Introdução
A cada dia, em todo o mundo, surge mais de 1 milhão de novos casos de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) curáveis entre pessoas de 15 a 49 anos, conforme dados disponibilizados pela Organização Mundial da Saúde em 2019.1 O uso correto e consistente de preservativos é um método eficaz para reduzir a transmissão de ISTs, conquanto a adoção efetiva desse método dependa da disposição, motivação e habilidade própria, e do parceiro ou parceira.2 Em determinados ambientes tradicionais, a exemplo das comunidades quilombolas, o tema pode ser motivo de constrangimento e, muitas vezes, é visto como um tabu.3
Observa-se baixa adesão ao uso consistente do preservativo no ambiente das comunidades quilombolas, em diferentes contextos regionais, incluindo os estados do Pará,3 Maranhão,4 Goiás e Mato Grosso do Sul.5 Entre os motivos para o não uso desse instrumento de prevenção, destaca-se a falta de percepção do risco de contrair ISTs.
Além do conjunto de vulnerabilidades individuais relacionadas aos comportamentos sexuais de risco, os fatores sociais atuam como fortes preditores.6 No que se refere às desigualdades étnicas e raciais no Brasil, a situação dos quilombolas merece atenção especial, haja vista o histórico de vulnerabilidade dessas comunidades.7
Os resultados dos estudos de comportamento sexual e vulnerabilidade para ISTs em afrodescendentes brasileiros devem servir de subsídio ao desenho e implementação de políticas públicas, tanto gerais quanto específicas. Contudo, eles são escassos no que concerne às ISTs em comunidades quilombolas no estado de Sergipe.3-5,8 Nesse sentido, o presente estudo pretende contribuir para a ampliação do conhecimento sobre a situação de vulnerabilidade (individual, social e programática) dessa população, comumente sub-representada em estudos epidemiológicos na área temática da saúde sexual.
Sob essa perspectiva, este trabalho teve como objetivo analisar a frequência do uso de preservativos segundo fatores de vulnerabilidade para infecções sexualmente transmissíveis em comunidades quilombolas de Sergipe, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo do tipo transversal descritivo, realizado em 14 comunidades quilombolas do estado de Sergipe, região Nordeste do Brasil, entre 2016 e 2017.
Segundo a Fundação Cultural Palmares, no Brasil, até setembro de 2017, foram emitidos 2.526 certificados para 3.010 comunidades quilombolas, 35 delas assentadas em Sergipe, distribuídas entre 11 municípios.9
As comunidades quilombolas selecionadas localizam-se nas bacias hidrográficas dos rios Japaratuba, São Francisco, Costeiro do Sapucaia e Sergipe, e nos territórios do Médio Sertão Sergipano, Grande Aracaju, Baixo São Francisco Sergipano e Leste Sergipano.
Foram elegíveis para o estudo adultos com idade de 18 anos ou mais, residentes em comunidades quilombolas do estado. Indivíduos com diagnóstico clínico de comprometimento mental grave, registrado em prontuário da unidade básica de saúde (UBS) vinculada à comunidade, e aqueles que nunca tiveram relações sexuais, foram excluídos.
A amostra do estudo foi estratificada entre as comunidades quilombolas, identificadas a partir dos dados registrados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária de Sergipe: famílias dos territórios adscritos, cadastradas como remanescentes de comunidades quilombolas. Uma vez criado um banco de dados dos territórios e dos indivíduos cadastrados, utilizou-se o procedimento de amostragem aleatória sem substituição.
O desfecho do estudo foi o uso de preservativo (sempre; frequentemente; às vezes; nunca) com as alternativas dicotomizadas (uso inconsistente; uso consistente), sendo considerado ‘uso consistente’ apenas quando indivíduos elegeram a alternativa ‘sempre’. Aos entrevistados também foi questionado o uso do preservativo conforme o tipo de parceria em que estavam envolvidos: parceiros fixos ou parceiros eventuais.
As demais variáveis estudadas incluíram as dimensões da vulnerabilidade propostas por Jonathan Mann et al. e por Ayres (este, no Brasil):10-11
-
Vulnerabilidade social
Sexo (masculino; feminino);
Raça/cor da pele autodeclarada (branco; pardo; preto);
Nível de escolaridade (sem estudo ou com ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo/ensino médio incompleto; ensino médio completo/ensino superior incompleto; ensino superior completo);
Classificação econômica, categorizada segundo o Critério Brasileiro de Classificação Econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) de 2016 (categorias: A; B1; B2; C1; C2; D/E);12
Renda familiar (dicotomizada pela mediana: até R$ 600 reais; mais de R$ 600); e
Situação de trabalho atual (sem trabalho; com trabalho).
-
Vulnerabilidade individual
Idade (anos: 18 a 39; 40 a 59; 60 a 101), cujos pontos de corte foram definidos com base na mediana da distribuição da amostra;
Uso de drogas (usuário ocasional ou de baixo risco; risco ou uso nocivo; alta chance de dependência), baseado na versão brasileira do instrumento Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST);13
Parceiro usuário de drogas (sim; não);
Histórico de ISTs do entrevistado e do parceiro (presença; ausência);
Tipos de relações sexuais (oral [sim; não]; vaginal [sim; não]; anal [sim; não]);
Número de parceiros sexuais nos últimos 12 meses (até cinco; mais de cinco); e
Idade da primeira relação sexual (menos de 15 anos; 15 ou mais anos).
-
Vulnerabilidade programática
Acesso a alguma informação sobre prevenção de ISTs nos últimos 12 meses (sim; não);
Recebimento de insumos - preservativos e gel lubrificante - nos últimos 12 meses (sim; não);
Local onde realiza controle de saúde (UBS; consultório particular; não realiza);
Tratamento após apresentar ISTs (sim; não);
Serviço de saúde onde realizou o tratamento (UBS; farmácia; não tratou);
Presença de programas sociais governamentais de prevenção de IST que incluam pessoas do local (sim; não);
Racismo institucional (discriminação: ausente ou baixa; média; alta), avaliado por uma escala de tipo Likert com cinco pontos, que variam de 1 (nunca) a 5 (sempre), com base no ponto de corte da escala de percepção de discriminação racial em saúde, validada e adaptada à realidade brasileira.14
Os dados foram coletados no período de setembro de 2016 a junho de 2017. A equipe de pesquisadores apresentou o projeto a cada líder quilombola e programou as datas mais adequadas para a realização de um evento e coleta de dados, respeitando a ordem cronológica da solicitação de cada líder e a confirmação da disponibilidade de algum espaço público da comunidade: UBS, escolas, centros comunitários etc.
As entrevistas utilizaram-se de um questionário estruturado por itens relacionados às vulnerabilidades social, individual e programática; elas foram realizadas individualmente, em locais públicos previamente agendados ou na residência do entrevistado quando era impossível a este deslocar-se até o local estabelecido para a pesquisa.
Após a entrevista, os participantes foram convidados a fazer o teste rápido para o HIV e a sífilis. Aqueles que assentiram foram encaminhados para aconselhamento individual (aconselhamento pré-teste) e, posteriormente, em uma sala reservada, submeteram-se a coleta de material sorológico. Os resultados dos testes foram informados em outro aconselhamento individual (aconselhamento pós-teste), complementado pela educação em saúde e recomendações de prevenção pautadas em cada diagnóstico.
A infecção pelo HIV foi identificada pelos testes rápidos BioManguinhos HIV-1&2 e Abon. Aplicou-se o teste Alere na detecção de anticorpos para Treponema pallidum, o que permitiu identificar a ocorrência de sífilis independentemente de ser precoce, diagnosticada até dois anos de vida, ou tardia, quando já se passaram mais de dois anos do contato efetivo com a bactéria. A realização dos testes seguiu as orientações das portarias do Ministério da Saúde nº 34, de 28 de julho de 2005, e nº 3.242, de 30 de dezembro de 2011.
Todos os participantes com resultado positivo foram encaminhados à UBS responsável pela cobertura de seu território, onde apresentaram os formulários apropriados: Ficha de Encaminhamento para HIV e Sífilis; uma via da ficha clínica; e a ficha Fique Sabendo, do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais de Sergipe.
O cálculo do tamanho amostral pautou-se em um poder de 80%, alpha bicaudal de 0,05 e mínima diferença detectável entre grupos de 15%, totalizando um mínimo de 333 indivíduos a serem entrevistados. Foram acrescidos 10% a este valor, para compensar eventuais dados faltantes e perdas.
Antes de sua aplicação pelos pesquisadores, o questionário passou por um processo de validação de conteúdo do qual se encarregaram cinco peritos reconhecidos, dedicados às interdisciplinariedades de Saúde e Ambiente, Saúde Coletiva e Saúde Sexual, além de servir ao treinamento dos entrevistadores, 20 estudantes de graduação e pós-graduação na área da Saúde. Tais estratégias buscaram diminuir o viés de aferição.
A análise estatística foi realizada com uso do software Stata versão 15.0. As variáveis contínuas foram descritas em médias e desvios-padrão (DP); e as variáveis categóricas, em valor absoluto e percentual, acompanhadas de intervalo de confiança a 95% (IC95%), estimado pelo método “exato” binomial. Para comparações da distribuição do uso de preservativo entre as demais variáveis que compuseram a vulnerabilidade para IST, utilizou-se o teste exato de Fisher. O p-valor bicaudal <0,050 foi considerado critério de significância estatística. Utilizou-se a relação sexual com parceiro fixo como referência, por representar a maior parcela da população.
O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Tiradentes (CEP/UNIT) em seu Parecer nº 1.685.357, de 18 de agosto de 2016, e também pela Secretaria de Estado da Saúde de Sergipe e Secretarias Municipais de Saúde cujas comunidades estariam envolvidas no estudo. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A amostra foi composta por 367 indivíduos de 14 comunidades quilombolas de Sergipe, com idades entre 18 e 101 anos (média de 44,81 - DP=17,46). Entre os 333 indivíduos (90,7%) que mantinham relações sexuais com parceiro fixo, 9,9% utilizavam preservativo de forma consistente nessa forma exclusiva de relação. No que diz respeito aos 191 (52,1%) que mantinham relações com parceiro eventual, 15,7% utilizavam preservativo de forma consistente. Dentro desse mesmo quadro, 42,7% mantinham relações sexuais tanto com parceiro fixo quanto com parceiros eventuais, sendo que entre esses indivíduos com as duas formas de parceria, 90,6% realizavam sexo desprotegido com ambos os tipos de parceiro - fixo e eventual.
O perfil dos participantes, de acordo com a vulnerabilidade social, é descrito na Tabela 1. Houve predominância de negros - pardos e pretos (93,2%) -, classe econômica D/E (75,4%), sexo feminino (73,0%), indivíduos sem estudo ou com ensino fundamental incompleto (72,8%), com renda familiar até R$ 600 (66,5%) - equivalente a aproximados US$190 por na ocasião da entrevista - e sem trabalho (59,7%).
Variável | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 268 | 73,0 |
Feminino | 99 | 27,0 |
Raça/cor da pele autodeclarada | ||
Negra (pardos e pretos) | 342 | 93,2 |
Branca | 25 | 6,8 |
Escolaridade | ||
Sem estudo ou com ensino fundamental incompleto | 214 | 72,8 |
Ensino fundamental completo, ou ensino médio/ensino superior completos ou incompletos | 53 | 27,2 |
Renda familiar | ||
Até R$ 600 | 244 | 66,5 |
Mais de R$ 600 | 123 | 33,5 |
Classificação econômicaa | ||
Classe B1 a C2 | 90 | 24,6 |
Classe D/E | 277 | 75,4 |
Situação de trabalho atual | ||
Sem trabalho | 219 | 59,7 |
Com trabalho | 148 | 40,3 |
Consumo de álcool | ||
Não consome | 143 | 38,9 |
Uso ocasional ou de baixo risco | 161 | 43,9 |
Uso de risco ou uso nocivo/alta chance de dependência | 63 | 17,2 |
a) Critério Brasileiro de Classificação Econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) de 2016 (categorias: A; B1; B2; C1; C2; D/E).
O consumo de álcool foi relatado por 61,1% da população e, segundo a classificação do ASSIST, 17,2% dos entrevistados apresentavam risco ou uso nocivo ou alta chance de dependência (Tabela 1). O uso de outras drogas psicoativas na vida - e.g., maconha, cocaína, hipnóticos e inalantes - foi mencionado por cerca de 10% da população.
A prevalência de sífilis encontrada foi de 3,3%, não houve resultado positivo nos testes para HIV e 6,8% relataram antecedentes de ISTs. Quanto aos fatores de vulnerabilidade individual por comportamento sexual, 28,9% iniciaram a atividade sexual com menos de 15 anos de idade e 3,3% referiram ter mais de cinco parceiros (Tabela 2).
Fatores de vulnerabilidade individual | n | % |
---|---|---|
Faixa etária (anos) | ||
18-39 | 148 | 40,3 |
40-59 | 139 | 37,9 |
60-101 | 80 | 21,8 |
Histórico de IST (entrevistado) | ||
Sim | 25 | 6,8 |
Não | 342 | 93,2 |
Histórico de IST (parceiro) | ||
Sim | 4 | 1,1 |
Não | 363 | 98,9 |
Parceiro usuário de drogas | ||
Sim | 20 | 5,4 |
Não | 347 | 94,6 |
Idade da primeira relação sexual | ||
15 ou mais anos de idade | 261 | 71,1 |
Menos de 15 anos de idade | 106 | 28,9 |
Número de parceiros sexuais nos últimos 12 meses | ||
Até 5 | 64 | 96,7 |
Mais de 5 | 256 | 3,3 |
Tipo de relação sexual | ||
Vaginal | ||
Sim | 346 | 94,3 |
Não | 21 | 5,7 |
Anal | ||
Sim | 28 | 7,6 |
Não | 339 | 92,4 |
Oral | ||
Sim | 12 | 3,3 |
Não | 355 | 96,7 |
Com relação à vulnerabilidade programática para IST, os seguintes participantes haviam-se submetido a testes de detecção de HIV e sífilis alguma vez na vida: 41,1% haviam realizado o teste para o HIV, e 35,4%, o teste para sífilis. A falta de acesso a algum tipo de informação de prevenção para IST foi relatado por 41,1% dos entrevistados, e 82,8% não receberam insumos nos últimos 12 meses. No que diz respeito aos programas sociais governamentais de prevenção de ISTs que incluíssem pessoas do local, 79,6% referiram não contar com esse recurso na comunidade e 83,9% utilizavam a UBS para controle de saúde. A maioria - 95,4% - referiu baixa ou nenhuma percepção de haver sofrido atos de racismo nos serviços de saúde (Tabela 3).
Fatores de vulnerabilidade programática | n | % |
---|---|---|
Teste de HIV realizado alguma vez na vida | ||
Sim | 151 | 41,1 |
Não | 216 | 58,9 |
Teste de sífilis realizado alguma vez na vida | ||
Sim | 130 | 35,4 |
Não | 237 | 64,6 |
Acesso a alguma informação sobre prevenção de IST nos últimos 12 meses | ||
Sim | 216 | 58,9 |
Não | 151 | 41,1 |
Recebimento de insumos - preservativos e gel lubrificante - nos últimos 12 meses | ||
Não | 304 | 82,8 |
Sim | 63 | 17,2 |
Local onde realiza controle de saúde | ||
Unidade básica de saúde | 308 | 83,9 |
Consultório particular | 39 | 10,6 |
Não realiza | 20 | 5,5 |
Tratamento após apresentar IST | ||
Serviço de saúde | 16 | 66,7 |
Farmácia | 3 | 12,5 |
Não tratou | 5 | 20,8 |
Programas sociais e governamentais de prevenção de IST que incluam pessoas do local | ||
Não | 292 | 79,6 |
Sim | 75 | 20,4 |
Percepção de discriminação racial nos serviços de saúde | ||
Ausente ou baixa | 110 | 95,4 |
Média | 16 | 4,3 |
Alta | 1 | 0,3 |
Observaram-se maiores proporções de uso inconsistente do preservativo com parceiro fixo em indivíduos que relataram falta de acesso à informação (p=0,001), como também entre indivíduos com parceiro eventual (p<0,001) (Tabela 4). Verificou-se, ademais, uso consistente do preservativo com parceiro fixo em indivíduos do sexo feminino (78,8% - IC95% 61,3;89,6) e sem trabalho (69,7% - IC95% 51,9;83,0), embora as diferenças não fossem significativas.
Fatores de vulnerabilidade | Resultado para o uso | Total n (%) | p-valorb | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Uso inconsistente | Uso consistente | |||||
n (%) | IC95%a | n (%) | IC95%a | |||
Sexo | 0,077 | |||||
Feminino | 215 (71,7) | 66,2;76,5 | 26 (78,8) | 61,3;89,6 | 241 (72,4) | |
Masculino | 85 (28,3) | 23,4;33,7 | 7 (21,2) | 10,3;38,6 | 92 (27,6) | |
Sabe ler e escrever | 0,383 | |||||
Sim | 175 (58,3) | 52,6;63,8 | 24 (72,7) | 54,9;85,3 | 199 (59,8) | |
Não | 125 (41,7) | 36,1;47,3 | 9 (27,3) | 14,6;45,0 | 134 (40,2) | |
Sem trabalho | 0,059 | |||||
Sim | 175 (58,3) | 52,6;63,8 | 23 (69,7) | 51,9;83,0 | 198 (59,5) | |
Não | 125 (41,7) | 36,1;47,3 | 10 (30,3) | 16,9;48,0 | 135 (40,5) | |
Consumo de álcool | 0,791 | |||||
Não consome | 115 (38,3) | 32,9;43,9 | 9 (27,3) | 14,6;45,0 | 124 (37,2) | |
Usuário ocasional ou de baixo risco | 131 (43,7) | 38,1;49,3 | 19 (57,6) | 40,1;73,2 | 150 (45,1) | |
Usuário de risco/uso nocivo | 45 (15,0) | 11,3;19,5 | 5 (15,1) | 6,3;3,2 | 50 (15,0) | |
Usuário de alto risco | 9 (3,0) | 1,5;5,6 | - | - | 9 (2,7) | |
Faixa etária (anos) | 0,825 | |||||
18-39 | 118 (39,3) | 33,9;45,0 | 18 (54,5) | 37,3;70,6 | 136 (40,8) | |
40-59 | 116 (38,7) | 33,2;44,3 | 13 (39,4) | 24,1;56,9 | 129 (38,8) | |
60-101 | 66 (22,0) | 17,6;27,0 | 2 (6,1) | 1,47;21,6 | 68 (20,4) | |
Antecedentes de IST | 0,396 | |||||
Sim | 23 (7,7) | 5,1;11,2 | - | - | 23 (6,9) | |
Não | 277 (92,3) | 88,7;94,8 | 33 (100,0) | - | 310 (93,1) | |
Preservativo com parceiro eventual | <0,001 | |||||
Uso inconsistente | 154 (90,6) | 85,2;94,2 | 3 (20,0) | 6,3;48,3 | 157 (84,9) | |
Uso consistente | 16 (9,4) | 5,8;14,8 | 12 (80,0) | 51,7;93,7 | 28 (15,1) | |
Recebimento de insumos | 0,185 | |||||
Sim | 47 (51,4) | 11,9;20,2 | 10 (5,6) | 16,9;48,0 | 57 (17,1) | |
Não | 253 (84,3) | 79,7;88,0 | 23 (69,7) | 51,9;83,0 | 276 (82,9) | |
Acesso à informação em saúde sexual | 0,001 | |||||
Sim | 177 (59,0) | 49,2;68,1 | 29 (87,9) | 80,0;92,9 | 206 (61.9) | |
Não | 123 (41,0) | 31,8;50,8 | 4 (12,1) | 7,1;19,9 | 127 (38,1) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%; b) Teste exato de Fisher.
Discussão
O uso inconsistente do preservativo foi referido por aproximadamente um em cada dez moradores das comunidades quilombolas de Sergipe. Pouco mais da metade dos respondentes também possuía parceiro eventual e praticava sexo sem preservativo em ambas as situações. Houve maior proporção de uso consistente do preservativo com parceiro fixo entre indivíduos que também o utilizavam de forma consistente com parceiro eventual, e igualmente, como esperado, entre aqueles que tiveram acesso à informação preventiva. Baixo nível de escolaridade e más condições socioeconômicas foram os principais fatores de sua vulnerabilidade social e, cumpre lembrar e destacar, trata-se da mesma realidade presente em muitas comunidades do país, o que enseja uma reflexão mais profunda sobre questões de acesso à saúde com equidade.
Os resultados apresentados devem ser interpretados considerando-se algumas limitações. Uma delas é a carência de estudos nacionais sobre o tema, principalmente das populações quilombolas. A mesma escassez desses estudos também implicou a necessidade de, na discussão dos resultados da pesquisa, incluir estudos de diferentes abordagens metodológicas. O delineamento transversal descritivo, por sua vez, impossibilita o estabelecimento de uma temporalidade para as análises. Vale ressaltar que os indivíduos foram questionados sobre práticas anteriores ao momento da entrevista, sendo possível que suas respostas sofressem a influência do viés de memória. Adicionalmente, existe a possibilidade de algumas respostas corresponderem ao padrão “socialmente aceitável”.
Era de se esperar a proporção significativa do uso consistente do preservativo com parceiro eventual e com parceiro fixo. Teoricamente, usuários consistentes de preservativo com parceiro fixo apresentariam menos risco de contrair IST,6 porque não deixariam de se prevenir da mesma forma com o parceiro eventual. Quanto ao uso inconsistente com parceiro fixo e parceiro eventual, outros estudos, publicados entre 2009 e 2017, tendo como objeto comunidades quilombolas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, já haviam mencionado essa característica, inclusive nas situações de múltiplos parceiros.3-5
A informação insuficiente pode ser um fator agravante do risco de infecção, ao promover desconhecimento sobre o método preventivo e, consequentemente, disseminação das mais variadas crendices relacionadas ao preservativo.15-16 Essa situação é ainda mais grave no contexto de comunidades quilombolas, muitas vezes afastadas das unidades de saúde, em sua maioria de nível socioeconômico desfavorável, menos dotadas de recursos para sua educação, saúde e transporte.
O perfil sociodemográfico dos participantes foi similar ao encontrado em outras pesquisas realizadas em comunidades quilombolas: população predominantemente negra, sem estudo ou com ensino fundamental incompleto, e sem trabalho. Observa-se a predominância de famílias em condições econômicas menos favoráveis, situação reportada em relatos de pesquisa publicados entre os anos de 2009 e 2020, sobre populações quilombolas dos estados da Bahia,17-19 Pará,3 Maranhão,4 Goiás e Mato Grosso do Sul.5
Estudos norte-americanos, realizados na década de 199020 e no decorrer dos últimos dez anos,6 concluíram que pessoas com um nível socioeconômico alto tendem a apresentar um risco muito menor de adquirir uma IST. O nível educacional tem papel fundamental na capacidade adquirida de compreender as informações fornecidas, contempladas nos programas de prevenção, e responder a elas. De acordo com os referidos estudos, populações com, no mínimo, ensino fundamental completo estão menos suscetíveis a contrair IST. Estes achados corroboram a situação de vulnerabilidade às IST identificada por estes autores nas comunidades quilombolas de Sergipe.
A maior proporção de mulheres a utilizar o preservativo com parceiro fixo pode ser reflexo de sua insegurança quanto à fidelidade dele, prevenção de gravidez ou maior preocupação com a saúde. Sabe-se que, para muitos casais, o sexo desprotegido pode ser interpretado como um sinal de intimidade e confiança, resultando em uma barreira psicológica, não só para o uso do preservativo, senão, também, para a comunicação sobre sexo seguro em geral.2 Contudo, as autoras de um estudo datado de 2016, realizado com mulheres quilombolas do estado do Amazonas, observaram baixo uso do preservativo entre a população sexualmente ativa, independentemente do seu estado civil. Mesmo assim, a maioria das mulheres entrevistadas reconheceu no preservativo um instrumento seguro de prevenção de IST.3
A porcentagem de participantes com relato de consumo alcoólico de alto risco foi superior à encontrada por um estudo realizado em 2011, em comunidades quilombolas da Bahia (11%),17 conquanto se deva levar em consideração que o estudo não utilizou o ASSIST como base, e sim uma classificação por número de doses consumidas semanalmente. O consumo excessivo de bebidas alcoólicas está associado a um aumento da probabilidade de diagnóstico de alguma IST. Alguns pesquisadores têm associado o consumo do álcool a múltiplas parcerias sexuais e, como consequência, ao uso inconsistente do preservativo, conferindo maior risco de transmissão do HIV.21,22
Embora a prevalência de sífilis tenha sido menor do que 10%, ela foi três vezes maior que a encontrada por um estudo de base populacional realizado em parturientes no Brasil,23 como proxy para a população geral (0,89%). Vale ressaltar que a sífilis é considerada um marcador de sexo desprotegido, e pode potencializar a infecção pelo HIV.24,25
Os fatores relacionados à dificuldade no acesso a testes para HIV e sífilis, insumos, informações e atividades de prevenção e assistência à saúde fizeram parte da dimensão da vulnerabilidade programática das comunidades quilombolas. A esses achados acrescentam-se os de um estudo de 2010, realizado em comunidades quilombolas de todo o território nacional, no qual se mostraram as mesmas dificuldades de acesso aos serviços de prevenção às IST.8 Trata-se de condições importantes para o sucesso das ações de prevenção. Portanto, espera-se que o contato com informações sobre redução do risco de IST, a disponibilidade de insumos e de testes diagnósticos tornará os indivíduos mais preparados para práticas sexuais mais seguras.26,27
Paralelamente à realização dos testes para HIV e sífilis, o uso dos serviços públicos de saúde pode diminuir a vulnerabilidade programática. As ações dos programas sociais também são de extrema importância: de acordo com uma pesquisa realizada no ano de 2017, em Coimbra, Portugal, após a intervenção de um programa educacional para redução dos comportamentos sexuais de risco, os indivíduos alcançados tiveram maior probabilidade de usar preservativo na última relação sexual com parceiro estável (razão de chances de 4,61 - IC95% 1,31;16,20) e de realizar o teste para o HIV (razão de chances de 7,59 - IC95% 3,33;17,35).28
A maioria dos entrevistados realizavam o controle de saúde nas UBS. Outro estudo, focado nas comunidades quilombolas do sudoeste da Bahia, em 2013, mostrou dificuldade de acesso e subutilização dos serviços públicos de saúde, aos quais apenas 57,1% de seus moradores recorriam.18 Embora, no plano formal, as comunidades tenham acesso à Estratégia Saúde da Família (ESF), ela não se tem efetivado no cotidiano quilombola, devido às barreiras de acesso.8,19 Observou-se, nas comunidades quilombolas de Sergipe, que o acesso às UBS é difícil, devido à distância e falta de profissionais. Ademais, para algumas dessas comunidades, o serviço era apenas volante.
A maioria dos indivíduos teve percepção de discriminação racial ausente ou baixa, na Saúde, o que, teoricamente, diminuiria a possibilidade de afastamento do serviço de saúde por sofrer discriminação. No entanto, é importante notar que alguns indivíduos relataram percepção média e alta de racismo institucional na saúde. Destaca-se que a consolidação da ideia do racismo estrutural na formação da desigualdade social brasileira se deu, e se dá, de forma não linear, sob fortes contestações, inflexões e vários entraves no caminho.29 Inclusive, não se descarta a hipótese de compreensão distorcida dos conceitos acerca de racismo, preconceito e discriminação racial entre a população geral. Além disso, a própria dificuldade de acesso pode representar mais uma barreira para o indivíduo responder a esse quesito.
Os resultados apresentados delineiam um perfil de vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas para prevenção de IST nas comunidades quilombolas de Sergipe. A frequência de uso do preservativo com parceiro fixo foi diretamente proporcional a seu uso com parceiro eventual e ao acesso à informação para prevenção. Os resultados reforçam a necessidade de se fortalecerem estratégias que viabilizem a consolidação de práticas de educação sexual, mediante políticas individuais e coletivas mais eficazes, expandindo os serviços prestados pela Saúde às comunidades quilombolas de Sergipe.