam subsidiar a implementação de estratégias que contribuam para a retomada segura dos transplantes no estado do Ceará.