Introdução
O puerpério é considerado um período de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental,1 sendo a depressão pós-parto um problema frequente nas puérperas, em nível mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão pós-parto acomete de 10% a 15% das puérperas nos países desenvolvidos, e 19% nos países em desenvolvimento1, constituindo um relevante problema de saúde pública, em razão da elevada prevalência e custos sociais.2
No Brasil, um estudo de abrangência nacional sobre depressão pós-parto realizado em 2012, constatou uma prevalência de 26% entre 23.894 mulheres estudadas.2 Contudo, outros estudos conduzidos em diferentes regiões brasileiras têm mostrado níveis de prevalência que variam de 7%3, como observado na cidade do Recife, PE, em 2008, até 39%, observado na cidade de Vitória, ES, em 2006.4
Problemas relacionados à depressão afetam negativamente a saúde da mãe e do bebê.5 Puérperas com depressão pós-parto apresentam níveis significativamente maiores de ansiedade, estresse e fadiga, comprometimento da autoestima, da qualidade de vida e das relações sociais.6 Mulheres que apresentam condições graves de depressão pós-parto referem maior prevalência de ideação suicida, ou seja, pensam, idealizam, planejam e desejam tirar a própria vida.5 Também são observados prejuízos no vínculo mãe-bebê, no desempenho maternal e na prática de amamentação.6
Características individuais, socioeconômicas e comportamentais das mulheres, como ser jovem, multípara, apresentar histórico de depressão anterior e/ou histórico familiar de depressão foram associadas a maior prevalência de sintomas depressivos pós-parto.7 Ademais, estar no grupo de menor renda, fazer uso de bebida alcoólica, ter uma gravidez não planejada, experiência negativa no parto e história de violência por parceiro íntimo são fatores associados a maior ocorrência de depressão pós-parto.2,8
A experiência de violência é um fenômeno corrente em todas as etapas da vida das mulheres, inclusive nos períodos gestacional e pós-puerperal, representando uma grave questão de Saúde Pública.9 Estudo de coorte, também conduzido em Recife, observou chances de quadro de depressão pós-parto 113% maiores em mulheres submetidas a violência psicológica na gestação, e 183% maiores em mulheres submetidas a violência psicológica e física ou sexual na gestação.10 Ao se considerarem os diversos efeitos da violência, especialmente a depressão pós-parto, o setor Saúde tem o compromisso de se apresentar como espaço de acolhimento na identificação dos casos de violência. Na abordagem e atendimento às mulheres vítimas de violência pelos serviços de saúde, devem-se adotar estratégias que promovam o rompimento do ciclo da violência.11
Diante do exposto, torna-se fundamental a condução de novos estudos que busquem identificar a associação da violência com a depressão pós-parto e, reforçar essa evidência considerando-se a complexidade desses dois agravos.
Este estudo teve por objetivo analisar a prevalência de sintomas depressivos pós-parto entre puérperas e sua associação com a violência.
Métodos
Trata-se de estudo transversal realizado na Maternidade Municipal de Cariacica, estado do Espírito Santo, Brasil, conduzido no período de agosto a outubro de 2017.
O município de Cariacica está situado na região metropolitana de Vitória, capital do Espírito Santo, conta com uma população de 348.738 habitantes e apresenta índice de desenvolvimento humano municipal de 0,718.12
A maternidade onde se desenvolveu o estudo, única maternidade pública de Cariacica, é unidade de referência no acolhimento e assistência às gestantes de risco habitual, dispondo de 45 leitos de enfermaria de obstetrícia e quatro de pré-parto. Na instituição, são ofertados serviços ambulatoriais, atendimentos às urgências e emergências obstétricas, e internação, pelo Sistema Único de Saúde.
Puérperas que haviam tido parceiro íntimo durante a gestação, com minimamente 24 horas pós-parto, qualquer que fosse a via, e com feto nascido vivo e pesando mais que 500 gramas, foram incluídas no estudo. Foi definido como ‘parceiro íntimo’ todo ex-companheiro, companheiro ou namorado, independentemente de união formal, com quem as participantes tiveram relações sexuais. Puérperas que, no momento da entrevista, apresentassem dificuldade de audição, linguagem ou deficit cognitivo que impedisse a apropriada compreensão do estudo foram excluídas.
Para o rastreamento e mensuração dos sintomas depressivos pós-parto, desfecho do estudo, utilizou-se a escala de depressão pós-natal de Edimburgo (EDPS), utilizada neste estudo como variável dependente, analisada de forma dicotômica (sim; não).
As variáveis independentes adotadas foram:
a) Idade (em anos: 14-19; 20-29; 30-44);
b) Raça/cor da pele (branca; negra; parda; outras);
c) Religião (sim; não);
d) Escolaridade (até o ensino fundamental completo; até o ensino médio completo; até o ensino superior completo);
e) Situação conjugal (casada; solteira/namorando; ou em união consensual, qual seja, vivendo com o parceiro mas não legalmente casada);
f) Renda familiar total [em salários mínimos de 2017 (R$ 937,00): até 1; 2 a 3; 4 ou mais];
g) Número de consultas de pré-natal (até 5; 6 ou mais);
h) Doença na gestação (sim; não);
i) Preferência pelo sexo do bebê (sim; não);
j) Tipo de parto (cirúrgico; vaginal);
k) Número de gestações (1; 2-3; 4 ou mais);
l) Histórico de aborto (sim; não);
m) Desejo de abortar (sim; não);
n) Uso de bebida alcoólica (sim, não);
o) Uso de drogas (sim; não);
p) Uso de cigarro (sim; não);
q) Violência sexual antes dos 15 anos de idade (sim; não);
r) Violência por parceiro íntimo na vida (sim; não);
s) Violência por parceiro íntimo na gestação (sim; não).
A coleta de dados teve início em agosto de 2017 e foi concluída no mês de outubro do mesmo ano; realizou-se no horário entre 7 e 12 horas da manhã, em todos os dias da semana, com as puérperas internadas que atenderam aos critérios de inclusão. Um questionário estruturado, padronizado, foi aplicado pelas entrevistadoras em local privativo e de forma individual, com uma média de 50 minutos de duração. Inicialmente, foram coletadas informações sociodemográficas, ginecológicas e obstétricas, além de comportamentais. Após a coleta dessas variáveis, perguntou-se sobre a experiência de violência sexual dessas mulheres antes dos 15 anos; na ocasião, foi aplicado o instrumento World Health Organization Violence Against Women para rastrear a violência sofrida por ela ao longo da vida e durante a gravidez, causada pelo parceiro íntimo. Esse instrumento, que também foi validado para uso no Brasil, tem por finalidade identificar as tipologias de violências contra as mulheres, a partir de suas respostas a 13 perguntas,13 sendo considerada ‘vivência de violência’ quando se obtém resposta afirmativa a qualquer uma delas.
Os sintomas depressivos pós-parto, desfecho do estudo, foi mensurado pela EDPS. Validada para utilização no Brasil, essa escala permite rastrear os sintomas depressivos pós-parto a partir de dez perguntas com quatro opções de respostas e pontuação variável, de 0 a 3, conforme a existência ou intensidade de sinais e sintomas: redução do desempenho, perda do prazer, distúrbios do sono, humor deprimido, sentimento de culpa, ideias de morte e suicídio.14 As puérperas que atingiram pontuação final maior ou igual a 10 foram consideradas com sintomas depressivos pós-parto.
Para prevenir a ocorrência de viés do observador, as entrevistadoras, todas alunas de graduação de curso da área da Saúde, participaram de um treinamento com o objetivo de padronizar as entrevistas e a aplicação dos questionários, previamente à coleta de dados. Logo, foi realizado um estudo-piloto na mesma maternidade, com 50 puérperas, não contabilizadas na amostra do estudo principal, embora suas entrevistadoras tenham sido avaliadas quanto à habilidade e aplicação do questionário. Do mesmo modo, para garantir o controle de qualidade, um supervisor de ensino superior completo participou da coleta de dados.
Para o cálculo da amostra do estudo, foram adotados os seguintes parâmetros: frequência esperada do evento de 20% no grupo exposto e de 5%, no grupo não exposto; margem de erro de 5%; nível de 95% de confiança e poder de 80%, com o propósito de analisar a associação entre sintomas depressivos pós-parto e a violência na gravidez. O tamanho estimado da amostra foi de 235 participantes, aos quais se acrescentou 10% para eventuais perdas e 30% para o controle dos fatores de confusão na análise multivariável. Dessa forma, o tamanho final previsto para a amostra foi de 330 puérperas.
A análise dos dados foi realizada por intermédio do programa Stata 16.0. Os resultados da análise descritiva foram retratados em frequências absolutas e relativas, e valores do intervalo de confiança de 95% (IC95%). Para a análise bivariada, realizou-se o teste qui-quadrado de Pearson ou o teste exato de Fisher. Para obter a associação entre os sintomas depressivos pós-parto e as variáveis de exposição, foi aplicado o teste de Wald, com nível de significância de 5%. Foram calculadas as razões de prevalências (RP), brutas e ajustadas, e seus IC95%, conforme modelo de regressão de Poisson com variância robusta. A análise ajustada teve por base o modelo ecológico de Heise, que auxilia a compreensão da natureza multifacetada da violência.15 Nesse sentido, o estudo categorizou as variáveis nos seguintes níveis hierárquicos (Quadro 1):
Nível 1 - Características sociodemográficas
Nível 2 - Características gineco-obstétricas
Nível 3 - Características comportamentais
Nível 4 - Experiência de violência sexual
Nível 5 - História de violência por parceiro íntimo na vida
Nível 6 - História de violência por parceiro íntimo na gestação
Nível 1 | Características sociodemográficas | Idade |
Religião | ||
Escolaridade | ||
Situação conjugal | ||
Renda familiar total | ||
Nível 2 | Características gineco-obstétricas | Número de consultas pré-natal |
Doença na gestação | ||
Preferência pelo sexo do bebê | ||
Desejo de abortar | ||
Nível 3 | Características comportamentais | Uso de bebida alcoólica |
Uso de drogas | ||
Uso de cigarro | ||
Nível 4 | Experiência de violência sexual | Violência sexual antes dos 15 anos de idade |
Nível 5 | História de violência por parceiro íntimo na vida | Violência por parceiro íntimo ao longo da vida |
Nível 6 | História de violência por parceiro íntimo na gestação | Violência por parceiro íntimo na gestação |
Em cada um desses níveis, foram incluídas, nas análises multivariadas, as variáveis com nível de significância <0,20 na análise bivariada, sendo consideradas associadas as variáveis com p-valor <0,05.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes/Universidade Federal do Espírito Santo, por meio do Parecer nº 2.149.430, emitido em 30 de junho de 2017; Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 69026517.2.0000.5071. As puérperas, que consentiram em responder ao conjunto de questões, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido como condição para serem entrevistadas. Após o término da entrevista, foi entregue às participantes um folheto informativo com as referências dos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência no município.
Resultados
Entre 330 mulheres convidadas a participar do estudo, todas foram entrevistadas; não houve perdas ou recusas. Assim, foram analisadas 330 mulheres usuárias da maternidade pública de Cariacica, ES.
Do total de participantes, 121 apresentavam sintomas depressivos pós-parto, obtendo-se uma prevalência de 36,7% (IC95% 31,6;42,0) entre as participantes (dado não incluído em tabela). A maioria das puérperas tinham idade entre 20 e 29 anos (52,4%), declaravam-se pardas (57,0%), praticavam alguma religião (72,1%), tinham escolaridade até o ensino fundamental completo (59,7%) e viviam uma união consensual com o parceiro (52,1%); para 46,4% delas, a renda familiar total se enquadrava entre 2 e 3 salários mínimos (Tabela 1).
A maioria das participantes frequentou seis ou mais consultas de pré-natal (60,0%), não apresentou doença na gestação (77,6%), não teve preferência pelo sexo do bebê (51,8%) e o tipo de parto mais frequente foi o vaginal (64,2%); 44,5% tiveram duas ou três gestações; 78,5% afirmaram não ter histórico de aborto; e 16,1% desejaram abortar. Durante a gravidez, 10,3% fizeram uso de bebida alcoólica; 9,7%, uso de cigarro; e 3,3%, uso de drogas (Tabela 1).
Variáveis | n (%) | Prevalência % (IC95%)a | p-valor |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 0,014b | ||
14-19 | 82 (24,9) | 48,8 (38,1;59,6) | |
20-29 | 173 (52,4) | 35,3 (28,5;42,7) | |
30-44 | 75 (22,7) | 26,7 (17,8;37,9) | |
Raça/cor da pele | 0,556b | ||
Branca | 40 (12,1) | 37,5 (23,8;53,5) | |
Negra | 82 (24,8) | 41,5 (31,2;52,5) | |
Parda | 188 (57,0) | 35,6 (29,1;42,8) | |
Outras | 20 (6,1) | 25,0 (10,5;48,6) | |
Religião | 0,064b | ||
Não | 92 (27,9) | 44,6 (34,7;54,9) | |
Sim | 238 (72,1) | 33,6 (27,9;39,9) | |
Escolaridade | 0,003b | ||
Até o ensino fundamental completo | 197 (59,7) | 44,2 (37,3;51,2) | |
Até o ensino médio completo | 125 (37,9) | 25,6 (18,7;34,0) | |
Até o ensino superior completo | 8 (2,4) | 25,0 (5,6;65,0) | |
Situação conjugal | 0,009b | ||
Casada | 93 (28,2) | 26,9 (18,8;36,9) | |
União consensual | 172 (52,1) | 36,6 (29,7;44,1) | |
Solteira/namorando | 65 (19,7) | 50,8 (38,7;62,8) | |
Renda familiar total (salários mínimos) | 0,004b | ||
Até 1 | 146 (44,2) | 45,9 (37,9;54,1) | |
2-3 | 153 (46,4) | 31,4 (24,5;39,2) | |
4 ou mais | 31 (9,4) | 19,3 (8,8;37,3) | |
Número de consultas de pré-natal | 0,001b | ||
Até 5 | 132 (40,0) | 47,7 (39,3;56,3) | |
6 ou mais | 198 (60,0) | 29,3 (23,3;36,0) | |
Doença na gestação | 0,031b | ||
Não | 256 (77,6) | 33,6 (28,0;39,6) | |
Sim | 74 (22,4) | 47,3 (36,1;58,7) | |
Preferência pelo sexo do bebê | 0,027b | ||
Não | 171 (51,8) | 30,9 (24,5;38,4) | |
Sim | 159 (48,2) | 42,8 (35,2;50,6) | |
Tipo de parto | 0,949b | ||
Cirúrgico | 118 (35,8) | 36,4 (28,2;45,5) | |
Vaginal | 212 (64,2) | 36,8 (30,5;43,5) | |
Número de gestações | 0,584b | ||
1 | 126 (38,2) | 34,1 (26,3;42,9) | |
2-3 | 147 (44,5) | 36,7 (29,3;44,9) | |
4 ou mais | 57 (17,3) | 42,1 (29,2;55,3) | |
Histórico de aborto | 0,270b | ||
Não | 259 (78,5) | 35,14 (29,5;41,2) | |
Sim | 71 (21,5) | 42,2 (31,2;54,1) | |
Desejo de abortar | <0,001b | ||
Não | 277 (83,9) | 30,3 (25,2;36,0) | |
Sim | 53 (16,1) | 69,8 (56,1;80,7) | |
Uso de bebida alcoólica | 0,001b | ||
Não | 296 (89,7) | 33,8 (28,6;39,4) | |
Sim | 34 (10,3) | 61,8 (44,4;76,6) | |
Uso de drogas | 0,059b | ||
Não | 319 (96,7) | 35,3 (30,6;41,2) | |
Sim | 11 (3,3) | 63,6 (32,4;86,4) | |
Uso de cigarro | 0,005b | ||
Não | 298 (90,3) | 34,2 (29,0;39,8) | |
Sim | 32 (9,7) | 59,4 (41,6;75,0) | |
Violência sexual antes dos 15 anos de idade | 0,019c | ||
Não | 302 (91,5) | 34,8 (29,6;40,3) | |
Sim | 28 (8,5) | 57,1 (38,3;74,1) | |
Violência por parceiro íntimo ao longo da vida | <0,001b | ||
Não | 180 (54,6) | 22,2 (16,7;28,9) | |
Sim | 150 (45,4) | 54,0 (45,9;61,9) | |
Violência por parceiro íntimo na gestação | <0,001b | ||
Não | 291 (88,2) | 32,0 (26,8;37,6) | |
Sim | 39 (11,8) | 71,8 (55,6;83,8) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%; b) Teste qui-quadrado de Pearson; c) Teste exato de Fisher.
Maior prevalência de sintomas depressivos pós-parto foi observada entre puérperas de 14-19 anos (48,8%; p=0,014), que estudaram até o ensino fundamental completo (44,2%; p=0,003), solteiras (50,8%; p=0,009), com renda familiar total de até 1 salário mínimo (45,9%; p=0,004), que realizaram de até 5 consultas de pré-natal (47,7%; p=0,001), com relato de alguma doença na gestação (47,3%; p=0,031), que tiveram preferência pelo sexo do bebê (42,8%; p=0,027) e não desejaram abortar (69,8%; p<0,001). As maiores prevalências de sintomas depressivos pós-parto foram observadas em mulheres que fizeram uso de álcool (61,8%; p=0,001) e cigarro (59,4%; p=0,005) na gestação (Tabela 1).
Nota-se que 8,5% das mulheres entrevistadas referiram ter sofrido violência sexual antes dos 15 anos de idade, 45,4% retrataram histórico de violência por parceiro ao longo da vida e aproximadamente 12,0% foram vítimas de violência por parceiro íntimo na gestação. O estudo identificou maiores prevalências de sintomas depressivos pós-parto entre as participantes que responderam ter vivenciado alguma situação de violência (p<0,05) (Tabela 1).
Puérperas solteiras/namorando apresentaram mais sintomas depressivos pós-parto (RP=1,75 - IC95% 1,17;2,64), comparadas às casadas. As faixas de renda familiar total de 2 a 3 salários mínimos (RP=0,70 - IC95% 0,52;0,93) e 4 salários mínimos ou mais (RP=0,45 - IC95% 0,21;0,96) revelaram-se fatores de proteção: mulheres pertencentes aos grupos de maior renda apresentaram menores prevalências do desfecho em estudo. Maior prevalência de sintomas depressivos pós-parto foi verificado entre as participantes que apresentaram desejo de abortar (RP=1,96 - IC95% 1,50;2,56) e que fizeram uso de bebida alcoólica na gestação (RP=1,37 - IC95% 1,00;1,86) (Tabela 2).
Variáveis | RPa bruta | IC95%b | p-valorc | RPa ajustada | IC95%b | p-valorc |
---|---|---|---|---|---|---|
Nível 1 - Características sociodemográficas | ||||||
Idade (anos) | 0,013 | 0,329 | ||||
14-19 | 1,00 | 1,00 | ||||
20-29 | 0,72 | (0,54;0,98) | 0,86 | (0,62;1,18) | ||
30-44 | 0,55 | (0,35;0,85) | 0,70 | (0,43;1,13) | ||
Religião | 0,057 | 0,547 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 0,75 | (0,56;1,00) | 0,92 | (0,69;1,22) | ||
Escolaridade | 0,005 | |||||
Até o ensino fundamental completo | 1,00 | 1,00 | 0,119 | |||
Até o ensino médio completo | 0,58 | (0,41;0,81) | 0,69 | (0,48;0,99) | ||
Até o ensino superior completo | 0,57 | (0,17;1,90) | 1,03 | (0,28;3,86) | ||
Situação conjugal | 0,008 | 0,012 | ||||
Casada | 1,00 | 1,00 | ||||
União consensual | 1,36 | (0,92;2,01) | 1,24 | (0,84;1,83) | ||
Solteira/namorando | 1,88 | (1,25;2,85) | 1,75 | (1,17;2,64) | ||
Renda familiar total (salários mínimos) | 0,006 | 0,012 | ||||
Até 1 | 1,00 | 1,00 | ||||
2-3 | 0,68 | (0,51;0,97) | 0,70 | (0,52;0,93) | ||
4 ou mais | 0,42 | (0,20;0,88) | 0,45 | (0,21;0,96) | ||
Nível 2 - Características gineco-obstétricas | ||||||
Número de consultas de pré-natal | 0,001 | 0,051 | ||||
Até 5 | 1,00 | 1,00 | ||||
6 ou mais | 0,61 | (0,46;0,81) | 0,75 | (0,57;1,00) | ||
Doença na gestação | 0,024 | 0,219 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,40 | (1,05;1,89) | 1,19 | (0,90;1,58) | ||
Preferência pelo sexo do bebê | 0,028 | 0,083 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,38 | (1,03;1,84) | 1,28 | (0,97;1,68) | ||
Desejo de abortar | <0,001 | <0,001 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 2,30 | (1,79;2,96) | 1,96 | (1,50;2,56) | ||
Nível 3 - Características comportamentais | ||||||
Uso de bebida alcoólica | <0,001 | 0,047 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,83 | (1,34;2,49) | 1,37 | (1,00;1,86) | ||
Uso de drogas | 0,016 | 0,758 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,78 | (1,11;2,85) | 1,10 | (0,61;1,98) | ||
Uso de cigarro | 0,001 | 0,312 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,73 | (1,25;2,40) | 1,18 | (0,85;1,63) | ||
Nível 4 - Experiência de violência sexual | ||||||
Violência sexual antes dos 15 anos | 0,006 | 0,125 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 1,64 | (1,15;2,35) | 1,37 | (0,92;2,03) | ||
Nível 5 - História de violência por parceiro íntimo na vida | ||||||
Violência por parceiro íntimo ao longo da vida | <0,001 | <0,001 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 2,43 | (1,78;3,32) | 1,94 | (1,38;2,73) | ||
Nível 6 - História de violência por parceiro íntimo na gestação | ||||||
Violência por parceiro íntimo na gestação | <0,001 | 0,016 | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 2,25 | (1,73;2,91) | 1,41 | (1,07;1,85) |
a) RP: razão de prevalências; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) Teste de Wald.
A violência provocada por parceiro íntimo ao longo da vida (RP=1,94 - IC95% 1,38;2,73) e, especificamente, a praticada por parceiro íntimo durante a gestação (RP=1,41 - IC95% 1,07;1,85), foram eventos associados a maiores prevalências de sintomas depressivos pós-parto (Tabela 2).
Discussão
Cerca de um terço das participantes do estudo apresentou sintomas depressivos pós-parto, tendo o evento sido mais frequentes entre as que se declararam solteiras, que expressaram desejo pelo abortamento, que consumiram álcool na gestação e com histórico de violência praticada por parceiro íntimo.
Esta pesquisa baseou-se em amostra de conveniência de mulheres atendidas em maternidade pública de Cariacica, ES, não sendo representativa da população de puérperas em geral. Outra limitação do estudo reside na mensuração de violência sexual ocorrida antes dos 15 anos de idade somente. Além de possível viés de memória, esse recorte na história sexual não permitiu aferir tal violência em outros momentos de vida dessas mulheres. Por sua vez, a escolha da coleta de dados no pós-parto imediato, quando as puérperas se encontram em estado de vulnerabilidade emocional e física, pautada na EDPS, pode ter interferido tanto na mensuração dos sintomas depressivos como na definição da temporalidade de seu surgimento, no momento anterior ou próximo ao parto. Contudo, destaca-se que, em pesquisas desse tipo, é comum a aplicação da EDPS no pós-parto imediato.8
Uma revisão sistemática com metanálise, realizada no ano de 2018, com 52 artigos de diferentes continentes, e que utilizaram instrumentos validados para rastreamento de sintomas depressivos pós-parto, encontrou prevalência de 26% no Oriente Médio, 8% na Europa, 19% na América do Sul e 16% na América do Norte.16
No presente estudo, verificou-se elevada prevalência de puérperas com esses sintomas. Isso pode ser identificado ao se comparar essa prevalência à de uma pesquisa transversal realizada no ano 2000, em Pelotas, RS, com 410 participantes, entre as quais se observou prevalência de 19% (IC95% 15,7;23,3%) de sintomas depressivos no período pós-natal imediato.17 Em 2013, no município de Rio Grande, RS, estudo realizado com 2.687 puérperas até 48 horas pós-parto encontrou uma prevalência de 14% (IC95% 12,9;15,6%).7 Em Salvador, BA, no ano de 2017, uma pesquisa com 151 mulheres no período pós-natal tardio e remoto revelou prevalência de 19%.18 Estudo com 23.894 puérperas de todo o Brasil observou prevalência de 26% de sintomas depressivos maternos entre 6 e 18 meses pós-parto.2 Achado semelhante ao de Cariacica foi observado em Vitória, ES, onde 39% das mulheres apresentaram sintomas depressivos pós-parto.19 Vale destacar a alta prevalência de sintomas depressivos pós-parto encontrada nessa pesquisa quando comparada ao estudo realizado na cidade de Recife, com 1.045 puérperas, no qual identificou-se prevalência de 25% (IC95% 23,2;28,6%) desses sintomas.10
A alta prevalência de sintomas depressivos no pós-parto, aqui evidenciada, aponta para o quão necessária e importante é a avaliação de saúde mental em mulheres grávidas e/ou puérperas, de forma sistematizada, levando-se em consideração a possibilidade de a depressão pós-parto estar vigente e comprometer o relacionamento conjugal e familiar, o andamento de construção do vínculo entre mãe e filho e, desse modo, o desenvolvimento cognitivo, psicossocial e motor da criança.20,21
Os sintomas depressivos pós-parto foram mais prevalentes em puérperas solteiras. Estudo prospectivo conduzido em Brasília no ano de 2011, com 107 puérperas, observou resultado semelhante, principalmente atribuído à maior frequência de mulheres solteiras a retratar sintomas depressivos de forma persistente, antes e depois do parto.22 Sobre a anteriormente citada pesquisa de Rio Grande e suas 2.687 puérperas participantes, evidenciou-se, entre as que conviviam com marido ou companheiro, menor chance de apresentar sintomas depressivos.7 Do mesmo modo, em 2004, uma pesquisa transversal, realizada com puérperas usuárias da Atenção Primária à Saúde na cidade de São Paulo, evidenciou o efeito protetor do apoio do marido na manifestação de sintomas depressivos pós-parto: quanto maior o apoio do parceiro, menor a prevalência desses sintomas entre puérperas.23
Outro achado do presente estudo corresponde ao efeito protetor da renda familiar. Puérperas com maior renda apresentaram 30% (2-3 salários mínimos) e 55% (≥4 salários mínimos) menor prevalência de sintomas depressivos pós-parto. Estudo de alcance nacional evidenciou chance 1,7 vez maior de puérperas brasileiras manifestarem sintomas depressivos pós-parto quando pertencentes a classe econômica inferior.2 Os contextos econômico e financeiro, com frequência, causam uma apreensão à futura mãe: a renda familiar será insuficiente, diante dos gastos decorrentes da chegada do bebê? Trata-se de um fator potencial para o desenvolvimento de sintomas depressivos.24
Resultado de metanálise baseada em 32 estudos de coorte que relacionavam violência materna com sintomas depressivos pós-parto, no período 2002-2017, que envolveu 177.531 participantes da Ásia, América, Oceania, Europa e África, revelou que as puérperas que haviam sido expostas a violência doméstica tiveram maior chance de apresentar sintomas depressivos pós-parto.25 Na Austrália, segundo uma pesquisa transversal realizada em 2010 com 2.572 puérperas, observou-se que, quando estas foram expostas a violência pelo parceiro, além de mais propensas a apresentar sintomas depressivos, tiveram maiores chances de apresentar ansiedade pós-natal.26
Outro estudo transversal, este nos Estados Unidos, produzido no âmbito de um programa de suporte materno-infantil da cidade de Nova Orleans, no período entre 2010 e 2012, com 398 puérperas, também evidenciou prevalências de sintomas depressivos pós-parto cerca de quatro vezes maiores em vítimas de pelo menos um episódio de violência emocional ou violência física praticada pelo parceiro durante a gravidez.8 Tais resultados corroboram os achados do presente estudo: a violência por parceiro íntimo, independentemente de ter sido ao longo da vida ou durante a gestação, elevou a prevalência de sintomas depressivos.
Vítimas de violência que estão em situação de isolamento social causado pelo parceiro e que não recebem apoio social, fator já demonstrado como protetor, podem ter os sintomas depressivos agravados.27 Em vista disso, faz-se necessário que os profissionais de saúde disponham de meios para identificar e rastrear a violência contra as mulheres durante a assistência, além de tratar impactos e complicações causadas pela ocorrência de violência, realizar o manejo e acompanhamento adequado dos casos e sua notificação.28
Para tanto, faz-se necessário buscar uma articulação intersetorial capaz de promover a identificação de mulheres sob maior risco de situações de violência e, assim, ofertar manejo adequado aos casos.29 O apoio psicossocial e o direcionamento adequado das situações de violência podem ser mais bem organizados e postos em prática com a devida agilidade, desde que sejam vistos como prioridades na aplicação de recursos públicos, humanos e financeiros. A consolidação, capacitação e ampliação de uma rede integrada de trabalhadores especializados dos serviços da Saúde, Assistência Social e Segurança Pública é fundamental para a abordagem e resolução dos casos de violência.29 Cabe destacar que a notificação dos casos é de essencial importância, porque auxilia a estruturação e cumprimento de políticas públicas para o enfrentamento da violência, como também as práticas de prevenção e proteção.23
Este trabalho reafirma o potencial da assistência prestada por uma equipe multidisciplinar, na detecção, assistência, acompanhamento e prognóstico de situações que geram malefícios para as mulheres e, principalmente, para as relações mãe-bebê, a exemplo de alterações mentais e das ocorrências de violência. Ressalta-se a importância de uma atenção pré-natal e puerperal abrangente, qualificada e sensível a tais situações, que não foque apenas o aspecto físico e o desenvolvimento fetal, mas também traga a mulher para uma posição de protagonismo do atendimento a ser prestado. Especialmente no período gestacional ou puerperal, a depressão pós-parto e situações de violência, ambas questões de Saúde Pública, podem levar a outras complicações de saúde para mulheres e suas crianças.
Conclui-se que os sintomas depressivos pós-parto apresentaram alta prevalência, o que reforça sua importância como problema de Saúde Pública. Determinadas características mostraram-se associadas às maiores prevalências de sintomas depressivos pós-parto: ser solteira, ter desejado abortar, ter consumido bebida alcoólica durante a gestação, ter apresentado uma renda familiar total de até 1 salário mínimo e ter vivenciado violência praticada por parceiro íntimo ao longo da vida ou durante a gestação.