Introdução
Em dezembro de 2019, uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida surgiu em Wuhan, província de Hubei, China. Uma investigação do Centro de Controle de Doenças da China relacionou a maioria dos casos ao mercado de atacado de frutos do mar, conhecido pelo nome Huanan, onde muitas espécies de animais vivos são vendidas. A doença, denominada COVID-19, espalhou-se rapidamente, tanto na China quanto globalmente. O vírus responsável pela infecção foi caracterizado como um novo membro de coronavírus de ácido ribonucleico (RNA) envelopado: o SARS-CoV-2.1-5
Imediatamente, pesquisas com o propósito de identificar possíveis fatores de risco para gravidade e óbito pela COVID-19 foram desenvolvidas. Diversas medidas de mitigação da doença foram colocadas em ação pelos governos, da recomendação para o uso de máscaras ao distanciamento físico, além de medidas de restrição à circulação de pessoas. Os primeiros dados epidemiológicos não identificaram crianças e adolescentes como principais agentes de transmissão e adoecimento, o que levou a uma baixa preocupação com esses grupos, no contexto da pandemia, embora estudos tenham mostrado que os mais jovens se infectam igualmente, ainda que apresentem manifestações clínicas mais brandas que adultos e idosos.6,7
A dificuldade de estimar a carga da COVID-19 na população de menor idade, possivelmente, seria acentuada pelo fechamento das escolas e creches no início da pandemia, dificultando a realização de estudos mais robustos que considerassem a hipótese de as escolas serem locais de transmissão. Um estudo desenvolvido em um centro médico terciário pediátrico na cidade de Chicago, Estados Unidos, ao analisar 145 indivíduos, entre crianças menores de 5 anos (n=46), crianças e adolescentes de 5 a 17 (n=51) e adultos de 18 a 65 (n=48) que desenvolveram sintomas moderados uma semana após terem contraído o vírus demonstrou que as crianças em idade pré-escolar (menores de 5 anos) apresentaram quantidade de cargas virais entre 10 e 100 vezes maior no trato respiratório superior do que crianças mais velhas e adultos. Este achado sugere maior transmissão entre crianças menores de 5 anos, como ocorre para o vírus sincicial respiratório, com implicações importantes, especialmente para a segurança da reabertura de escolas e creches.8
Em uma revisão sistemática sobre as características clínicas e o manejo de crianças e adolescentes com COVID-19, foram avaliados 18 estudos, com 1.065 participantes (dos quais 444 indivíduos tinham menos de 10 anos e 553 tinham entre 10 e 19 anos) com infecção confirmada por SARS-CoV-2, na análise final. O estudo concluiu que as crianças adquirem a infecção por SARS-CoV-2, principalmente, de seus familiares. Adicionalmente, os resultados sugeriram que elas desenvolvem formas menos graves de COVID-19, comparadas aos adultos, apresentando sintomas leves, bom prognóstico e recuperação 1 a 2 semanas após a manifestação da doença.
A rápida disseminação mundial do SARS-CoV-2 e a falta de dados sobre crianças menores de 10 anos infectadas apontam para a necessidade de mais estudos epidemiológicos e clínicos, no sentido de identificar possíveis estratégias preventivas e terapêuticas da COVID-19.9
Com a proposta de retorno às aulas presenciais, faz-se necessário entender os principais sintomas, gravidade e evolução das doenças na faixa etária de 2 a 22 anos e como eles podem indicar melhores formas de instituir protocolos de biossegurança para o rastreamento desses casos.
O estudo teve por objetivo analisar características sociodemográficas e clínicas autorreferidas entre indivíduos de 2 a 22 anos e possíveis associações com a infecção por SARS-CoV-2 no estado do Espírito Santo, Brasil.
Métodos
Foi realizado um estudo de corte transversal seriado, de base populacional, tendo como unidade de estudo um único morador por domicílio.
O Espírito Santo, localizado na região Sudeste do Brasil, contava com uma população de 4.018.650 habitantes em 2019.10 O estado é composto de 78 municípios, distribuídos em quatro regiões intermediárias e oito regiões imediatas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).11
Foram selecionados para o estudo municípios sentinelas em cada uma das regiões imediatas, os de maiores populações (Colatina; Linhares; São Mateus; Afonso Cláudio; Nova Venécia; Cachoeiro de Itapemirim; Alegre), além dos quatro municípios da região metropolitana da Grande Vitória (Vila Velha; Cariacica; Serra; e a capital, Vitória).
Foram incluídos no estudo, indivíduos com 2 a 22 anos de idade, sorteados na residência selecionada. Não foram definidos critérios de exclusão.
O estudo constou de quatro fases. Para cada uma delas, foram calculados os tamanhos de amostra considerando-se o cálculo para estimar a prevalência em amostra aleatória simples, com uma prevalência esperada de 3,0% na primeira etapa, chegando a 20,0% na última etapa. Para cada etapa, os erros amostrais variaram de 0,5% (prevalência de 3,0%) a 1,2% (prevalência de 20,0%). A amostra final do estudo, para estimar uma prevalência em torno de 5%, possui erro amostral de 1,1%.
Foram realizados quatro inquéritos repetidos. O processo de amostragem de cada inquérito foi independente e realizado em múltiplos estágios, de 15 em 15 dias, com duração de dois meses: Etapa 1, 10 de maio; Etapa 2, 24 de maio; Etapa 3, 7 de junho; e Etapa 4, 21 de junho de 2020.
Este estudo consiste em uma subamostra do inquérito original, que incluiu todos os indivíduos com idade de 2 a 22 anos, categorizados por faixas etárias: 2 a 5 anos, crianças pré-escolares; 6 a 10, estudantes do ensino fundamental I; 11 a 14, estudantes do ensino fundamental II; 15 a 18, ensino médio; e 19 a 22 anos, ensino superior. Considerou-se, ainda, uma segunda categorização: 2 a 10 anos, como criança; 11 a 18, adolescente; e 19 a 22 anos, como jovem.
Para responder à entrevista e fazer o teste de anticorpos, o morador deveria ter acima de 16 anos de idade, independentemente de apresentar sinais ou sintomas da doença. Quando o morador tinha menos de 16 anos, o inquérito baseava-se nas respostas do responsável, ou seja, qualquer morador do domicílio acima dessa idade e com relação de parentesco com o menor. Crianças menores de 2 anos não foram incluídas no estudo.
A coleta de amostra de sangue por punção digital e a realização da testagem para COVID-19 foram realizadas por profissionais de saúde treinados. O exame utilizado para diagnóstico foi o teste rápido imunocromatográfico de anticorpos IgM e IgG, da marca Celer, registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sob o nº 80537410048. Esse teste possui sensibilidade de 86,4% e especificidade de 97,6%. O resultado foi considerado positivo quando o teste foi positivo para a detecção dos anticorpos SARS-CoV-2 (IgM e/ou IgG) na amostra de sangue.12
Para avaliação de variáveis associadas ao teste positivo, foi elaborado um questionário com questões fechadas. Os dados foram coletados em tablets conectados à internet e utilizando uma plataforma digital, havendo a possiblidade de operar onde ou quando não houvesse acesso à rede. Os tablets foram fornecidos pela Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo; a equipe de entrevistadores constituiu-se de servidores cedidos pelas secretarias municipais de saúde. A equipe de campo foi treinada pela Secretaria de Estado, em encontros presencial e a distância: uma dupla de pesquisadores foi destinada a cada setor censitário e ficou responsável por 40 entrevistas.
Em relação à amostragem, o total de domicílios para cada um dos 11 municípios foi proporcional ao tamanho total estimado da população urbana. Foram realizados sorteios de setores censitários, tendo-se definido 40 domicílios por setor censitário. Consideraram-se, ainda, somente os setores censitários com menos de 100 hectares, população urbana, e mais de 200 domicílios, com base nos dados do Censo Demográfico de 2010.
Foi realizado um sorteio sistemático dos domicílios, com intervalo amostral igual a cinco, a partir de um ponto gerado aleatoriamente. Em cada domicílio sorteado, foi anotada a lista de moradores, entre os quais apenas um foi sorteado para participar do estudo. A amostragem incluiu os mesmos setores censitários em todas as etapas do inquérito, porém domicílios diferentes daqueles incluídos nas etapas anteriores. Os indivíduos foram sorteados no domicílio, independentemente de apresentarem sinais e sintomas de COVID-19.
Além da testagem para COVID-19, foram coletadas as seguintes informações sobre os participantes: sexo (masculino; feminino); faixa etária I, segundo a distribuição em categorias escolares (em anos: 2 a 5; 6 a 10; 11 a 14; 15 a 18; 19 a 22); faixa etária II, agrupada em três faixas (em anos: 2 a 10, crianças; 11 a 18, adolescentes; 19 a 22, jovens); escolaridade do indivíduo com maior grau de instrução no domicílio (analfabeto; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior completo; ensino superior incompleto); raça/cor da pele, autorreferida (branca; parda; preta; amarela; indígena); número de moradores no domicílio (1, 2, 3, 4, 5 ou mais); procura pela unidade de saúde por sintomas de COVID-19 (sim; não); e presença de sintomas de COVID-19 indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (tosse, febre, cansaço, dores no corpo, dificuldade para respirar, alterações no paladar e olfato), nos 15 dias anteriores à entrevista, e outros sintomas não relacionados.13 Foram perguntados um a um sobre os sintomas e, para cada um deles, as respostas eram ‘sim’ ou ‘não’. Estudaram-se ainda as comorbidades autorreferidas (asma, hipertensão arterial sistêmica, obesidade, diabetes mellitus, doença cardiovascular, neoplasia e doença renal), com categorias de respostas ‘sim’ ou ‘não’ para cada uma delas.
Na análise estatística, foram construídas tabelas de frequências absolutas e relativas, além da realização de análises bivariadas dos resultados para COVID-19 e as variáveis do estudo, pelo teste qui-quadrado de Pearson. O nível de significância adotado foi de 5%. Os dados foram analisados pelo programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), versão 20.0.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário ‘Cassiano Antônio Moraes’, da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/Hucam/UFES). O Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CCAE) foi registrado com o no 31417020.3.0000.5064 e recebeu aprovação mediante o Parecer no 4.317.264, emitido em 30 de abril de 2020. Todos os indivíduos selecionados para a amostra do inquérito populacional foram informados sobre os objetivos do estudo, seus riscos e benefícios. O material e informações foram coletados sob a condição de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; ou Termo de Assentimento, no caso de menores. Todos os indivíduos testados em campo tiveram um número de telefone registrado, para recebimento do resultado do teste. Os casos positivos foram notificados junto ao serviço municipal de saúde, para as providências necessárias. As medidas de biossegurança foram tomadas, de forma a se garantir a saúde dos trabalhadores de campo, encarregados da coleta dos dados e do material.
Nos domicílios onde o indivíduo sorteado obteve resultado positivo, bem como nos domicílios com morador sintomático, foi oferecido o teste a todos os moradores do domicílio. Esses resultados não foram computados no estudo de prevalência, tampouco entraram na amostra avaliada.
Resultados
O inquérito teve uma amostra de 18.791 indivíduos; da qual uma subamostra foi analisada neste estudo, correspondente a 1.693 (9,0%) entre crianças, adolescentes e jovens de 2 a 22 anos. Do total de 1.693 indivíduos na faixa etária analisada (2 a 22 anos) que fizeram o teste, 104 (6,1%) apresentaram teste positivo para os anticorpos contra o vírus SARS-CoV-2.
A Figura 1 apresenta a evolução da positividade, ao longo das quatro etapas do inquérito para a faixa etária total (2 a 22 anos) e por três categorias de idade (2 a 10, 11 a 18 e 19 a 22 anos). O teste qui-quadrado entre as etapas indicou diferença de positividade, observando-se tendência crescente para todas as categorias (p-valor=0,001). O percentual de resultados positivos para COVID-19, na faixa etária de 2 a 10 anos, aumentou de 1,0% para 11,0% entre a primeira e a última etapa do estudo, enquanto o percentual de positivos aumentou de 2,6% para 9,3% e de 2% a 11,6%, nas faixas etárias de 11 a 18 e 19 a 22 anos, respectivamente, entre a primeira e a terceira fase.
A Tabela 1 apresenta o perfil sociodemográfico dos participantes. Um percentual de 63,7% da amostra se situava na faixa etária entre 15 e 22 anos, 56,6% eram do sexo feminino, 64,6% se autodeclararam da raça/cor da pele preta ou parda, e 49,8% moravam com mais de 4 pessoas no domicílio. Entre os moradores de maior escolaridade, apenas 10,6% tinham ensino superior incompleto; 20,2% haviam concluído o ensino superior. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos estudados (anticorpos anti-SARS-CoV-2 positivos ou negativos).
Observou-se que 35,5% dos positivos para SARS-CoV-2 não referiu qualquer sintoma; 16,3%, um sintoma; 9,6%, dois sintomas; 9,7%, três sintomas, e 29,8% apresentaram quatro ou mais sintomas. As diferenças entre as pessoas com resultados positivos e negativos, quanto ao número de sintomas, foram estatisticamente significativas (p-valor=0,001).
Nota: Os testes foram realizados nas seguintes datas: Etapa 1, 10 de maio; Etapa 2, 24 de maio; Etapa 3, 7 de junho; e Etapa 4, 21 de junho de 2020
Variável | Categoria | Totala | Positivob | Negativob | p-valorc | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |||||
Faixa etária I (em anos) | ≤5 | 136 | 8,0 | 9 | 6,6 | 127 | 93,4 | 0,195 | ||
6-10 | 212 | 12,5 | 8 | 3,8 | 204 | 96,2 | ||||
11-14 | 268 | 15,8 | 11 | 4,1 | 257 | 95,9 | ||||
15-18 | 361 | 21,3 | 23 | 6,4 | 338 | 93,6 | ||||
19-22 | 716 | 42,4 | 53 | 7,4 | 663 | 92,6 | ||||
Faixa etária II (em anos) | 2-10 | 348 | 20,6 | 17 | 10,4 | 331 | 89,6 | 0,172 | ||
11-18 | 629 | 37,2 | 34 | 10,5 | 595 | 89,5 | ||||
19-22 | 716 | 42,2 | 53 | 7,4 | 663 | 92,6 | ||||
Sexo | Feminino | 958 | 56,6 | 63 | 6,6 | 895 | 93,4 | 0,397 | ||
Masculino | 735 | 43,4 | 41 | 5,6 | 694 | 94,4 | ||||
Raça/cor da pele | Branca | 572 | 33,7 | 30 | 5,2 | 542 | 94,8 | 0,611 | ||
Parda | 799 | 47,2 | 52 | 6,5 | 747 | 93,5 | ||||
Preta | 294 | 17,4 | 21 | 7,1 | 273 | 92,9 | ||||
Amarela ou indígena | 28 | 1,7 | 1 | 3,6 | 27 | 96,4 | ||||
Número de moradores no domicílio | 1 | 86 | 5,1 | 6 | 7,0 | 80 | 93,0 | 0,483 | ||
2 | 281 | 16,6 | 19 | 6,8 | 262 | 93,2 | ||||
3 | 482 | 28,5 | 24 | 5,0 | 458 | 95,0 | ||||
4 | 456 | 26,9 | 25 | 5,5 | 431 | 94,5 | ||||
≥5 | 388 | 22,9 | 30 | 7,7 | 358 | 92,3 | ||||
Maior escolaridade do domicílio | Analfabeto | 24 | 1,4 | 2 | 8,3 | 22 | 91,7 | 0,157 | ||
Ensino fundamental | 358 | 21,1 | 25 | 7,0 | 333 | 93,0 | ||||
Ensino médio | 790 | 46,7 | 56 | 7,1 | 734 | 92,9 | ||||
Superior completo | 342 | 20,2 | 16 | 4,7 | 326 | 95,3 | ||||
Superior incompleto | 179 | 10,6 | 5 | 2,8 | 174 | 97,2 |
a) Soma dos percentuais total em coluna; b) Soma dos percentuais das categorias positivo e negativo em linha; c) P-valor pelo teste qui-quadrado de Pearson.
Comorbidades | Total (n=1.693) | Positivo (n=104) | Negativo (n=1.589) | p-valora | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||||
Asma | 257 | 15,2 | 13 | 12,5 | 244 | 15,4 | 0,432 | ||
Hipertensão arterial sistêmica | 193 | 11,4 | 21 | 20,2 | 172 | 10,8 | 0,004 | ||
Obesidade | 133 | 7,9 | 15 | 14,4 | 118 | 7,4 | 0,010 | ||
Diabetes mellitus | 86 | 5,1 | 9 | 8,7 | 77 | 4,8 | 0,086 | ||
Doença cardiovascular | 63 | 3,7 | 5 | 4,8 | 58 | 3,7 | 0,546 | ||
Neoplasia | 20 | 1,2 | 3 | 2,9 | 17 | 1,1 | 0,097 | ||
Insuficiência renal | 14 | 0,8 | 1 | 1,0 | 13 | 0,8 | 0,876 |
a) P-valor pelo teste qui-quadrado de Pearson.
Nota: Todos os percentuais apresentados são relativos à presença da comorbidade no total, positivos e negativos.
Na população estudada, somente 242 (14,3%) procuraram a unidade de saúde por apresentarem sintomas de COVID-19, sendo 29,8% entre aqueles com resultado positivo para a COVID-19 e 13,3% naqueles com resultado negativo, com significância estatística (p-valor=0,001).
A Figura 2 apresenta a frequência de sintomas reportados pelos indivíduos soropositivos. Destaca-se o sintoma ‘tosse’ como o mais prevalente, com 40,4% dos indivíduos identificados com COVID-19, seguido de anosmia (33,7%), febre (26,0%) e mialgia (24,0%).
A Tabela 2 apresenta a distribuição da amostra do estudo segundo comorbidades investigadas: 15,2% tinham asma, 11,4% hipertensão arterial sistêmica e 7,9% apresentavam obesidade. Quanto às comorbidades, foram encontradas diferenças significativas na frequência de hipertensão arterial (p valor=0,004) e obesidade (p valor = 0,010) em relação à positividade para COVID-19.
Discussão
O percentual de positividade ao teste diagnóstico de anticorpos IgM e IgG para o SARS-CoV-2 foi de 6,1% na faixa etária de 2 a 22 anos, considerando-se o total das quatro etapas do inquérito epidemiológico no Espírito Santo. Não houve diferenças estatisticamente significativas no percentual de positividade de COVID-19, segundo as características sociodemográficas desta população. Contudo alguns dados merecem atenção, dada sua relevância, considerando o retorno desse grupo às aulas presenciais nas escolas. Em primeiro lugar, o percentual de pessoas com teste positivo que não apresentaram nenhum sintoma (35,5%); em segundo lugar, o número de participantes que buscaram o serviço de saúde e não foram submetidos ao teste, porque sua faixa etária não se encontrava nos grupos com indicação de testagem; e em terceiro lugar, o fato de o sintoma ‘febre’, invariavelmente presente nos protocolos de triagem, ser encontrado em aproximadamente um quarto dos participantes que apresentaram resultado positivo.
Cumpre também salientar a existência de indivíduos que procuraram a unidade de saúde mas não foram submetidos a avaliação diagnóstica (testagem), devido à escassez de testes no Brasil em 2020, porque a norma em vigor no Espírito Santo, naquela ocasião, ainda não incluía essa faixa etária como prioritária para coleta de exames diagnósticos em caso de suspeita clínica de COVID-19.11 O achado evidencia a dificuldade de testagem no Brasil, e seu possível impacto em uma subnotificação de casos nessa faixa etária.14
Os indivíduos oligossintomáticos e os assintomáticos podem ser relevantes na cadeia de transmissão, quando há a possibilidade de retorno às atividades presenciais nas escolas, em vista da dificuldade de identificação de sinais e sintomas. A não identificação da infecção pode levar à permanência desses indivíduos infectados nas salas de aula e, somadas a isso, a eventual falta de arejamento suficiente nesses ambientes e a dificuldade em efetivar um adequado distanciamento físico entre os estudantes, e deles em relação aos professores e apoiadores, podem ser fatores facilitadores da disseminação da doença nas escolas. Outra questão a destacar, entre os sinais e sintomas relatados, foi o pequeno percentual de relato de febre, indicador mais utilizado nos protocolos de retorno às aulas escolares. A tosse e a anosmia, como principais sintomas, também devem ser levados em consideração. Além disso, protocolos de testagem nas escolas, de forma aleatória, poderiam contribuir para minimizar os surtos.15
O crescimento de positividade em todas as faixas etárias dos 2 aos 22 anos assemelhou-se bastante aos resultados gerais do inquérito16 indicando que o perfil epidemiológico da COVID-19 em crianças, adolescentes e adultos jovens tendem a refletir a prevalência da COVID-19 na comunidade da qual fazem parte. Portanto, um retorno seguro às aulas presenciais deve levar em consideração a incidência da doença na comunidade em que a escola está inserida.17
Não se observaram diferenças sociodemográficas entre os casos com teste positivo ou negativo. Porém, chama a atenção o percentual de comorbidades na faixa etária estudada, sobretudo o maior percentual de indivíduos com hipertensão arterial sistêmica e obesidade no grupo dos soropositivos. Uma metanálise encontrou COVID-19 grave em 5,1% das crianças com comorbidades e em 0,2% daquelas sem comorbidades. Na análise de efeitos aleatórios, essa diferença revelou um risco relativo de 1,79 (IC95% 1,27;2,51) de COVID-19 grave entre crianças com comorbidades.18 A preocupação com essas crianças deve-se refletir em uma política de proteção e cuidado maiores, com vistas à preservação de sua saúde, mediante programas de ação intersetorial, entre a Saúde e a Educação, para se alcançar melhor controle da doença, evitando-se casos graves ou fatais. Investir em estratégias educacionais que não impliquem ir presencialmente à escola pode ser uma alternativa, quando ainda não há vacinas para esse grupo, tampouco tratamentos específicos contra a COVID-19.9
Os resultados deste estudo revelam que as idades de 2 a 22 anos precisam ser mais bem avaliadas em relação à prevalência de infecção, adoecimento, comorbidades e óbitos. Há insuficiência de dados para fundamentar e orientar políticas públicas nesse grupo etário. Entretanto, minimizar a participação dos mais jovens na cadeia de transmissão da COVID-19, sem evidências científicas que a justifiquem, possibilita a manutenção e o acúmulo de casos, e oportuniza o surgimento de surtos da doença nas escolas.
Um trabalho realizado nos Estados Unidos avaliou como o fechamento das escolas impactou a curva de incidência da doença.19 Entre março e maio de 2020, o fechamento de escolas foi associado à redução da incidência e mortalidade de COVID-19. Apesar de os autores pontuarem a dificuldade de separar essa medida de outras intervenções não farmacológicas, os achados indicam a importância desses locais na transmissão da infecção.
Recentemente, a emergência de novas variantes do SARS-CoV-2 reacendeu na Europa o debate acerca da centralidade da Educação em relação a outras atividades, para fechamento das escolas em casos de aceleração da transmissão. A incidência de COVID-19 em ambientes escolares parece ser afetada, principalmente, pelos níveis de transmissão na comunidade.20,21 A transmissão generalizada de variantes altamente transmissíveis do SARS-CoV-2 aumentaria a probabilidade de os casos de COVID-19 aparecerem em ambientes escolares, mesmo porque essas variantes são mais transmissíveis entre os jovens, com impactos negativos profundos na saúde de estudantes, professores e funcionários. O consequente fechamento das escolas, nas localidades onde outras medidas não farmacológicas se mostrarem incapazes de controlar a transmissão local, é recomendado pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças da Europa como último recurso, uma decisão suplementar e com prazo definido. Nessas condições, espera-se que o fechamento de escolas leve a novas reduções da taxa de transmissão da doença.22
Este estudo apresenta limitações. A amostra não foi calculada para a prevalência de soropositivos segundo as faixas etárias, razão por que os percentuais de soropositivos por faixas etárias oscilam entre elas. Tão somente foi apresentada a faixa etária total do estudo, dos 2 aos 22 anos, com um dado mais consistente. Adicionada a isso, existe a limitação do próprio delineamento da pesquisa, que permite apenas identificar as crianças no domicílio no momento da coleta de dados, o que pode levar ao viés de sobrevida seletiva, excluindo casos graves que pudessem estar internados.
Entretanto, há fortalezas importantes na pesquisa: seu grande tamanho amostral na faixa etária e a avaliação de dados sobre sintomas, a procura por serviço de saúde e a presença de comorbidades, o que pode guiar a definição de diretrizes para as políticas públicas voltadas à COVID-19.
Conclui-se que o percentual de assintomáticos pode impactar na cadeia de transmissão da infecção nas escolas, e impulsionar surtos da doença. Para evitar esses surtos, é importante planejar o momento do retorno às escolas, conjugando-se o impacto negativo da falta das atividades escolares com a necessidade de manutenção da curva descendente de casos e óbitos por um período de várias semanas. Faz-se necessário, também, incluir novas abordagens para captação de sinais e sintomas que não sejam apenas a verificação de temperatura, insuficiente para predizer a doença, como os resultados sugeriram. Mais uma ação importante a recomendar é a educação em saúde com orientação específica para crianças e adolescentes não comparecerem à escola, a qualquer sinal ou sintoma de COVID-19, seja próprio, seja de algum membro da família.
O acompanhamento dos estudantes - crianças, adolescentes e jovens - e trabalhadores da Educação no retorno presencial às escolas, com rápida ação de efetivo isolamento e pronto diagnóstico da infecção por métodos moleculares, caso algum desses indivíduos apresente sintomas de COVID-19, é uma estratégia fundamental neste momento pandêmico.