Introdução
Os triatomíneos, conhecidos popularmente como barbeiros, são insetos hematófagos vetores do protozoário Trypanosoma cruzi, agente etiológico da doença de Chagas, uma enfermidade que pode ser crônica e potencialmente letal. Atualmente, a subfamília Triatominae está distribuída em cinco tribos, 18 gêneros, 151 espécies recentes e três fósseis; em sua maioria na região neotropical, também podem ser encontradas de forma não endêmica nos Estados Unidos, sudeste da Ásia, centro-sul da África e norte da Austrália.1-3 Esses vetores estão amplamente distribuídos pelo território nacional: há registros de 64 espécies no Brasil e 14 no estado de Pernambuco.3-5
No Brasil, as espécies que representam maior risco para transmissão vetorial são Triatoma sordida, Panstrongylus megistus, Triatoma brasiliensis e Triatoma pseudomaculata, todas encontradas em Pernambuco. Outro triatomíneo que tem sido encontrado com frequência em pesquisas de campo é o Panstrongylus lutzi, espécie considerada silvestre e provável candidata a ocupar nichos vagos, deixados pelas espécies eliminadas com medidas de controle vetorial. Vale salientar que P. lutzi apresenta taxa de infecção natural superior à das demais espécies encontradas no estado.1,2
Vários fatores contribuem para um resultado confiável em um exame laboratorial, desde a competência técnica até a infraestrutura e gestão do serviço. Um laboratório deve dispor de ferramentas adequadas à análise de não conformidades e implementação de ações corretivas e preventivas.6 Uma dessas ferramentas é a avaliação externa da qualidade, que possibilita o rastreamento de oportunidades de melhoria em um laboratório ou rede de diagnósticos laboratoriais, o que é de grande importância quando se consideram doenças de interesse para a saúde pública.7 A participação em programas de avaliação externa da qualidade é um dos requisitos das normas para funcionamento de um laboratório de saúde contemplados pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Essas normas contribuem para o desenvolvimento de sistemas de gestão da qualidade laboratorial, para confirmação ou reconhecimento de sua competência.8
O monitoramento epidemiológico da doença de Chagas está pautado na vigilância entomológica e controle de vetores, alguns reconhecidos pelo maior risco de transmissão vetorial que podem apresentar. Ademais, não há vacina ou medicamentos efeivos para esta doença.9
Considerando-se a importância da correta identificação taxonômica dos triatomíneos, e a premência de colocar em prática um programa de controle da qualidade analítica para essa triagem, o Laboratório de Endemias do Laboratório Central de Saúde Pública da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco organizou a primeira avaliação externa da qualidade de triatomíneos, com o objetivo de analisar a qualidade da identificação entomológica de vetores da doença de Chagas na rede de laboratórios do estado de Pernambuco.
Métodos
Trata-se de estudo transversal com o propósito de avaliar os laboratórios que realizam identificação de triatomíneos no estado de Pernambuco, em 2017. Os insetos recebidos nos laboratórios para identificação das espécies são de capturas realizadas por agentes de saúde que atuam exclusivamente nos domicílios (intradomicílio e peridomicílio, com seus anexos), ou entregues pela população nos postos de informação de triatomíneos. A pesquisa foi realizada pelo Laboratório Central de Saúde Pública de Pernambuco (LACEN/PE), com base em diretrizes estabelecidas nas normas específicas da ABNT para gestão da qualidade de laboratórios.8
O estudo consistiu em uma avaliação externa da qualidade, mediante adesão voluntária dos participantes que responderam a carta-convite enviada pelo provedor, o LACEN/PE, uma vez garantida imparcialidade, independência e confidencialidade na identificação dos participantes. Após o aceite, os insetos foram enviados aos laboratórios participantes, acompanhados das instruções necessárias à avaliação.
O painel da avaliação constituiu-se de espécimes de triatomíneos criados em insetário, cedidos pelo Laboratório Nacional e Internacional de Referência em Taxonomia de Triatomíneos do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ. Na composição do painel, foram utilizadas as seguintes espécies de triatomíneos: Panstrongylus megistus, Rhodnius neglectus, Rhodnius nasutus, Triatoma infestans, Triatoma pseudomaculata, Triatoma sordida e Triatoma tibiamaculata.
As sete espécies foram selecionadas conforme os seguintes critérios: quatro espécies de importância epidemiológica e três primariamente silvestres, com maior ou menor potencial de invadir o peri e intradomicilio, todas presentes no estado de Pernambuco.10 Guardado o devido cuidado com as similaridades morfológicas, imprescindíveis à identificação de cada espécime, eles foram fixados com alfinete entomológico em folhas de isopor, posteriormente acondicionadas em caixas de madeira. Cada caixa, contendo todos os espécimes, foi envolta em plástico de tipo bolha e embalada com papel comum, para envio aos participantes.
Para análise foram utilizados microscópio estereoscópico ou lupa manual. Os participantes foram orientados a utilizar as chaves dicotômicas como principal ferramenta de identificação. O prazo definitivo para envio dos resultados ao LACEN/PE foi 30 dias, contados a partir do recebimento do painel pelo laboratório.
Foram convidados a participar do estudo laboratórios localizados em Pernambuco. O estado situa-se na região centro-leste do Nordeste brasileiro, soma uma população estimada em 9.616.621 habitantes para 2020 e, de acordo com o Censo de 2010, 1.744.238 pernambucanos viviam no meio rural, mais expostos ao contato com os vetores.11-13 A gestão da Saúde estadual divide-se em 12 gerências regionais de saúde. Geograficamente, Pernambuco está classificado em mesorregiões definidas por diferenças geomorfológicas: região metropolitana de Recife, costeira, caracterizada pela presença de vestígios de Mata Atlântica; Mata, região composta por vestígios de Mata Atlântica e plantações de cana-de-açúcar; Agreste, área de transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga; e São Francisco e Sertão, correspondentes às regiões semiáridas da Caatinga.14,15 Pela própria condição de classificação, cada uma dessas regiões geográficas apresenta diferentes espécies de triatomíneos.
Pernambuco possui 13 laboratórios que realizam triagem de triatomíneos, em sua maioria estaduais, subordinados às 12 gerências regionais de saúde (laboratórios regionais); apenas dois laboratórios estão subordinados a municípios, Caruaru e Garanhuns (Figura 1). LACEN/PE é o laboratório de referência no estado de Pernambuco, responsável pelo monitoramento do controle da qualidade dos laboratórios que realizam diagnósticos de interesse para a vigilância em saúde. O LACEN/PE é responsável pela coordenação técnica dos demais laboratórios de entomologia do estado, cujas atividades têm por objetivo principal identificar vetores e agentes etiológicos de doenças, incluindo os triatomíneos. A identificação dos triatomíneos das regiões de saúde I e XII de Pernambuco é realizada no LACEN/PE, não se justificando, portanto, sua participação na avaliação em tela.
As variáveis consideradas para análise foram:
- Situação do espécime no recebimento (estrutura completa ou danificada - caso danificada, foi solicitado seu registro);
- Identificação do equipamento utilizado (lupa manual; microscópio estereoscópico);
- Sexo do espécime identificado (macho; fêmea);
- Identificação taxonômica do espécime até nível de espécie.
Para coleta dos dados, aplicou-se um formulário padronizado, preenchido pelo técnico do laboratório participante.
Os resultados da identificação de espécie e sexo, fornecidos pelos laboratórios, foram comparados com o gabarito do provedor e pontuados como corretos ou incorretos. A ausência de resposta foi considerada como incorreta, para fins de cálculos da proporção de acertos.
No sentido de controlar vieses, cada participante recebeu uma amostra de cada espécie, sem que se revelasse, previamente, a composição taxonômica do painel. As amostras foram identificadas, por sorteio, utilizando-se sistema numérico, e sua identidade era de conhecimento exclusivo do provedor. Cada laboratório recebeu um formulário padronizado para registro dos resultados, em formato semelhante ao de registro das análises de rotina utilizado pelos participantes, além de material de apoio para análise dos espécimes: atlas iconográfico, com as chaves dicotômicas; e conjunto de cartões ilustrados, com todas as espécies registradas no Brasil.
A análise descritiva dos dados obtidos utilizou-se da plataforma Microsoft Excel 2016.
Resultados
A avaliação externa da qualidade contou com a participação de nove dos 12 laboratórios convidados, oito regionais (II, III, IV, V, VIII, IX, X e XI gerências regionais de saúde) e um municipal (Caruaru), abrangendo 17 profissionais técnicos.
Oito laboratórios dispunham de microscópio estereoscópico; o laboratório A realizou a análise com lupa manual. Dos nove laboratórios participantes, apenas um relatou ter recebido o painel aberto; os restantes confirmaram condições adequadas para análise, embora algumas amostras apresentassem danos. Do total de espécimes enviados, foram observados danos nas seguintes estruturas: patas, antenas, tarsos, tíbia e pronoto. Somente dois laboratórios (A e I) relataram todos os espécimes com estrutura completa (Tabela 1). Apenas duas das amostras com identificação incorreta para as espécies R. nasutus e R. neglectus apresentaram danos; entretanto, as estruturas danificadas (antenas e tíbia) não impossibilitariam a identificação da espécie. Para as demais amostras com registro de danos, a identificação da espécie foi correta.
A proporção de acertos total dos laboratórios para identificação do sexo foi maior (56/63) do que para a identificação das espécies (45/63).
A Figura 2 apresenta a proporção de respostas corretas para identificação das espécies e sexo de triatomíneos. Somente o laboratório D apresentou 7/7 de acertos, tanto para espécies quanto para sexo. Os laboratórios A, B, C e G, embora tenham obtido 7/7 de acerto para identificação de sexo, apresentaram proporção inferior para identificação de espécie: respectivamente, 2/7, 4/7, 6/7 e 4/7. Vale ressaltar que o laboratório A respondeu a apenas 3 das 7 amostras, no que se refere à identificação da espécie.
As respostas dos laboratórios com a identificação, pelo participante, das espécies de triatomíneos estão sintetizadas na Figura 3. O espécime pertencente à espécie R. neglectus foi erroneamente identificado como T. pictipes pelo laboratório B, R.brethesi pelos laboratórios C e G, e ainda como R. domesticus pelo laboratório I.
Com relação ao número de respostas corretas para identificação das espécies de triatomíneos (Figura 4), a única espécie com 9/9 de acerto foi a P. megistus. As espécies do gênero Triatoma foram identificadas corretamente pelo maior número de participantes: 8/9 de acertos para T. infestans e T. tibiamaculata; e 7/9 de acertos para T. pseudomaculata e T. sordida.
Laboratório | Estrutura completa | Estrutura danificada | Descrição da estrutura danificada | Sem resposta |
---|---|---|---|---|
A | 7 | - | - | - |
B | 5 | 1 | Patas | 1 |
C | 4 | 3 | Antenas, tarsos, patas | - |
D | 6 | - | - | 1 |
E | 3 | 3 | Antenas | 1 |
F | 2 | 5 | Antenas, tíbia, tarsos | - |
G | 5 | 2 | Antenas | - |
H | 5 | 1 | Antena e pronoto | 1 |
I | 7 | - | - | - |
Legenda: (+) Resposta correta; (-) Resposta incorreta, com indicação da resposta dada; -Sem resposta.
Discussão
A avaliação externa da qualidade da identificação entomológica de triatomíneos realizada na rede de laboratórios públicos de Pernambuco mostrou boa adesão e, assim, possibilitou a identificação das diferenças interlaboratoriais. Programas de avaliação externa da qualidade permitem que resultados de um laboratório sejam comparados aos de outros laboratórios de diagnóstico participantes, por um terceiro laboratório independente.16 Os resultados do presente estudo apontam para a existência de profissionais com diferentes níveis de conhecimento sobre a utilização correta das chaves dicotômicas e as espécies de triatomíneos que ocorrem no estado de Pernambuco. Profissionais com maiores dificuldades de desempenho podem, durante sua análise, negligenciar o registro de ocorrência de novas espécies no estado.17,18 Medidas corretivas devem ser implementadas para alcançarem melhores resultados.
Todos os laboratórios que realizam a identificação entomológica em Pernambuco são de caráter público. Em geral, um dos grandes problemas enfrentados por eles encontra-se na rotatividade de funcionários, decorrente de contratos de trabalho temporários e aposentadoria dos servidores, sem substituição imediata, além da falta de manutenção dos equipamentos. A identificação taxonômica é um desafio eminentemente técnico e, como tal, requer o desenvolvimento de competência profissional. Resultados incorretos na identificação das espécies apresentam forte tendência a estarem associados à dimensão do profissional, sendo a falta de continuidade de treinamento e capacitação um fator determinante para essa limitação.19,20
A indisponibilidade de equipamentos adequados à atividade laboratorial constitui mais uma barreira para a qualidade diagnóstica, refletida nos resultados obtidos pelo laboratório A: seu maior número de erros de identificação e único a não dispor de microscópio estereoscópico para análise dos insetos.20
As semelhanças morfológicas entre as espécies do gênero Rhodnius são consideráveis. Em muitos casos, faz-se necessário utilizar técnicas moleculares para diferenciar as espécies consideradas crípticas (isomorfas). É o caso de R. prolixus e R. robustus, as espécies do gênero utilizadas na avaliação, consideradas de fácil diferenciação. Não obstante, os espécimes do gênero apresentaram o menor número de identificações corretas. O estudo registrou, inclusive, erro de nomenclatura na identificação do gênero em T. pictipes, cabendo salientar que tal resposta é impossível de se obter com o uso das chaves dicotômicas.21,22
Além das semelhanças morfológicas, há outras possíveis causas de erro na identificação: falta de atenção na conferência dos resultados; material de apoio insuficiente ou desatualizado; conhecimento insuficiente sobre a nomenclatura da morfologia externa dos insetos; e dificuldades de ajustes no equipamento. As identificações corretas observadas em insetos com danos em sua estrutura morfológica devem ser interpretadas como resultado positivo - e bastante relevante -, haja vista os profissionais desses laboratórios, em sua rotina de trabalho, receberem um grande número de triatomíneos danificados, capturados pela população e entregues nos postos de informação de triatomíneos.
Os métodos empregados nesta pesquisa mostraram-se úteis para avaliar a qualidade da identificação de triatomíneos, podendo ser utilizada na rede de laboratórios de outros estados e mais além, na implementação de um programa nacional com esse objetivo. De modo geral, os laboratórios participantes apresentaram bom desempenho; porém, os resultados do estudo indicaram fragilidades, recomendando-se a implementação de ações corretivas para o aprimoramento do serviço prestado. As ações recomendadas abrangem o provedor, LACEN/PE, como responsável pelo monitoramento da rede pública, e os participantes, enquanto executores das análises.
Consideram-se ações de responsabilidade do pro-vedor a manutenção do programa de avaliação externa da qualidade e a capacitação permanente de todos os laboratórios de entomologia de Pernambuco, visando manter seus técnicos atualizados e estimulados a utilizar a chave dicotômica, para uma correta identificação específica. Entre as ações de responsabilidade dos participantes, indicam-se a aquisição e manutenção periódica de microscópio estereoscópio e a participação efetiva e contínua no programa de avaliação externa da qualidade e nos treinamentos e cursos de capacitação promovidos pelo LACEN/PE. Finalmente, deve-se dedicar atenção especial à identificação das espécies do gênero Rhodnius e ao estudo da morfologia externa dos insetos.