SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número3Cobertura vacinal em crianças de até 2 anos de idade beneficiárias do Programa Bolsa Família, BrasilViolência recorrente contra crianças: análise dos casos notificados entre 2011 e 2018 no Estado do Espírito Santo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.30 no.3 Brasília set. 2021  Epub 09-Jul-2021

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742021000300004 

Artigo Original

Hospitalização e morte por COVID-19 e sua relação com determinantes sociais da saúde e morbidades no Espírito Santo: um estudo transversal

Hospitalización y muerte por COVID-19 y su relación con los determinantes sociales de la salud y las morbilidades en Espírito Santo, Brasil: un estudio transversal

Keila Cristina Mascarello (orcid: 0000-0003-4567-487X)1  , Anne Caroline Barbosa Cerqueira Vieira (orcid: 0000-0003-2464-6423)1  , Ana Sara Semeão de Souza (orcid: 0000-0002-4554-1551)2  , Wena Dantas Marcarini (orcid: 0000-0003-1625-2176)3  , Valério Garrone Barauna (orcid: 0000-0003-2832-0922)4  , Ethel Leonor Noia Maciel (orcid: 0000-0003-4826-3355)5 

1 Universidade Federal do Espírito Santo, Centro Universitário Norte do Espírito Santo, São Mateus, ES, Brasil

2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

3 Faculdade Vale do Cricaré, Departamento de Saúde, São Mateus, ES, Brasil

4 Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências da Saúde, Vitória, ES, Brasil

5 Universidade Federal do Espírito Santo, Laboratório de Epidemiologia, Vitória, ES, Brasil

Resumo

Objetivo

Analisar a associação entre determinantes sociais e morbidades para os desfechos de internação, internação em unidade de terapia intensiva e óbito por COVID-19 no Espírito Santo, Brasil.

Métodos

Estudo transversal, com dados secundários de casos confirmados de COVID-19 notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Utilizou-se regressão de Poisson para estimar as razões de prevalências.

Resultados

Foram estudados 104.384 casos, notificados entre 28 de fevereiro e 1º de setembro de 2020. Os desfechos em estudo foram mais frequentes entre indivíduos do sexo masculino, idosos, de raça/cor da pele amarela ou preta, sem escolaridade, com multimorbidade. Todas as morbidades associaram-se a maior risco de desfechos desfavoráveis. Observou-se maior risco de óbito entre pessoas com idade superior a 60 anos (RP=56,31 - IC95% 34,24;92,61), multimorbidades (RP=3,63 - IC95% 3,16;4,17), doença renal (RP=3,42 - IC95% 2,81;4,15) e neoplasias (RP=3,15 - IC95% 2,41;4,13).

Conclusão

Evidencia-se o efeito dos determinantes sociais e morbidades em internação e óbitos por COVID-19.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus; Hospitalização; Mortalidade; Determinantes Sociais da Saúde; Estudos Transversais

Resumen

Objetivo

Analizar la asociación entre determinantes sociales y morbilidad para los resultados de hospitalización, ingreso en unidad de cuidados intensivos y muerte por COVID-19 en el Estado de Espírito Santo, Brasil.

Métodos

Estudio transversal con datos secundarios de casos confirmados de COVID-19, reportados en el Sistema de Información de Enfermedades Notificables. Se utilizó la regresión de Poisson para estimar las razones de prevalencia.

Resultados

Se estudiaron 104.384 casos notificados entre el 28 de Febrero y el 1 de Septiembre de 2020. Los desenlaces en estudio fueron más frecuentes entre hombres, ancianos, amarillos, seguidos de negros, no educados y con multimorbilidad. Hubo un mayor riesgo de muerte entre las personas mayores de 60 años (RP=56,31 - IC95% 34,24;92,61), multimorbilidades (RP=3,63 - IC95% 3,16;4,17), enfermedad renal (RP=3,42 - IC95% 2,81;4,15) y neoplasias (RP=3,15 - IC95% 2,41;4,13).

Conclusión

El efecto de los determinantes sociales y las morbilidades sobre la hospitalización y las muertes por COVID-19 es evidente.

Palabras clave: Infecciones por Coronavirus; Hospitalización; Mortalidad; Determinantes Sociales de la Salud; Estudios Transversales

Introdução

O ano de 2020 foi marcado pela propagação mundial do SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, declarada doença pandêmica pela Organização Mundial da Saúde (OMS).1 A velocidade com que ocorre a transmissão do vírus tem-se evidenciado no crescimento e magnitude de casos registrados no mundo. Segundo dados da OMS, até 19 de novembro de 2020, cerca de 55 milhões de pessoas haviam se infectado e mais de 1,3 milhão morrera em decorrência da COVID-19. No Brasil, no mesmo período, foram mais de 5,9 milhões de infectados e 168 mil mortes,2 e no estado do Espírito Santo especialmente, 175.300 casos confirmados e 4.082 mortes. A letalidade capixaba foi estimada em 2,4%.3

Embora inicialmente o vírus cause doença respiratória leve, essa infeção pode conduzir a síndrome respiratória grave. Estas formas severas da COVID-19 apresentam maior probabilidade de se desenvolver em pessoas idosas e portadores de doenças crônicas prévias.4 Estudo realizado no Brasil, sobre comorbidades acima dos 50 anos de idade, encontrou uma prevalência de 67,8% de indivíduos com duas doenças ou mais, e 47,1% com três ou mais: 26 milhões e 18 milhões de brasileiros, respectivamente.5 São pessoas que estariam sob maior risco de desfechos graves caso se infectassem pelo SARS-CoV-2.

Grande parte das doenças decorre das situações em que se nasce, vive, estuda, trabalha, e até se diverte. Este conjunto de condições, identificado como ‘determinantes sociais da saúde’ e principais responsáveis por gerar diferenças sistemáticas segundo diversos grupos populacionais, encontram-se na essência das desigualdades de saúde.6 No contexto de profundos problemas sociais do país, é difícil discutir questões sanitárias sem considerar as desigualdades presentes, e seus reflexos são evidentes nas condições de vida e moradia.

Diante da pandemia do novo coronavírus, tem-se observado importante relação entre multimorbidade, COVID-19 e determinantes sociais, sendo os indivíduos com piores condições socioeconômicas os mais afetados.7 A prevalência e a gravidade da COVID-19 estão intimamente ligadas a outras morbidades incidentes, principalmente entre os mais pobres, de menor escolaridade e menos acesso aos serviços de saúde.

A compreensão de como determinantes sociais da saúde podem influenciar negativamente os desfechos da COVID-19, somada ao conhecimento da forma de exposição a esses determinantes, permite que as políticas de Saúde Pública considerem os riscos acrescidos pelas comorbidades, de forma a que, entre suas ações coordenadas, atendam também, e especialmente, aqueles sob maior risco, menor visibilidade e proteção.

Objetivou-se com o presente estudo analisar a associação entre determinantes sociais e morbidades, e os desfechos ‘internação’, ‘internação em unidade de terapia intensiva (UTI)’ e ‘óbito’ por COVID-19 no estado do Espírito Santo, região Sudeste do Brasil.

Métodos

Trata-se de um estudo analítico de dados secundários, transversal, realizado com informações de casos confirmados de COVID-19 no Espírito Santo, disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

O Espírito Santo é o menor estado da região Sudeste, conta uma população estimada de 4.018.650 habitantes8 e sua economia, majoritariamente, está baseada no setor de serviços. A estrutura etária da população do estado passa por intensa transformação: 13,55% têm mais de 60 anos e a expectativa de vida é de 78,8 anos, de acordo com projeções para 2020.9 A rede assistencial regional passou por intensas adaptações para atender às demandas relacionadas à COVID-19. Em novembro de 2020, sua capacidade instalada era de 1.532 leitos: 715 de UTI e 817 de enfermaria.10

Analisou-se a totalidade dos casos confirmados de COVID-19 no Espírito Santo, mediante testes laboratoriais ou critérios diagnósticos clínico-epidemiológicos. Desde o primeiro caso, notificado em 28 de fevereiro de 2020, até o último registro no dia 1º de setembro de 2020, todos foram acompanhados por 15 dias, para avaliação dos desfechos nesse período. O banco de dados utilizado, tornado disponível pela Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo, proveio do sistema on-line de notificação compulsória de casos. Durante o processo de notificação, coletam-se informações sociodemográficas, sintomas do indivíduo, morbidades preexistentes e dados de acompanhamento de cada caso.

Os desfechos do estudo foram ‘internação’, ‘internação em UTI’ e ‘óbito’ por COVID-19 (sim; não). As variáveis independentes foram:

  1. Sexo (feminino; masculino);

  2. Raça/cor da pele (branca; preta; parda [mistura de duas ou mais raças/cores da pele]; amarela [pessoas de origem asiática]; indígena);

  3. Idade (anos completos: 18-29; 30-39; 40-49; 50-59; 60 ou mais);

  4. Escolaridade (sem instrução; ensino fundamental completo; ensino médio completo; ensino superior completo e mais);

  5. Presença de morbidades (nenhuma; uma; multimorbidade [≥2 morbidades]).

Por se tratar de um estudo com dados secundários, avaliou-se a completude dos dados das variáveis independentes. As seguintes morbidades foram selecionadas:

  1. Doenças pulmonares preexistentes;

  2. Doença cardiovascular;

  3. Doença renal crônica;

  4. Doença hepática crônica;

  5. Diabetes mellitus;

  6. Infecção pelo HIV;

  7. Obesidade;

  8. Tuberculose;

  9. Doença neurológica crônica;

  10. Neoplasias.

Entretanto, de maneira isolada, foram avaliadas as doenças pulmonares preexistentes, neoplasias, doença cardiovascular, doença neurológica, doença renal, diabetes mellitus, tabagismo, obesidade e infecção pelo HIV. Morbidades como tuberculose, doença hepática e outras imunodeficiências (exceto infecção pelo HIV) não puderam ser avaliadas separadamente, dado o pequeno número de casos notificados. Todas as condições foram estimadas pelo relato do indivíduo notificado, relato de familiar ou identificação pelo profissional responsável do atendimento, como no caso - por exemplo - da obesidade.

Os dados foram organizados sobre plataforma Microsoft Excel® e posteriormente analisados com uso do programa estatístico Stata 13.0. Por se tratar de um estudo com dados secundários, realizou-se avaliação da completude (percentual de preenchimento) das variáveis independentes observadas. A análise transcorreu em múltiplas etapas, adotando-se nível de significância de 5%. Primeiramente, foi verificada a frequência das variáveis independentes (sexo; raça/cor da pele; idade; escolaridade; presença de morbidades) e sua associação com os desfechos em estudo, por meio do teste qui-quadrado de Pearson. Na segunda etapa, verificou-se a possível associação entre as exposições (variáveis independentes) e os desfechos (internação; internação em UTI; óbito), por meio da regressão de Poisson, com variância robusta, cálculo da razão de prevalências bruta e respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%).

Finalmente, foi realizada a análise multivariável, na qual se considerou, enquanto potenciais fatores de confusão, as variáveis que apresentaram p-valor<0,2 na análise bruta, logo incluídas no modelo, de uma única vez, adotando-se p-valor<0,05 para o resultado final. Na avaliação da qualidade dos ajustes de cada modelo, utilizou-se do teste de Hosmer e Lemeshow após cada regressão de Poisson, naquelas situações em que, para todos os modelos apresentados, a estatística do teste fosse não significativa, quando p>0,05 e, portanto, o ajuste considerado adequado. Para avaliar a possibilidade de efeito dose-resposta entre as variáveis de exposição categóricas ordinais e a probabilidade dos desfechos em estudo, foi utilizado o teste qui-quadrado de tendência linear, com nível de significância de 5%.

Para todas as associações entre exposições e desfechos, foi realizado o cálculo de poder da amostra com uso do programa estatístico OpenEpi versão 3.01, utilizando-se, como parâmetros, um intervalo de confiança de 95% (IC95%) e razão de prevalências mínima de 1,2. A associação que apresentou menor poder foi ‘infecção pelo HIV e risco de óbito por COVID-19’, igual a 78,61%.

O projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES), sendo aprovado sob Parecer nº 4.036.052, emitido em 19 de maio de 2020.

Resultados

Foram investigados 104.384 casos de COVID-19 confirmados no estado do Espírito Santo. Em relação à completude, as variáveis ‘sexo’ e ‘idade’ foram as mais bem preenchidas, com 99,98% e 100,00% de informação respectivamente, seguidas por ‘presença de morbidade’ (98,80%), ‘raça/cor da pele’ (81,33%) e, com pior preenchimento, ‘escolaridade’ (68,15%).

A maior parte dos participantes era do sexo feminino (53,09%), raça/cor da pele branca (42,25%) e parda (41,23%), idade entre 30 e 49 anos (48,33%) e ensino médio completo (44,46%); 18,17% tinham uma morbidade preexistente, e 8,47%, multimorbidades (Tabela 1).

Tabela 1 Frequências das características sociodemográficas e morbidades dos indivíduos, geral e estratificadas por desfechos negativos de saúde, Espírito Santo, 2020 

Variável de exposição n % Internação n (%)a UTIc n (%)a Óbito n (%)a
Sim Sim Sim
p<0,001b p<0,001b p<0,001b
Sexo (104.359)
Feminino 55.401 53,09 2.794 (7,10) 1.292 (4,14) 1.363 (2,63)
Masculino 48.958 46,91 3.476 (9,93) 1.653 (5,87) 1.764 (3,85)
Raça/cor da pele (81.338)
Branca 34.366 42,25 1.972 (7,59) 909 (4,53) 1.106 (3,44)
Preta 6.253 7,69 468 (9,79) 231 (5,91) 251 (4,27)
Amarela 7.018 8,63 553 (10,32) 310 (7,31) 324 (4,88)
Parda 33.536 41,23 2.127 (8,58) 995 (4,99) 1.094 (3,55)
Indígena 165 0,20 7 (5,56) 2 (1,85) 3 (2,00)
Idade (anos) (104.384)
18-29 19.603 18,78 222 (1,60) 55 (0,94) 27 (0,37)
30-39 27.566 26,41 527 (2,75) 143 (1,55) 71 (0,60)
40-49 22.885 21,92 842 (5,14) 250 (3,07) 144 (1,45)
50-69 16.514 15,82 1.086 (9,22) 380 (6,42) 267 (3,67)
≥60 17.816 17,07 3.595 (27,35) 1.309 (18,37) 1.575 (19,17)
Escolaridade (68.152)
Sem instrução 13.127 19,26 1.395 (13,39) 650 (7,75) 893 (7,34)
Ensino fundamental 9.642 14,15 562 (7,51) 244 (4,17) 308 (3,44)
Ensino médio 30.298 44,46 910 (3,88) 353 (1,93) 300 (1,06)
Ensino superior 15.085 22,13 394 (3,33) 142 (1,59) 82 (0,58)
Morbidade (103.136)
Nenhuma 75.661 73,36 2.155 (4,17) 858 (2,12) 790 (1,12)
Uma morbidade 18.741 18,17 1.978 (12,99) 926 (7,47) 988 (5,65)
Multimorbidade 8.734 8,47 2.053 (28,32) 1.121 (18,18) 1.295 (15,79)

a) Foram incluídos sujeitos com campo preenchido em ambas as variáveis; b) Teste qui-quadrado de Pearson; c) UTI: unidade de terapia intensiva

Internações por COVID-19 foram mais frequentes entre os indivíduos do sexo masculino (9,93%) e os de raça/cor da pele amarela (10,32%). A prevalência de internações aumentou com a idade, variando de 1,60% nos indivíduos com 18 a 29 anos a 27,35% entre os de 60 anos ou mais (Tabela 1). Relação inversa pode ser observada nas categorias de escolaridade, com prevalências mais altas de internação entre pessoas que referiram níveis mais baixos de educação escolar. A prevalência de internações entre indivíduos com uma única morbidade foi de 12,99%; e de 28,32% para aqueles com multimorbidade, enquanto para pessoas sem morbidades a prevalência de internações foi de 4,17% (Tabela 1).

As internações em UTI seguiram o mesmo padrão de ocorrência das internações para as variáveis de exposição, sendo mais frequentes entre os indivíduos do sexo masculino (5,87%), raça/cor amarela (7,31%), 60 anos ou mais de idade (18,37%), sem instrução (7,75%) e com multimorbidade (18,18%) (Tabela 1).

Em relação aos óbitos por COVID-19, entre os casos notificados, foram mais frequentes o sexo masculino (3,85%), comparado ao feminino (2,63%); nas pessoas de raça/cor da pele amarela, a prevalência de óbito foi de 4,88%, e entre brancos, de 3,44% (Tabela 1). A maior proporção de óbitos por categorias de idade ocorreu em pessoas de 60 anos ou mais (19,17%), e em relação à escolaridade, a maior proporção de óbitos correspondeu àqueles sem instrução (7,34%). A proporção de óbitos em indivíduos com multimorbidade foi de 15,79%, de 5,65% naqueles com apenas uma morbidade e de 1,12% nos casos sem qualquer morbidade (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta as razões de prevalências brutas e ajustadas para os três desfechos, segundo características sociodemográficas e morbidades. Ser do sexo feminino esteve negativamente associado aos três desfechos (internações, internações em UTI e óbito). Após ajuste, ser do sexo feminino reduziu em 33% (RP=0,67 - IC95% 0,62;0,71) a probabilidade de ser internada por COVID-19, frente ao sexo masculino; a redução na probabilidade de uma pessoa do sexo feminino ser internada em UTI por conta da COVID-19 foi de 38% (RP=0,62 - IC95% 0,56;0,69), e na probabilidade de vir a óbito, de 37% (RP=0,63 - IC95% 0,57;0,70), em comparação aos indivíduos do sexo masculino (Tabela 2).

Tabela 2 Razões de prevalências (RP) bruta e ajustada e respectivos intervalos de confiança (IC95%) para internações, internações em unidade de terapia intensiva (UTI) e óbito por COVID-19, segundo morbidade e características sociodemográficas, Espírito Santo, 2020 

Variável Análise bruta Análise ajustada
Internação RP (IC95%) Internação em UTI RP (IC95%) Óbito RP (IC95%) Internação RP (IC95%) Internação em UTI RP (IC95%) Óbito RP (IC95%)
Morbidadea
Nenhuma 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Uma morbidade 3,11 (2,93;3,29) 3,53 (3,22;3,86) 5,06 (4,62;5,55) 1,49 (1,36;1,64) 1,65 (1,42;1,92) 1,78 (1,54;2,05)
Multimorbidade 6,78 (6,42;7,16) 8,59 (7,89;9,35) 14,15 (12,99;15,41) 2,66 (2,43;2,93) 3,09 (2,65 - 3,60) 3,63 (3,16;4,17)
Qui-quadrado de tendência <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001
Sexob
Masculino 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Feminino 0,71 (0,68;0,75) 0,70 (0,65;0,75) 0,68 (0,63;0,73) 0,67 (0,62;0,71) 0,62 (0,56;0,69) 0,63 (0,57;0,70)
Raça/cor da pelec
Branca 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Preta 1,28 (1,17;1,41) 1,35 (1,13;1,50) 1,24 (1,08;1,42) 1,28 (1,13;1,44) 1,34 (1,11;1,62) 1,22 (1,03;1,45)
Amarela 1,35 (1,24;1,48) 1,61 (1,42;1,82) 1,42 (1,25;1,60) 1,35 (1,19;1,52) 1,81 (1,52;2,16) 1,27 (1,08;1,50)
Parda 1,12 (1,06;1,19) 1,10 (1,01;1,20) 1,03 (0,95;1,12) 1,17 (1,08;1,26) 1,21 (1,07;1,37) 1,11 (0,99;1,23)
Indígena 0,73 (0,35;1,50) 0,40 (0,10;1,61) 0,58 (0,18;1,78) 0,52 (0,17;1,59) 0,76 (0,19;2,95) 0,80 (0,20;3,12)
Escolaridaded
Ensino superior 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Ensino médio 1,16 (1,03;1,30) 1,21 (1,00;1,47) 1,84 (1,44;2,34) 1,19 (1,06;1,35) 1,28 (1,04;1,59) 1,71 (1,33;2,20)
Ensino fundamental 2,25 (1,99;2,55) 2,63 (2,14;3,22) 5,95 (4,67;7,59) 1,51 (1,31;1,73) 1,74 (1,38;2,18) 2,76 (2,14;3,56)
Sem instrução 4,02 (3,60;4,48) 4,88 (4,08;5,84) 12,72 (10,16;15,93) 1,78 (1,58;2,02) 2,08 (1,69;2,56) 3,35 (2,63;4,26
Qui-quadrado de tendência <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001
Idade (anos)e
18-29 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
30-39 1,71 (1,47;2,00) 1,65 (1,27;2,13) 1,98 (1,32;2,97) 1,64 (1,34;2,02) 1,72 (1,20;2,46) 2,07 (1,16;3,67)
40-49 3,31 (2,77;3,72) 3,16 (2,48;4,02) 5,78 (3,99;8,38) 2,89 (2,38;3,51) 2,69 (1,91;3,78) 5,39 (3,18;9,11)
50-59 5,76 (5,00;6,64) 6,99 (5,54;8,80) 14,60 (10,19;20,92) 4,38 (3,61;5,30) 4,23 (3,88;7,49) 11,39 (6,83;18,99)
≥60 17,10 (14,96;19,54) 21,33 (17,12;26,57) 83,49 (58,94;118,26) 11,39 (9,49;13,68) 10,70 (10,34;19,48) 56,31 (34,24;92,61)
Qui-quadrado de tendência <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001

a) Análise ajustada para sexo, raça/cor da pele, escolaridade e idade; b) Análise ajustada para morbidade, raça/cor da pele, escolaridade e idade; c) Análise ajustada para morbidade, sexo, escolaridade e idade; d) Análise ajustada para morbidade, sexo, raça/cor da pele e idade; e) Análise ajustada para morbidade, sexo, raça/cor da pele e escolaridade.

Indivíduos de raça/cor da pele amarela apresentaram uma probabilidade 35% maior (IC95% 1,19;1,52) de serem internados, e um aumento de 81% (IC95% 1,52;2,16) na probabilidade de serem internados em UTI, em relação a brancos. Ser de raça/cor da pele amarela ainda esteve associado a um aumento de 27% (IC95% 1,08;1,50) na probabilidade de vir a óbito por COVID-19, na comparação com indivíduos brancos. Indivíduos de raça/cor da pele preta, por sua vez, apresentaram uma probabilidade 28% maior (IC95% 1,13;1,44) de serem internados, e um aumento de 34% (IC95% 1,11;1,62) na probabilidade de serem internados em UTI, frente aos de raça/cor da pele branca; em relação aos óbitos por COVID-19, a probabilidade de indivíduos de raça/cor amarela foi 22% maior (IC95% 1,03;1,45), comparativamente aos brancos (Tabela 2).

Os três desfechos estudados apresentaram uma relação inversa com as categorias de escolaridade. Níveis mais baixos de instrução referiram maiores probabilidades de um desfecho negativo relacionado à COVID-19. Indivíduos sem instrução apresentaram um aumento de 78% e 108% na probabilidade de serem internados e serem internados em UTI, respectivamente, comparados aos indivíduos com nível superior completo (Tabela 2). Quanto aos óbitos, não ter instrução esteve associado a um aumento de 3,35 vezes (IC95% 2,63;4,26) na probabilidade de vir a óbito por COVID-19, relativamente àqueles com nível superior (Tabela 2).

A probabilidade de um desfecho negativo aumentou com o avançar da idade: a de ser internado foi 11,39 vezes maior entre indivíduos com 60 anos ou mais, em relação àqueles com 18 a 29 anos, enquanto ter 60 anos ou mais esteve associado a um aumento de 10,70 vezes na probabilidade de ser internado em UTI, na comparação com o estrato mais jovem (Tabela 2). Quando avaliado o óbito, a razão de prevalências foi de 56,31 (IC95% 34,24;92,61) para os mais velhos, com 60 anos ou mais, comparados aos mais novos, de 18 a 29 anos (Tabela 2).

Apresentar uma única morbidade aumentou em 49% (IC95% 1,36;1,64) a probabilidade de ser internado; e ter multimorbidade associou-se a um aumento de 2,66 vezes (IC95% 2,43;2,93) no mesmo desfecho, tendo como referência indivíduos sem nenhuma morbidade. Para internações em UTI, esse aumento foi de 65% (IC95% 1,42;1,92) entre aqueles com uma morbidade e 3,09 vezes maior (IC95% 2,65;3,60) em indivíduos com multimorbidade. Ter uma morbidade aumentou 78% (IC95% 1,54;2,05) a probabilidade de vir a óbito por COVID-19; ter multimorbidade aumentou essa probabilidade 3,63 vezes (IC95% 3,16;4,17), em comparação a não ter nenhuma morbidade (Tabela 2).

As análises de tendência sugeriram um efeito linear entre as variáveis ‘idade’, ‘escolaridade’ e ‘morbidade’, e os desfechos estudados. Para a variável ‘idade’, a prevalência de internações, internações em UTI e óbitos aumentou significativamente, com o passar dos anos de vida (p<0,001); o mesmo ocorreu para a variável ‘morbidade’, cujas prevalências dos desfechos aumentaram à medida que aumentava o número de morbidades (p<0,001); já para a variável ‘escolaridade’, a probabilidade dos desfechos revelou-se inversamente proporcional, sendo maior a prevalência de internação, internação em UTI e óbito por COVID-19 à medida que diminuía o nível de estudo escolar (p<0,001).

Tabela 3 Razão de prevalências (RP) bruta e ajustada e respectivos intervalos de confiança (IC95%) para internações, internações em unidade de terapia intensiva (UTI) e óbito por COVID-19, segundo morbidade, Espírito Santo, 2020 

Morbidade n (%) Análise bruta Análise ajustadaa
Internação RP (IC95%) Internação em UTI RP (IC95%) Óbito RP (IC95%) Internação RP (IC95%) Internação em UTI RP (IC95%) Óbito RP (IC95%)
Doença pulmonar
Não 100.093 (96,87) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 3.235 (3,13) 2,28 (2,10;2,48) 2,47 (2,19;2,79) 3,13 (2,79;3,52) 1,86 (1,65;2,09) 2,02 (1,68;2,43) 2,01 (1,70;2,36)
Neoplasias
Não 102.966 (99,65) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 363 (0,35) 5,29 (4,85;5,78) 3,49 (2,93;4,17) 8,89 (7,88;10,04) 2,76 (2,23;3,41) 1,72 (1,10;2,68) 3,15 (2,41;4,13)
Doença cardiovascular
Não 83.249 (80,55) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 20.100 (19,45) 3,56 (3,40;3,73) 4,37 (4,07;4,69) 5,92 (5,52;6,35) 1,16 (1,07;1,26) 1,34 (1,18;1,52) 1,36 (1,21;1,52)
Doença renal
Não 102.555 (99,23) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 793 (0,77) 5,85 (5,38;6,36) 6,45 (5,67;7,34) 9,46 (8,38;10,67) 2,81 (2,41;3,27) 2,90 (2,28;3,69) 3,42 (2,81;4,15)
Diabetes mellitus
Não 95.523 (92,44) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 7.810 (7,56) 3,82 (3,63;4,02) 4,65 (4,33;5,00) 6,02 (5,61;6,47) 1,73 (1,60;1,88) 2,04 (1,81;2,30) 2,07 (1,86;2,30)
Tabagismo
Não 101.424 (98,16) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 1.905 (1,84) 2,68 (2,44;2,96) 3,13 (2,74;3,58) 3,40 (2,95;3,91) 1,72 (1,50;1,97) 1,94 (1,59;2,38) 1,72 (1,42;2,08)
Obesidade
Não 99.268 (96,18) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 3940 (3,82) 2,00 (1,85;2,18) 1,96 (1,73;2,22) 2,48 (2,20;2,79) 1,81 (1,62;2,02) 1,72 (1,44;2,06) 2,03 (1,74; 2,36)
Infecção pelo HIV
Não 103.126 (99,80) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 209 (0,20) 3,39 (2,66;4,32) 3,44 (2,39;4,97) 2,93 (1,88;4,56) 3,18 (2,28;4,43) 3,34 (1,98;5,62) 2,40 (1,26;4,57)
Doenças neurológicas
Não 102.495 (99,19) 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Sim 839 (0,81) 4,44 (4,01;4,92) 4,15 (3,52;4,89) 7,50 (6,57;8,57) 1,96 (1,64;2,34) 1,41 (1.02;1,96) 2,38 (1,92;2,94)

a) Ajustada para sexo, raça/cor da pele, idade e escolaridade

A Tabela 3 apresenta os riscos de desfechos desfavoráveis de acordo com as morbidades notificadas, após análise ajustada para potenciais fatores de confusão. Todas as morbidades foram significativamente associadas a maiores riscos de internação, internação em UTI e óbito, sendo a infecção pelo HIV (RP=2,40 - IC95% 1,26;4,57), neoplasias (RP=3,15 - IC95% 2,41;4,13) e doença renal (RP=3,42 - IC95% 2,81;4,15) as que levaram a maior risco de óbito por COVID-19.

Discussão

Os resultados do estudo revelaram que idade avançada (60 anos ou mais), sexo masculino, baixa escolaridade, raça/cor da pele amarela e preta, presença de morbidade e multimorbidade foram condições associadas a um maior risco de internações, internações em UTI e mortalidade por COVID-19, enquanto ser do sexo feminino apontou um efeito protetor. Duas revisões sistemáticas recentes encontraram no sexo masculino, idade avançada e comorbidades, fortes evidências de associação com a gravidade e pior prognóstico para COVID-19.4,11

Assim como em outros estudos, a chance de desfechos negativos relacionados a COVID-19, com risco de óbito, foi maior para o sexo masculino.12,13 Na Itália, riscos menores de mortalidade também foram relatados em indivíduos do sexo feminino.14 Até o momento, acredita-se que as diferenças nos níveis e tipos de hormônios sexuais circulantes, entre indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino, podem influenciar a suscetibilidade à infecção por SARS-CoV-2. Estudo anterior mostrou que os hormônios sexuais modulam as respostas da imunidade adaptativa e inata.13

Menor letalidade e outros desfechos negativos podem estar associados a maior percepção dos sintomas da doença e rápida procura por serviços de saúde, tratando-se do sexo feminino. Indivíduos do sexo masculino tendem a buscar os serviços de saúde apenas nas fases mais graves da doença, quando geralmente são menores os recursos terapêuticos.12,15

Embora a COVID-19 tenha sido considerada, inicialmente, uma grande equalizadora, necessitando de medidas de distanciamento físico em todo o mundo, está cada vez mais demonstrado que as desigualdades sociais na saúde impactam a morbidade e mortalidade pela doença.16 Nos Estados Unidos, a taxa de infecção por SARS-CoV-2 é três vezes maior em condados predominantemente negros, relativamente a condados predominantemente brancos; e a taxa de mortalidade, seis vezes maior.17 Maiores riscos de internação, internação em UTI e óbito foram identificados em pessoas pretas, pardas e amarelas. Essa diferença não foi encontrada em pessoas indígenas, provavelmente pelo pequeno número de pessoas classificadas nesse grupo.

No Reino Unido, um estudo demonstrou que, no controle por idade, negros tiveram 4,3 vezes mais probabilidade de morrer por COVID-19 do que brancos. Estes dados também revelam que, na comparação com brancos, os bangladeshis, paquistaneses, indianos e pessoas de etnias mistas estão sob maior risco de morrer por COVID-19.18

Acredita-se que os determinantes sociais subjacentes às condições de saúde que afetam essas populações tornam-nas mais vulneráveis ao vírus. Esses determinantes incluem - mas não se limitam a - menor acesso à saúde, insegurança econômica, vizinhança e condições de moradia precárias, além da menor disponibilidade de recursos.19

Raça e etnia, por sua vez, estão inextricavelmente ligadas à posição socioeconômica. Pessoas autodeclaradas não brancas são desproporcionalmente representadas nos segmentos sociais de renda mais baixa ou menos educação.20 Menor renda e menor nível educacional resultam em condições de habitação mais precárias, menos facilidade para adquirir alimentos saudáveis, empregos com salários mais baixos e pior acesso a cuidados de saúde, entre outras situações que afetam a transmissão de COVID-19 e suas complicações.

O presente estudo encontrou prevalências mais altas de desfechos negativos entre indivíduos de raça/cor da pele preta/amarela/parda/indígena e nas categorias mais baixas de escolaridade. Isto reforça, fortemente, o argumento de que os determinantes da saúde devem estar no centro das políticas de abordagem da COVID-19. Medidas de distanciamento físico, necessárias para prevenir a disseminação da COVID-19, são substancialmente mais difíceis para aqueles cujos determinantes sociais são mais adversos.16 Outrossim, muitos que não podem trabalhar em casa, frequentemente, dependem do transporte público para comparecer ao trabalho, aumentando ainda mais o risco de transmissão do SARS-CoV-2.20 Estudo de Baqui et al.,7 também realizado no Brasil, demonstrou que o fator ‘etnicidade’ (por exemplo, ser de raça/cor da pele preta ou parda) é o segundo fator de risco mais importante para o desfecho de mortalidade, atrás apenas do fator ‘idade’, reforçando a relevância dos determinantes sociais.

Este estudo constatou probabilidades mais altas de desfechos negativos de saúde com o avançar da idade. Tais achados estão parcialmente de acordo com a revisão anterior.21 Uma metanálise recente confirmou que idade avançada (65 anos) foi associada à morte em indivíduos com COVID-19.13,22 No Brasil, estima-se que pelo menos 34 milhões de indivíduos com 50 anos ou mais apresentem alguma morbidade associada ao risco de desenvolvimento de formas clinicamente graves da COVID-19.23

Uma metanálise11 apontou que a presença de comorbidades leva a um maior risco de desenvolver eventos graves quando se está infectado pelo SARS-CoV-2, ou seja, admissão na UTI, intubação e mortalidade. Outra metanálise,24 sobre o impacto das doenças cardiovasculares na COVID-19, encontrou que a hipertensão e as doenças cerebrocardiovasculares tiveram um impacto estatisticamente significativo na admissão em UTI.

Um estudo realizado na China constatou que indivíduos com pelo menos uma comorbidade eram mais velhos (idade média de 60,8 anos versus 44,8 anos), e ter pelo menos uma comorbidade foi comumente mais observada em casos graves, comparados aos não graves (32,8% versus 10,3%). Além disso, indivíduos com multimorbidades tiveram riscos significativamente mais altos de alcançar um desfecho negativo (admissão em UTI, ventilação invasiva ou morte), na comparação com aqueles que tinham uma única comorbidade; e risco ainda maior, frente àqueles sem comorbidades.25

Conforme apresentado neste estudo, pessoas portadoras de doenças crônicas estão sob maior risco de desfechos desfavoráveis por COVID-19, mesmo após controle para potenciais fatores de confusão como idade, sexo e escolaridade. As evidências, até então, apontam para um risco significativamente maior de complicações e morte por COVID-19 em pessoas com certas morbidades. Estudo de casos registrados na China mostrou que a letalidade geral da doença foi de 2,3%, mais elevada entre os grupos de pessoas com morbidades preexistentes: 10,5% para doença cardiovascular, 7,3% para diabetes mellitus, 6,3% para doença respiratória crônica, 6,0% para hipertensão e 5,6% para neoplasias.26

A obesidade não foi estudada como um potencial fator de complicações de COVID-19 nos primeiros estudos realizados, sendo a hipótese considerada mais tardiamente.26,27 Na China, entre 383 indivíduos analisados, o sobrepeso foi associado a um risco 86% maior e a obesidade a um risco 142% maior de desenvolver pneumonia grave, na comparação com indivíduos eutróficos, mesmo após controle para potenciais fatores de confusão.28 Estudo com 4.103 indivíduos norte-americanos mostrou que ter IMC>40kg/m2 foi o segundo preditor independente mais forte de hospitalização, depois da velhice.29 Ter IMC>35kg/m2 também foi associado a maiores chances de ventilação mecânica invasiva, independentemente de outras comorbidades.30

Desde que munida de evidências, uma investigação cuidadosa sobre o histórico médico durante a triagem de indivíduos com COVID-19 deve ser priorizada, contribuindo para a identificação daqueles com maior probabilidade de desenvolver resultados adversos graves de COVID-19. Maior atenção deve ser dada aos indivíduos com COVID-19 que apresentavam comorbidades, quando confirmado o diagnóstico. Identificar essas pessoas pode ajudar na estratificação pelo nível de maior risco, permitindo uma abordagem direcionada e específica para a prevenção de eventos fatais.11 Os achados deste estudo evidenciam o quão frágil ainda é nosso Sistema Único de Saúde (SUS) na abordagem adequada às desigualdades sociais em saúde. A despeito dos avanços nos últimos anos, as persistentes desigualdades sociais e geográficas no acesso e utilização dos serviços do SUS tendem a impactar os desfechos de saúde nas populações mais vulneráveis, principalmente em situações de pandemia.

O estudo em tela pauta-se em um grande volume de observações; porém, apresenta limitações, muitas delas inerentes a pesquisas com dados secundários, como a possibilidade de erros de preenchimento e informações faltantes. A subnotificação de comorbidades, possivelmente atribuível à falta de conhecimento ou indisponibilidade de testes diagnósticos, pode favorecer uma superestimativa da força da associação com desfechos negativos, uma vez que, em indivíduos graves, essas informações costumam ser mais bem preenchidas. Outra limitação da pesquisa remete ao não relacionamento de seus dados com os do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e, portanto, cabe considerar a possibilidade de subnotificação. Por fim, o estudo teve como data-limite para coleta do desfecho o período de 15 dias após a data de notificação, sendo que muitos desfechos, especialmente o óbito, podem ocorrer com um intervalo de tempo maior. Contudo, trata-se de um viés não diferencial, pois não existe base teórica ou evidências de que esse tempo, entre a notificação e o desfecho, seja diferente entre os diferentes grupos populacionais.

Os determinantes sociais da saúde devem ser incluídos entre as prioridades de pesquisa da pandemia e, em um sentido mais amplo, contemplados na definição dos objetivos da Saúde Pública e na implementação de políticas para o setor. Compreender como os determinantes sociais da saúde contribuem para a incidência, prevalência, tratamento e mortalidade associados à COVID-19 pode ajudar no desenvolvimento de intervenções mais eficazes, no sentido de mitigar a transmissão da doença.

Referências

1. Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa: COVID-19 [Internet]. Brasília, DF: OPAS; [2020] [acesso 17 set. 2020]. Disponível em: http://www.paho.org/pt/covid19Links ]

2. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19): situation reports [Internet]. Genebra: WHO; [2020] [acesso 17 set. 2020]. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reportsLinks ]

3. Governo do Estado do Espírito Santo. COVID-19: Painel COVID-19 [Internet]. Vitória, ES: 2020 [acesso 27 set. 2020]. Disponível em: https://coronavirus.es.gov.br/painel-covid-19-es . [ Links ]

4. Fang X, Li S, Yu H, Wang P, Zhang Y, Chen Z, et al. Epidemiological, comorbidity factors with severity and prognosis of COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Aging (Albany NY). 2020 Jul 13;12(13):12493-503. doi: http://dx.doi.org/10.18632/aging.103579. Epub 2020 Jul 13. [ Links ]

5. Nunes BP, Batista SRR, Andrade FB, Souza Junior PRB, Lima-Costa MF, Facchini LA. Multimorbidity: the brazilian longitudinal study of aging (ELSI-Brazil). Rev Saude Publica. 2018 Oct 25;52(Suppl 2):10s. doi: http://dx.doi.org/10.11606/S1518-8787.2018052000637.Links ]

6. Organização Mundial da Saúde. Diminuindo diferenças: a prática das políticas sobre determinantes sociais da saúde: documento de discussão. Rio de Janeiro: OMS; 2011. [ Links ]

7. Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, Van der Schaar M. Ethnicand regional variations in hospital mortalityfrom COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health. 2020;8(8):e1018-26. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0. Epub 2020 Jul 2. [ Links ]

8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Espírito Santo: 2019. Brasília, DF: IBGE; [2020] [acesso 19 out. 2020]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/panorama . [ Links ]

9. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Saúde. Plano estadual de saúde 2020-2023. Vitória (ES): Sesa; 2019 [acesso 19 out. 2020]. Disponível em: https://saude.es.gov.br/Media/sesa/Planejamento/Plano%20Estadual%20de%20Sa%C3%BAde%20-%20PES%20-2020-2023.pdfLinks ]

10. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Saúde. Painel Covid ES. Vitória (ES): Sesa; 2020 [acesso 19 out. 2020]. Disponível em: https://coronavirus.es.gov.br/painel-ocupacao-de-leitos-hospitalares#Links ]

11. Nandy K, Salunke A, Pathak SK, Pandey A, Doctor C, Puj K, et al. Coronavirus disease (COVID-19): a systematic review and meta-analysis to evaluate the impact of various comorbidities on serious events. Diabetes Metab Syndr. 2020;14(5):1017-1025. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.dsx.2020.06.064. Epub 2020 Jul 2. [ Links ]

12. Orellana JDY, Cunha GM, Marrero L, Horta BL, Leite IC. Explosão da mortalidade no epicentro amazônico da epidemia de COVID-19. Cad Saude Publica. 2020;36(7):e00120020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00120020.Links ]

13. Parohan M, Yaghoubi S, Seraji A, Javanbakht MH, Sarraf P, Djalali M. Risk factors for mortality in patients with Coronavirus disease 2019 (COVID-19) infection: a systematic review and meta-analysis of observational studies. Aging Male. 2020 Jun 8;1-9. doi: http://dx.doi.org/10.1080/13685538.2020.1774748. Online ahead of print. [ Links ]

14. Livingston EBK. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in Italy. JAMA. 2020 Apr 14;323(14):1335. doi: http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.4344.Links ]

15. Pinheiro RS, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gender, morbidity, access and utilization of health services in Brazil. Cienc Saude Colet. 2002;7(4):687-707. doi: http://doi.org/10.1590/S1413-81232002000400007.Links ]

16. Abrams EM, Szefler SJ. COVID-19 and the impact of social determinants of health. Lancet Respir Med. 2020;8(7):659-61. doi: http://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30234-4. Epub 2020 May 18. [ Links ]

17. Yancy CW. COVID-19 and African Americans. JAMA . 2020 May 19;323(19):1891-2. doi: http://doi.org/10.1001/jama.2020.6548. [ Links ]

18. Office for National Statistics (UK). Coronavirus (COVID-19) roundup: Catch up on the latest data and analysis related to the coronavirus (COVID-19) pandemic - Office for National Statistics [Internet]. [London]: ONS; 2020 [acesso 15 set. 2020]. Disponível em: https://www.ons.gov.uk/peoplepopulationandcommunity/healthandsocialcare/conditionsanddiseases/articles/coronaviruscovid19roundup/2020-03-26Links ]

19. Turner-Musa J, Ajayi O, Kemp L. Examining social determinants of health, stigma, and COVID-19 disparities. Healthcare (Basel). 2020 Jun 12;8(2):168. doi: http://dx.doi.org/10.3390/healthcare8020168. [ Links ]

20. Rollston R, Galea S. COVID-19 and the Social Determinants of Health. Am J Health Promot. 2020;34(6):687-9. doi: http://dx.doi.org/10.1177/0890117120930536b.Links ]

21. Leung C. Clinical features of deaths in the novel coronavirus epidemic in China. Rev Med Virol. 2020 May;30(3):e2103. doi: http://dx.doi.org/10.1002/rmv.2103.Links ]

22. Wang K, Zuo P, Liu Y, Zhang M, Zhao X, Xie S, et al. Clinical and laboratory predictors of in-hospital mortality in patients with COVID-19: a cohort study in Wuhan, China. Clin Infect Dis. 2020 Nov 19;71(16):2079-2088. doi: http://dx.doi.org/10.1093/cid/ciaa538.Links ]

23. Nunes B, Souza AS, Nogueira J, Andrade F, Thumé E, Teixeira D, et al. Envelhecimento, multimorbidade e risco para COVID-19 grave: ELSI-Brasil. SciELO Preprints. 2020 Jun 3 [citado 15 set. 2020]. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/703Links ]

24. Li B, Yang J, Zhao F, Zhi L, Wang X, Liu L, et al. Prevalence and impact of cardiovascular metabolic diseases on COVID-19 in China. Clin Res Cardiol. 2020;109. p. 531-538. [ Links ]

25. Guan W-J, Liang W-H, Zhao Y, Liang H-R, Chen Z-S, Li Y-M, et al. Comorbidity and its impact on 1590 patients with Covid-19 in China: a nationwide analysis. Eur Respi J. 2020 May 14;55(5):2000547. doi: http://dx.doi.org/10.1183/13993003.00547-2020. Print 2020 May. [ Links ]

26. Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak in China: summary of a report of 72 314 cases from the chinese center for disease control and prevention. JAMA . 2020 Apr 7;323(13):1239-42. doi: http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.2648.Links ]

27. Grasselli G, Zangrillo A, Zanella A, Antonelli M, Cabrini L, Castelli A, et al. Baseline characteristics and outcomes of 1591 patients infected with SARS-CoV-2 admitted to ICUs of the lombardy rgion, Italy. JAMA . 2020 Apr 28;323(16):1574-81. doi: http://dx.doi.org/10.1001/jama2020.5394.Links ]

28. Cai Q, Chen F, Wang T, Luo F, Liu X, Wu Q, et al. Obesity and COVID-19 severity in a designated hospital in Shenzhen, China. Diabetes Care. 2020;43(7):1392-98. doi: http://dx.doi.org/10.2337/dc200576. Epub 2020 May 14. [ Links ]

29. Petrilli CM, Jones SA, Yang J, Rajagopalan H, O’Donnell LF, Chernyak Y, et al. Factors associated with hospitalization and critical illness among 4,103 patients with COVID-19 disease in New York City. BMJ. 2020 May 22;369:m1966. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m1966.Links ]

30. Simonnet A, Chetboun M, Poissy J, Raverdy V, Noulette J, Duhamel A, et al. High prevalence of obesity in severe acute respiratory syndrome coronavirus-2 (SARS-CoV-2) requiring invasive mechanical ventilation. Obesity (Silver Spring). 2020;28(7):1195-9. doi: http://dx.doi.org/10.1002/oby.22831. Epub 2020 Jun 10. [ Links ]

Recebido: 19 de Outubro de 2020; Aceito: 12 de Maio de 2021

Endereço para correspondência Keila Cristina Mascarello - Universidade Federal do Espírito Santo, Centro Universitário Norte do Espírito Santo, Centro de Ciências da Saúde, BR-101, km 60, Litorâneo, São Mateus, ES, Brasil. CEP: 29932-540. E-mail: keila.mascarello@ufes.br

Editora associada

Bárbara Reis-Santos - 0000-0001-6952-0352

Editora científica

Taís Freire Galvão - 0000-0003-2072-4834

Editora geral

Leila Posenato Garcia - 0000-0003-1146-2641

Contribuição dos autores

Mascarello KC contribuiu na concepção do estudo, realização das análises e redação do manuscrito. Vieira ACBC contribuiu na redação do manuscrito. De Souza ASS, Marcarini WD, Barauna VG e Maciel ELN contribuíram na concepção do estudo e redação do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons