Introdução
A síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em decorrência da COVID-19 (SRAG por COVID-19) é causada por um coronavírus identificado em Wuhan, capital da província de Hubei, China, no mês de dezembro de 2019.1 O novo coronavírus tem alta transmissibilidade e capacidade de causar casos graves e óbitos. No final de setembro de 2020, ele foi responsável por mais de 32,7 milhões de casos confirmados e mais de 1 milhão de mortes no mundo. O continente americano foi o mais atingido, com um número de casos superior a 16,2 milhões. Então, o Brasil era o segundo país afetado pela COVID-19 na região das Américas, com 4,8 milhões de casos confirmados e mais de 143 mil mortes.2
A pandemia afetou drasticamente os serviços de saúde. Muitas pesquisas vêm sendo realizadas, na busca de práticas baseadas em evidências científicas, sendo fundamental contribuir com estudos epidemiológicos visando à promoção da saúde, à prevenção da doença e ao planejamento da assistência hospitalar, com a identificação de indivíduos sujeitos a fatores de risco para mortalidade.3
Nesse cenário, alguns fatores de risco para mortalidade pela SRAG por COVID-19 têm sido sugeridos, como a linfopenia grave, altos níveis de proteína C reativa (correlacionada com a gravidade da hipoxemia), idade mais avançada (≥60 anos), sexo masculino, raça/cor da pele não branca, menor nível socioeconômico, presença de comorbidades (e.g., diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial e câncer, presença de febre, dispneia, tosse e estado imunocomprometido), assim como obesidade e estilo de vida não saudável.4 No entanto, tais fatores podem se modificar, a depender das características da população e dos serviços de saúde, e, nesse sentido, estudos longitudinais de seguimento podem ser úteis para conhecer realidades locais e subsidiar ações de saúde baseadas nessas realidades.
O objetivo desta pesquisa foi analisar as características epidemiológicas e os fatores de risco para óbito em indivíduos com SRAG por COVID-19 no estado do Acre, Brasil, em 2020.
Métodos
Estudo longitudinal de coorte retrospectiva. O Acre está localizado na região Norte do país, na Amazônia Ocidental brasileira, faz divisa com Peru e Bolívia, e possui população estimada em 881.935 pessoas para o dia 1º de julho de 2019.5 O estado conta com 380 estabelecimentos de saúde, entre centros, postos e hospitais, distribuídos entre 22 municípios.6
O estudo incluiu todos os casos de COVID-19 notificados no Acre até 1º de setembro de 2020. A primeira notificação de COVID-19 no estado data de 15 de março de 2020, com os sintomas relatados tendo-se iniciado no dia anterior; o último caso incluído no estudo apresentou os primeiros sintomas quatro dias antes da notificação em 1º de setembro de 2020. O tempo-zero da coorte foi definido pela data do início dos sintomas, e o delta-tempo (∆T) correspondeu ao período desde a data do início dos sintomas até o desfecho (cura ou óbito) para casos com confirmação diagnóstica de SRAG por COVID-19. O tempo de seguimento foi de 60 dias, contados a partir da data dos primeiros sintomas.
Todo caso de SRAG é compulsoriamente notificado e digitado, de forma individual, no Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-Gripe), cujos dados foram utilizados nesse sistema de notificação. Dado a SRAG por COVID-19 ser uma emergência de Saúde Pública de importância nacional e internacional, o Ministério da Saúde, por meio da Nota Técnica nº 20/2020-SAPS/GAB/MS, tornou compulsória a notificação dos casos, para investigação epidemiológica longitudinal e formulação de políticas e estratégias de saúde. Este foi o objetivo desta pesquisa.7
O diagnóstico dos casos com COVID-19 foi realizado por meio de confirmação laboratorial, com o teste molecular (RT-PCR) ou o teste imunológico.
A SRAG foi definida pela presença concomitante de quatro critérios: (i) a febre, mesmo que autorreferida, (ii) a tosse ou dor de garganta, (iii) a dispneia ou saturação de O2 <95% ou desconforto respiratório e (iv) o caso hospitalizado ou evoluído para óbito, independentemente de hospitalização prévia.7
O desfecho ‘óbito’ foi obtido mediante declaração fornecida pelos profissionais e instituições de saúde do setor público ou privado, em todo o território nacional e segundo a legislação vigente, emitida no prazo de 24 horas.
A ficha de notificação do e-SUS Vigilância Epidemiológica (e-SUS VE) contém as seguintes informações relativas aos indivíduos: número de notificação; Unidade da Federação e município de notificação; cadastro de pessoa física (CPF); se o indivíduo notificado é estrangeiro, profissional de saúde ou de segurança; data de nascimento; país de origem; sexo (masculino; feminino); raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena); número de passaporte; código de endereçamento postal (CEP); município de residência; endereço de residência; data da notificação e sintomas (febre, tosse, dor de garganta e dispneia, categorizadas dicotomicamente: sim; não). Para outros sintomas, o preenchimento foi feito de forma descritiva, para o que, neste estudo, foram criadas variáveis independentes categóricas: redução ou perda completa do olfato (hiposmia/anosmia) e/ou paladar (hipogeusia), mialgia, diarreia, cefaleia e coriza, todas consideradas de interesse para o SRAG por COVID-19, de acordo com a literatura.6
A ficha de notificação também incluía informações sobre presença de comorbidades (doença respiratória crônica; doença renal crônica; diabetes mellitus; doença cardíaca crônica), doença cromossômica, imunossupressão e gestação de alto risco. A variável ‘multimorbidade’ foi definida pela presença de mais de uma doença crônica, entre as pesquisadas.
Além destas, outras variáveis foram avaliadas: estado do teste (solicitado, coletado ou concluído); data da coleta do teste; tipo de teste (teste rápido de anticorpo e/ou antígeno e RT-PCR); resultado do teste (negativo; positivo); classificação final (confirmação laboratorial; confirmação clínico-epidemiológica; caso descartado); evolução do caso (cancelado; ignorado; cura; óbito [variável dependente]; internado ou em tratamento domiciliar); data do encerramento do caso; e espaço para informações complementares.
O estudo está sujeito a viés de informação, decorrente do uso de dados secundários, com possibilidade de erros de diagnóstico e registro, e/ou da inabilidade de controlar possíveis variáveis de confusão. Todavia, supõe-se que o viés de informação presente é do tipo não diferencial.
As variáveis contínuas foram analisadas por medida de tendência central (mínimo, média, máxima, mediana e desvio-padrão); e as variáveis categóricas, descritas por frequência absoluta (n) e relativa (%). As variáveis independentes foram comparadas pelo teste qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher, para variáveis com menos de cinco ocorrências.
Os fatores de risco para óbito foram analisados por meio da regressão de Cox, para estimar as razões de risco (hazard ratios, HR) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). A análise multivariada foi realizada com as variáveis que apresentaram valor de p<0,10 na análise univariada, sendo estas analisadas em conjunto. Realizou-se o teste de Wald para verificar a significância dos coeficientes do modelo de Cox. No modelo final, permaneceram as variáveis que apresentaram valor de p<0,05, mediante ajuste pelas variáveis ‘sexo’, ‘idade’, ‘profissional de saúde’, ‘dor de garganta’, ‘dispneia’, ‘cefaleia’, ‘hiposmia/anosmia/hipogeusia’, ‘mialgia’, ‘coriza’ e ‘multimorbidade’ (coexistência de doenças). Finalmente, realizou-se a análise de resíduos de Cox-Snell, para estimar o ajuste do modelo.
Os dados foram transferidos do banco e-SUS VE/SIVEP-Gripe, na plataforma Excel, sendo tratados e posteriormente analisados com uso do programa SPSS, versão 22.0.
O projeto da pesquisa seguiu os preceitos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospitalar Estadual do Acre (CEP/FUNDHACRE), mediante Parecer nº 3.294.722 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 47577215.2.0000.5009), emitido em 30 de abril de 2019. Devido ao uso de dados secundários, foi dispensada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
No período de 15 de março a 1º de setembro de 2020, foram testadas 72.830 pessoas para COVID-19; destas, 10.529 não tiveram os resultados dos exames ou estes foram inconclusivos, e 4.569 registros foram cancelados por duplicidade. Dos 57.700 indivíduos com resultados de exames para COVID-19, 42,3% foram positivos (Tabela 1).
Dos 24.389 casos positivos, a média de tempo do início dos sintomas até o desfecho ‘óbito’ foi de 33,6 dias, com desvio-padrão de 21,6 e mediana de 23 dias; a média de idade foi de 40,8 anos, com desvio-padrão de 14,3 e mediana de 30 anos. Ao final do segmento dos casos, 18.442 (75,6%) estavam curados, 545 (2,2%) foram a óbito, 42 (0,2%) continuavam internados e 408 (1,7%) encontravam-se em tratamento no domicílio. Houve perda de seguimento de 4.952 indivíduos (20,3%).
Entre os casos positivos, a maioria era do sexo feminino, com idade abaixo dos 60 anos e de raça/cor da pele parda. O percentual de profissionais de saúde infectados foi de 8,2%; e de profissionais da Segurança Pública, de 2,8% (Tabela 1). Com relação à função dos profissionais de saúde, 33,2% eram técnicos de enfermagem, 16,3% enfermeiros e 9,3% médicos. Com referência às demais profissões, 9,0% eram agentes comunitários de saúde, 3,7% recepcionistas e 3,0% agentes de endemias, entre outros.
O maior número de casos positivos foi identificado na capital Rio Branco, com 38,5% dos casos. Uma proporção considerável dos casos positivos apresentava três a quatro sinais e sintomas (44,1%), principalmente: febre (68,3%), tosse (60,5%), dor de garganta (41,1%), cefaleia (30,5%), dispneia (29,9%), mialgia (12,5%), diarreia (7,0%), coriza (6,2%) e hiposmia/anosmia/hipogeusia (4,3%) (Tabela 2).
As comorbidades estiveram presentes em 5,9% dos casos, sendo a cardiopatia (3,3%) a principal, seguida de diabetes mellitus (1,7%) e doença respiratória crônica (0,7%) (Tabela 2). Quanto a outros sinais e sintomas, não apresentados em tabela, encontrou-se fraqueza (3,7%), calafrios (2,8%), dor torácica (1,4%), dor ocular (1,0%), náuseas e vômitos (0,7%) e dificuldade de deglutir (0,6), entre outros (Tabela 2).
Houve diferença estatisticamente significativa entre indivíduos que sobreviveram, relativamente aos que foram a óbito, para as variáveis ‘sexo’, ‘idade’ e ‘profissional de saúde’, e para os seguintes sinais e sintomas: tosse, dor de garganta, dispneia, cefaleia, mialgia, hiposmia/anosmia/hipogeusia e coriza. A presença de comorbidades também foi diferente entre sobreviventes e não sobreviventes (p<0,05) (Tabela 3). Entre os profissionais da Segurança Pública, não houve óbitos no período.
Na análise ajustada, os fatores de risco para óbito, nos indivíduos com SRAG por COVID-19, foram ser do sexo masculino (HR=1,48 - IC95% 1,25;1,76), ter idade maior ou igual a 60 anos (HR=10,64 - IC95% 8,84;12,81), presença de dispneia (HR=4,20 - IC95% 3,44;5,12) e de comorbidade, com destaque para o diabetes mellitus (HR=1,66 - IC95% 1,07;2,59) e problemas cardíacos (HR=1,54 - IC95% 1,04;2,29). Os sintomas de dor de garganta e cefaleia, assim como ser profissional de saúde, foram negativamente associados ao óbito (Tabela 4).
Variável | Total | Positivo | Negativo | p-valora | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
N | N | % | N | % | |||
Sexob | Masculino | 26.296 | 11.342 | 46,5 | 14.954 | 45,0 | <0,001 |
Feminino | 31.342 | 13.040 | 53,5 | 18.302 | 55,0 | ||
Idade | <60 anos | 50.655 | 21.048 | 86,3 | 29.607 | 88,9 | <0,001 |
≥60 anos | 7.045 | 3.341 | 13,7 | 3.704 | 11,1 | ||
Raça/cor da peleb | Branca | 6.864 | 2.683 | 11,5 | 4.181 | 13,5 | <0,001 |
Parda | 44.743 | 19.265 | 82,8 | 25.478 | 82,3 | ||
Indígena | 1.406 | 806 | 3,5 | 600 | 1,9 | ||
Preta | 1.230 | 519 | 2,2 | 711 | 2,3 | ||
Profissional de saúde | Sim | 5.440 | 1.992 | 8,2 | 3.448 | 10,4 | <0,001 |
Não | 52.260 | 22.397 | 91,8 | 29.863 | 89,6 | ||
Profissional da Segurança Pública | Sim | 1.607 | 686 | 2,8 | 921 | 2,8 | 0,730 |
Não | 56.093 | 23.703 | 97,2 | 32.390 | 97,2 | ||
Total | 57.700 | 24.389 | 42,3 | 33.311 | 57,7 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) As diferenças em relação ao total são decorrentes de falta de informação para a variável.
Variável | N | % | |
---|---|---|---|
Município de residência | Rio Branco | 9.399 | 38,5 |
Cruzeiro do Sul | 3.178 | 13,0 | |
Tarauacá | 1,559 | 6,4 | |
Sena Madureira | 1.252 | 5,1 | |
Feijó | 1.127 | 4,6 | |
Brasiléia | 1.123 | 4,6 | |
Xapuri | 960 | 3,9 | |
Mâncio Lima | 757 | 3,1 | |
Outros | 5.034 | 20,6 | |
Número de sinais e sintomas relatados | Assintomático | 1.464 | 6,0 |
1 a 2 | 10.056 | 41,2 | |
3 a 4 | 10.750 | 44,1 | |
5 e mais | 2.119 | 8,7 | |
Sinais e sintomas | Febre | 17.301 | 68,3 |
Tosse | 15.322 | 60,5 | |
Dor de garganta | 10.397 | 41,1 | |
Dispneia | 7.576 | 29,9 | |
Cefaleia | 7.735 | 30,5 | |
Hiposmia/anosmia/hipogeusia | 1.083 | 4,3 | |
Mialgia | 3.165 | 12,5 | |
Coriza | 1.566 | 6,2 | |
Diarreia | 1.779 | 7,0 | |
Multimorbidade | Sim | 1.492 | 5,9 |
Morbidades relatadas | Doença cardíaca | 834 | 3,3 |
Diabetes mellitus | 443 | 1,7 | |
Doença respiratória crônica | 186 | 0,7 | |
Doença renal crônica | 103 | 0,7 | |
Imunossupressão | 173 | 0,7 | |
Doença cromossômica | 61 | 0,2 | |
Gestante de alto risco | 63 | 0,2 |
Variável | Total | Óbito | p-valorb | ||
---|---|---|---|---|---|
N | N | % | |||
Sexoc | Masculino | 8.905 | 333 | 3,7 | <0,001 |
Feminino | 10.075 | 212 | 2,1 | ||
Idade | <60 anos | 16.424 | 173 | 1,0 | <0,001 |
≥60 anos | 2.563 | 372 | 14,5 | ||
Raça/cor da pelec | Branca | 2.087 | 52 | 2,5 | 0,452 |
Parda | 15.024 | 431 | 2,9 | ||
Indígena | 505 | 14 | 2,8 | ||
Preta | 401 | 7 | 1,7 | ||
Profissional de saúde | Sim | 1.715 | 9 | 0,5 | <0,001 |
Febre | Sim | 13.264 | 384 | 2,9 | 0,757 |
Tosse | Sim | 11.755 | 369 | 3,1 | 0,005 |
Dor de garganta | Sim | 7.802 | 140 | 1,8 | <0,001 |
Dispneia | Sim | 5.971 | 357 | 6,0 | <0,001 |
Cefaleia | Sim | 5.896 | 87 | 1,5 | <0,001 |
Mialgia | Sim | 2.623 | 39 | 1,5 | <0,001 |
Hiposmia/anosmia/hipogeusia | Sim | 745 | 7 | 0,9 | 0,001 |
Coriza | Sim | 1.248 | 18 | 1,4 | 0,002 |
Diarreia | Sim | 1.378 | 29 | 2,1 | 0,077 |
Multimorbidade | Sim | 736 | 88 | 12,0 | <0,001 |
Doença cardíaca | Sim | 616 | 32 | 5,2 | <0,001 |
Diabetes mellitus | Sim | 358 | 25 | 7,0 | <0,001 |
Doença respiratória crônica | Sim | 158 | 6 | 3,8 | 0,483 |
Doença renal crônica | Sim | 88 | 8 | 9,1 | <0,001 |
Total | 18.987 | 545 | 2,9 |
a) SRAG: síndrome respiratória aguda grave; b) Teste qui-quadrado de Pearson; c) As diferenças em relação ao total são decorrentes de falta de informação para a variável.
Variável | HRb bruta | IC95% c | p-valord | HRb ajustadae | IC95% c | p-valord | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 1,78 | 1,49;2,11 | <0,001 | 1,48 | 1,25;1,76 | <0,001 |
Idade | ≥60 anos | 14,83 | 12,40;17,73 | <0,001 | 10,64 | 8,84;12,81 | <0,001 |
Profissional de saúde | Sim | 0,17 | 0,09;0,32 | <0,001 | 0,38 | 0,20;0,74 | 0,002 |
Tosse | Sim | 1,41 | 1,18;1,69 | 0,038 | 1,13 | 0,94;1,36 | 0,945 |
Dor de garganta | Sim | 0,46 | 0,38;0,56 | <0,001 | 0,48 | 0,39;0,58 | <0,001 |
Dispneia | Sim | 3,98 | 3,34;4,75 | <0,001 | 4,20 | 3,44;5,12 | <0,001 |
Cefaleia | Sim | 0,46 | 0,37;0,58 | <0,001 | 0,70 | 0,55;0,89 | 0,002 |
Mialgia | Sim | 0,53 | 0,38;0,74 | <0,001 | 0,79 | 0,56;1,11 | 0,189 |
Hiposmia/anosmia/hipogeusia | Sim | 0,34 | 0,16;0,71 | 0,002 | 0,67 | 0,31;1,42 | 0,266 |
Coriza | Sim | 0,51 | 0,32;0,81 | 0,005 | 0,76 | 0,47;1,23 | 0,331 |
Multimorbidade | Sim | 4,91 | 3,92;6,16 | <0,001 | 2,23 | 1,77;2,81 | <0,001 |
Doença cardíacaf | Sim | 1,93 | 1,36;2,75 | 0,004 | 1,54 | 1,04;2,29 | 0,030 |
Diabetes mellitus f | Sim | 2,69 | 1,82;3,99 | <0,001 | 1,66 | 1,07;2,59 | 0,029 |
Doença renal crônicaf | Sim | 3,15 | 1,57;6,34 | 0,009 | 1,89 | 0,91;3,92 | 0,111 |
a) SRAG: síndrome respiratória aguda grave; b) HR: hazard ratio, ou razão de risco; c) IC95%: intervalo de confiança de 95%; d) p-valor: teste de Wald; e) Ajustada pelas variáveis ‘sexo’, ‘idade’, ‘profissional de saúde’, ‘dor de garganta’, ‘dispneia’, ‘cefaleia’, ‘hiposmia/anosmia/hipogeusia’, ‘mialgia’, ‘coriza’ e ‘multimorbidade’; f) Ajustada pelas variáveis entre si, exceto para presença e ausência de multimorbidade.
Discussão
No presente estudo, foram identificados como fatores de risco para óbito pela SRAG por COVID-19: sexo masculino, idade acima de 60 anos ou mais, dispneia, presença de multimorbidade, com destaque para o diabetes mellitus e problemas cardíacos; e como sintomas e sinais relacionados ao melhor prognóstico, o relato de dor de garganta e a cefaleia, assim como ser profissional de saúde.
A pandemia teve início no Acre em meados de março de 2020. Aquele momento, de emergência da COVID-19 no estado, representou uma vantagem para o Acre, ao permitir mais tempo para o planejamento da resposta da Saúde Pública regional. Ademais, a cidade de Rio Branco conta com um laboratório especializado em doenças contagiosas, o que possibilitou a identificação dos casos no primeiro momento da pandemia. Medidas de isolamento, como suspensão de aulas e restrição de atividades não essenciais, também foram implementadas precocemente, com o intuito de reduzir o impacto sobre o sistema de saúde. Contudo, essas vantagens e as atitudes tomadas não evitaram, totalmente, a disseminação da doença na população, e mortes foram inevitáveis.
Neste estudo, o perfil dos indivíduos contaminados mostra que aqueles em idade produtiva se encontram sob maior risco de infecção. Porém, a maior mortalidade observada em indivíduos na idade de 60 anos ou mais corrobora os dados obtidos em estudo com 1.808 casos da doença no município do Rio de Janeiro, onde, segundo os pesquisadores envolvidos, pessoas na faixa etária dos 30 aos 59 anos foram mais incidentes entre os casos, enquanto indivíduos com 60 a 89 anos apresentaram maior taxa de mortalidade.8
Dados da Coreia do Sul9 e da Alemanha,10 por sua vez, demonstraram a elevada incidência na segunda década de vida, um aspecto a considerar igualmente, haja vista o estudo alemão ter sugerido um papel importante dessa faixa etária na propagação da epidemia, mesmo após a implementação das medidas de distanciamento social. Na Itália, os casos de UTI tinham média de 63 anos e apenas 13,0% apresentavam menos de 51 anos.11
Pacientes idosos com COVID-19 têm maior probabilidade de evoluir para a doença grave,12 embora estudos recentes apontem que os jovens não estão livres dessa condição quando apresentam obesidade. Estudo realizado nos Estados Unidos identificou prevalência de obesidade próxima de 40%, enquanto na China, essa condição observada foi de 6,2%.13 Na França, demonstrou-se associação significativa entre prevalência de obesidade e SRAG por COVID-19 grave, sugerindo que a obesidade pode ser um fator de risco para evolução grave da doença e, consequentemente, maior risco de admissão em UTI.14
A doença grave envolve pneumonia intersticial bilateral, o que requer suporte ventilatório na UTI e pode evoluir para síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), de alta mortalidade.4 Em Rio Branco, a prevalência de índice de massa corporal (IMC) acima de 25 kg/m² é de 48,4% entre indivíduos com 18 a 39 anos, e de 62,1% na faixa etária de 40 a 59 anos,15 o que também coloca a população mais jovem em risco, uma vez que o tecido adiposo serve como reservatório para o vírus.16
Foi identificado que os profissionais de saúde, especialmente os técnicos de enfermagem, médicos e enfermeiros, são grupos de risco importantes para contrair a COVID-19, porque estão na linha de frente das ações da Saúde frente à pandemia. Esses profissionais se arriscam diariamente, para salvar os doentes acometidos pela SRAG por COVID-19, apesar da exaustão física e mental, da inquietação e agonia de ter de tomar decisões difíceis de triagem dos doentes nos serviços de atendimento, da dor de perder pacientes, colegas e amigos, além do medo de transmitir a infecção para seus familiares. A falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), também são uma preocupação17 e, apesar da elevada taxa de infecção, não foi observado, neste estudo, maior risco de mortalidade entre os profissionais de saúde. Como se não bastasse, a carga viral elevada nos casos mais graves coloca os profissionais responsáveis por seu cuidado entre os grupos de maior risco de infecção,4 além de a transmissão assintomática e a pré-sintomática responderem, respectivamente, por 51,7%18 e 44,0%19 das novas infecções.
Sobre os sintomáticos, as principais manifestações observadas foram febre e tosse; dor de garganta e dispneia também se fizeram presentes entre eles. Esses achados corroboram uma revisão de 65 artigos, segundo a qual, menos comuns, foram identificados outros sintomas como cefaleia, diarreia, hemoptise e coriza;20 e mais preditores de infecção por COVID-19, a perda do olfato e a perda do paladar, também identificados em outro estudo.21
A hiposmia é um sintoma prevalente em indivíduos com COVID-19, mais frequente nessa do que em outras infecções do trato respiratório. Ela foi descrita como sintoma com alto valor preditivo positivo para infecção pelo coronavírus (88,8%) e, também, como o sintoma inicial em até 35% dos casos da doença, estando associada aos casos menos graves,3 assim como revelou a coorte do presente estudo.
Entre os sintomas relatados, no que se refere à presença de dispneia, houve diferença estatística entre os que foram a óbito e os sobreviventes. A dispneia é relatada em casos graves, visto que a COVID-19 utiliza a enzima conversora da angiotensina 2 (ECA 2) como receptor, sendo amplamente encontrada nos tecidos do pulmão, intestino, rim e vasos sanguíneos. Ademais, esse processo resulta em liberação de citocinas e consequente dano aos tecidos pulmonares, renais e cardíacos.22
Quanto à presença de multimorbidades, ela foi maior entre os indivíduos que foram a óbito por COVID-19 no Acre. Em Nova Iorque, Estados Unidos, estudo com 5.700 indivíduos hospitalizados revelou que 88,0% apresentavam mais de uma morbidade, sendo as mais prevalentes a hipertensão arterial (56,6%), a obesidade (41,7%) e o diabetes mellitus (33,8%).23 Na China, estudo com 1.590 pessoas hospitalizadas revelou que as morbidades mais prevalentes foram a hipertensão e o diabetes, implicando um risco de 1,79 (1,16;2,77) entre indivíduos com pelo menos uma morbidade, e de 2,59 (1,61;4,17) entre aqueles com duas ou mais morbidades.24 Segundo uma pesquisa brasileira, realizada no período da pandemia até a 21ª Semana Epidemiológica de 2020, o diabetes também foi mais prevalente em indivíduos hospitalizados com SRAG por COVID-19, comparados à população geral do país.25 A possível explicação para os quadros graves em pessoas com diabetes mellitus deve-se ao reconhecimento constante da glicose pelos receptores de lectina do tipo C, gerando maior inflamação.22
Em estudo com 1.139 casos e 11.390 controles realizado em Madri, Espanha, pesquisadores observaram que os inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona não aumentaram o risco de SRAG por COVID-19 grave, sendo desaconselhada a descontinuidade do tratamento por parte dos doentes. Ademais, o monitoramento contínuo desses indivíduos foi recomendado, porque a presença de doenças cardiovasculares pode agravar a pneumonia e resultar em desfechos desfavoráveis.26
Entre as limitações da presente pesquisa, um ponto a ser discutido está na utilização de dados secundários, obtidos da vigilância epidemiológica estadual, o que limitou o detalhamento das informações, especialmente sobre a presença ou não de hipertensão. Sugere-se a inclusão, no questionário do e-SUS VE, das variáveis ‘hipertensão arterial’, ‘anosmia/hiposmia/disgeusia/ageusia’, ‘mialgia’, ‘dor de garganta’, ‘cefaleia’, ‘coriza’ e ‘diarreia’, no sentido de melhor fundamentar pesquisas futuras. Outras possíveis limitações do estudo são (i) a qualidade das informações, dependente do preenchimento completo e correto da ficha de notificação do e-SUS VE, e (ii) a subnotificação dos casos. Entretanto, a utilização desse banco de dados permite traçar um perfil de casos graves de SRAG por COVID-19, fundamental neste momento de pandemia.
Outro ponto a ser questionado é o autorrelato da multimorbidade, que pode resultar em subnotificações e subestimação da força de associação com resultados adversos. Cumpre lembrar que o autorrelato para doenças crônicas é amplamente utilizado, e que tais informações foram obtidas por profissionais de saúde. Outros estudos são necessários para explorar o tema, utilizando-se de fontes de dados primários e dispondo de maior tempo de seguimento. Finalmente, o número reduzido de óbitos resultou em intervalos de confiança amplos, cabendo cautela na análise dos dados apresentados.
Destaca-se como ponto forte da pesquisa o seguimento prolongado, com avaliação dos desfechos ‘cura’ e ‘óbito’. Ademais, o estudo foi realizado em um estado da região Norte do Brasil, com uma população que obteve seu diagnóstico de análises laboratoriais e sua notificação de COVID-19 feita no e-SUS VE/SIVEP-Gripe, sendo acompanhados para fechamento dos casos e identificação dos desfechos em saúde. A escolha do tipo de estudo e a abrangência da amostra, neste momento de pandemia, reforçam sua importância, na medida em que o trabalho subsidia conhecimentos sobre a realidade de estados distantes dos grandes centros urbanos do país, permitindo a identificação de fatores de risco regionais para óbito na SRAG por COVID-19.
Conclui-se que o estudo analisou as características epidemiológicas e os fatores de risco para óbito em indivíduos diagnosticados com SRAG por COVID-19 no estado do Acre. É necessária atenção aos grupos de risco, inclusive idosos, dispneicos e portadores de diabetes mellitus. Alguns sintomas foram mais comuns nos casos leves da doença e devem ser mais bem elucidados em pesquisas futuras.