Introdução
Estima-se que o envenenamento por escorpião, ou escorpionismo, seja responsável por 1,5 milhão de novos casos e 2.600 óbitos no mundo, anualmente.1 Na América Latina, principalmente no México, Brasil, Guiana e Venezuela, a simultaneidade entre alta incidência e gravidade clínica é atribuída aos escorpiões dos gêneros Tityus e Centruroides.2 No Brasil, os casos graves relacionam-se a quatro espécies de importância médica: T. serrulatus, T. obscurus, T. bahiensis e T. stigmurus.3 A espécie T. serrulatus se destaca pela toxicidade e abundância em ambientes urbanos.2
No Brasil, na década de 2007 a 2017, observou-se aumento de 234,4% nos acidentes escorpiônicos, de 37.370 (2007) para 124.982 casos (2017).4 Os casos costumam ser mais frequentes em indivíduos do sexo masculino, na idade de 20 a 49 anos, escolaridade de 4 a 7 anos de estudo, acidentados nos membros superiores e residentes em áreas urbanas, enquanto os óbitos são registrados com mais frequência no sexo masculino, na idade até 9 anos e em indivíduos acidentados na zona rural.5
Os escorpiões são pequenos artrópodes sinantrópicos, cosmopolitas, carnívoros, de hábito noturno, cujas presas podem ser desde outros escorpiões até insetos, como grilos, gafanhotos, cupins e baratas.2 Durante o forrageio, os escorpiões buscam presas localizadas em acúmulos de matéria orgânica e entulhos; e em residências, onde podem se esconder em locais escuros como frestas, entre as roupas e dentro de calçados.2,6
Por conta dessas características comportamentais e predileções alimentares dos escorpiões, o escorpionismo também está relacionado a atitudes individuais, que contribuem para a ocorrência e permanência desse aracnídeo no ambiente, a exemplo do acúmulo de lixo e da não realização de ações profiláticas: uso de equipamentos de proteção individual e inspeção de trajes.6 Contudo, essas justificativas culpabilizam o indivíduo pelo agravo, não exploram o papel dos determinantes sociais em saúde, como aspectos socioeconômicos, ocupacionais e precariedade de infraestrutura/saneamento, identificados nos perfis epidemiológicos de escorpionismo.5,7-9
Apesar do acúmulo de evidências acerca dos aspectos dos indivíduos que favorecem a ocorrência do acidente escorpiônico, permanece inexplorado o papel do trabalho e demais descritores municipais capazes de interferir na ocorrência do agravo.
Diante do cenário exposto, o estudo teve como objetivo analisar a associação ecológica das características socioeconômicas, ocupacionais e de infraestrutura/saneamento com a ocorrência de escorpionismo no Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico sobre a ocorrência do escorpionismo, cujas unidades de análise foram os municípios brasileiros.
Localizado na América do Sul, em 2020, o Brasil registrou uma área aproximada de 8.510.295,914 km2, com 211.049.519 habitantes, densidade demográfica de 25,25 hab./km2 e 5.570 municípios distribuídos em suas cinco macrorregiões geográficas: Nordeste, Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. O país faz divisa territorial com outros 11 países e apresenta vasta área litorânea, face ao oceano Atlântico. A maioria da população brasileira reside em zonas urbanas (86,8%) e apresenta uma expectativa de vida em torno dos 75,9 anos.10
Foram elegíveis para o estudo apenas os municípios emancipados até 2007, para que todos os municípios-objeto da pesquisa estivessem presentes desde o primeiro ano de observação do estudo. Seis municípios não foram incluídos nessa investigação por terem se emancipado a partir de 2007.
A fonte de dados para os casos de escorpionismo notificados foi o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). As variáveis municipais foram obtidas do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e as estimativas populacionais, calculadas pelo mesmo IBGE (Quadro 1). Todas as fontes de dados foram acessadas eletronicamente, em 20 de agosto de 2020.11,12
Descritor municipal | Variáveis municipais | Descrição da variável municipal |
---|---|---|
Ocupacional | Homens ocupados no serviço doméstico | Percentual de homens ocupados no serviço doméstico |
Mulheres ocupadas no serviço doméstico | Percentual de mulheres ocupadas no serviço doméstico | |
Homens ocupados na agropecuária | Percentual de homens ocupados na agricultura | |
Mulheres ocupadas na agropecuária | Percentual de mulheres ocupadas na agricultura | |
Homens ocupados na construção civil | Percentual de homens ocupados na construção civil | |
Mulheres ocupadas na construção civil | Percentual de mulheres ocupadas na construção civil | |
Socioeconômico | Renda per capita anual | Renda média por pessoa (moeda: Real) |
População pobre | Percentual da população em situação de pobreza | |
Índice de desenvolvimento humano (IDH) | IDH transformado em valor percentual | |
Índice de vulnerabilidade socia (IVS) | IVS transformado em valor percentual | |
Taxa de analfabetismo | Percentual da população analfabeta com idade ≥18 anos | |
Expectativa de anos de estudo | Média de anos de estudo que uma geração de crianças teria aos 18 anos | |
Taxa de desocupação | Percentual de pessoas desempregadas em idade economicamente ativa | |
Infraestrutura/ Saneamento | Domicílios com abastecimento de água | Percentual de domicílios com abastecimento de água |
Domicílios com coleta de lixo | Percentual de domicílios com coleta de lixo | |
Domicílios com lixo em seu entorno | Percentual de domicílios com lixo em seu entorno | |
Domicílios com esgoto em seu entorno | Percentual de domicílios com esgoto em seu entorno |
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo Demográfico de 2010.
A variável de desfecho do estudo constituiu-se do acumulado de casos de escorpionismo registrados entre 2007 e 2019, em cada município brasileiro. Utilizou-se o número acumulado de registros para aumentar a casuística e evitar distorções na notificação dos casos, por conta de mudanças cíclicas nas equipes responsáveis pela notificação. Acidentes ocorridos antes de 2007 não foram selecionados, por conta de mudanças realizadas na Ficha de Notificação dos Acidentes com Animais Peçonhentos, do Sinan, em 2006.
A seleção das variáveis independentes ou descritores dos municípios contemplou categorias dos determinantes estruturais (descritores municipais de ocupação e socioeconômicos) e dos determinantes intermediários (descritores de infraestrutura/saneamento) do modelo de Determinantes Sociais da Saúde, adotado por Solar e Irwin.13
As variáveis independentes foram sumarizadas em medidas de tendência central (média e mediana) e dispersão (desvio-padrão; valores mínimo e máximo). Os fatores associados ao acumulado de casos de escorpionismo ocorridos nos municípios brasileiros, entre 2007 e 2019, foram analisados pela regressão binomial negativa, pois a variável de desfecho apresentou dados de contagem com superdispersão, identificada pelo valor de alpha>0 na regressão multivariada (alpha=2,33).14 A macrorregião geográfica de ocorrência (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste ou Sul) foi inserida como variável de ajuste, nas regressões bivariável e multivariável.
A regressão binomial negativa assume que μj=exp(ßxj+offsetj), em que µ é a média de ocorrência de acidentes, ß é o coeficiente da regressão e x é a covariável. Os coeficientes da regressão estimados foram transformados em razões de taxas de incidência (RTI), visto que RTI=expßi. O acumulado das estimativas populacionais de cada município, entre 2007 e 2019, foi logaritimizado e inserido como variável offset, ou seja, um fator de compensação do total de casos que permite modelar contagens como RTI.11,14
Com base no método de seleção “para frente”, as variáveis independentes foram inseridas no modelo multivariável quando apresentaram intervalo de confiança de 95% (IC95%), significância estatística de 5% (p-valor<0,05) e redução do valor do critério de informação de Akaike (AIC) após inserção de novas variáveis e consistência teórica de acordo com a literatura científica, evitando-se associações espúrias.15
Nenhuma variável selecionada para o modelo final foi omitida pelo programa de análise, indicando inexistência de multicolinearidade. Ademais, foi “plotada” uma matriz de correlação com os coeficientes da regressão multivariável, para checagem adicional de multicolinearidade. A existência de alta correlação (≥0,9) foi considerada na identificação de multicolinearidade.16
A adequação ao modelo de regressão binomial negativo foi verificada pelo teste de goodness-of-link de Tukey-Pregibon, com valor predito linear ao quadrado (_hatsq), não estatisticamente significativo quando no nível de 5% (p-valor>0,05).14 Todas as etapas descritas na análise dos fatores associados foram processadas utilizando-se o programa estatístico Stata versão 16.0.
O projeto desta investigação foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA): Parecer nº 1.370.415/2015, emitido em 16 de dezembro de 2015.
Resultados
Segundo os registros do Sinan, entre 2007 e 2019, ocorreram 1.079.333 acidentes escorpiônicos nos 5.564 municípios investigados, perfazendo média de 194,0 casos (desvio-padrão=1.017,9; valor mínimo=0 e valor máximo=41.523) e incidência acumulada de 41,5/100 mil hab. por município. Cerca de 25%, 50% e 75% dos municípios investigados registraram, respectivamente, um total de 5, 29 e 118 casos, nesse período, indicando padrão de alta dispersão da contagem de casos de escorpionismo (variável de desfecho).
Do total de acidentes no país, no período selecionado (2007-2019), 46% (495.252) foram oriundos do Nordeste brasileiro, 43% (459.819) do Sudeste, 5% (53.391) do Centro-Oeste, 4% (44.475) do Norte e 2% (26.396) do Sul. No mesmo período, observou-se aumento de 311% sobre o número de casos notificados, partindo de 37.347 registros, em 2007, para 153.641 notificações em 2019 (Figura 1).
As medidas de tendência central e dispersão das 17 variáveis dos municípios investigados estão descritas na Tabela 1. Na regressão bivariada binomial negativa, 15 dessas variáveis tiveram associação significativa com o desfecho. No modelo de regressão multivariável, 10 variáveis independentes permaneceram fortemente associadas à ocorrência do escorpionismo: (i) o percentual de homens ocupados na construção civil (RTI=0,90 - IC95% 0,88;0,91); (ii) o percentual de mulheres ocupadas na construção civil (RTI=1,65 - IC95% 1,18;2,30); (iii) o percentual de homens ocupados no serviço doméstico (RTI=0,73 - IC95% 0,69;0,77); (iv) o percentual de mulheres ocupadas no serviço doméstico (RTI=1,21 - IC95% 1,18;1,25); (v) o percentual de homens ocupados na agropecuária (RTI=0,93 - IC95% 0,92;0,93); (vi) o percentual de mulheres ocupadas na agropecuária (RTI=1,03 - IC95% 1,02;1,04); (vii) o percentual de domicílios com coleta de lixo (RTI=0,99 - IC95% 0,98;0,99); (viii) o percentual de domicílios com lixo em seu entorno (RTI=1,02 - IC95% 1,01;1,02); (ix) a expectativa de anos de estudo (RTI=0,88 - IC95% 0,83;0,92); e (x) a taxa de desocupação (RTI=1,07 - IC95% 1,05;1,09) (Tabela 2).
Variáveis municipais | Percentual médio | Percentual mediana | Desvio-padrão | Mínimo | Máximo |
---|---|---|---|---|---|
Ocupacionais (%) | |||||
Homens ocupados na construção civil | 6,22 | 5,81 | 2,90 | 0,11 | 24,22 |
Mulheres ocupadas na construção civil | 0,13 | 0,08 | 0,16 | 0,00 | 1,57 |
Homens ocupados no serviço doméstico | 0,57 | 0,36 | 0,75 | 0,00 | 12,13 |
Mulheres ocupadas no serviço doméstico | 5,53 | 5,39 | 2,26 | 0,00 | 19,85 |
Homens ocupados na agropecuária | 25,96 | 27,48 | 12,68 | 0,01 | 65,61 |
Mulheres ocupadas na agropecuária | 10,13 | 8,66 | 7,34 | 0,00 | 37,73 |
Infraestrutura/saneamento (%) | |||||
Domicílios com coleta de lixo | 70,26 | 74,10 | 21,85 | 0,00 | 100,00 |
Domicílios com abastecimento de água | 69,10 | 72,60 | 19,93 | 0,00 | 100,00 |
Domicílios com lixo no seu entorno | 3,31 | 0,86 | 6,24 | 0,00 | 90,43 |
Domicílios com esgoto no seu entorno | 12,96 | 2,24 | 22,22 | 0,00 | 100,00 |
Socioeconômicas | |||||
Taxa de analfabetismo (%) | 17,40 | 14,11 | 10,70 | 0,97 | 47,64 |
Expectativa de anos de estudo (média) | 9,46 | 9,47 | 1,10 | 4,34 | 12,83 |
Índice de desenvolvimento humano (IDH) (%) | 65,97 | 67,00 | 7,21 | 42,00 | 86,00 |
Índice de vulnerabilidade social (IVS) (%) | 35,16 | 33,40 | 13,01 | 9,00 | 78,40 |
População pobre (%) | 23,20 | 18,12 | 17,92 | 0,00 | 78,59 |
Renda per capita anual (moeda: Real) | 493,65 | 467,74 | 243,27 | 96,25 | 2.043,74 |
Taxa de desocupação (%) | 6,19 | 5,66 | 3,66 | 0,00 | 38,45 |
Variáveis independentes municipais | Bivariável | Multivariável | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
RTIb | Erro-padrão | IC95%c | RTIb | Erro-padrão | IC95%c | |||||
Ocupacionais (%) | ||||||||||
Homens ocupados na construção civil | 1,16 | 0,01 | 1,14;1,19 | 0,90 | 0,01 | 0,88;0,91 | ||||
Mulheres ocupadas na construção civil | 31,44 | 5,55 | 22,24;44,45 | 1,65 | 0,28 | 1,18;2,30 | ||||
Homens ocupados no serviço doméstico | 0,84 | 0,02 | 0,79;0,89 | 0,73 | 0,02 | 0,69;0,77 | ||||
Mulheres ocupadas no serviço doméstico | 1,39 | 0,02 | 1,35;1,42 | 1,21 | 0,02 | 1,18;1,25 | ||||
Homens ocupados na agropecuária | 0,95 | 0,00 | 0,94;0,95 | 0,93 | 0,00 | 0,92;0,93 | ||||
Mulheres ocupadas na agropecuária | 0,92 | 0,00 | 0,92;0,93 | 1,03 | 0,01 | 1,02;1,04 | ||||
Infraestrutura/saneamento (%) | ||||||||||
Domicílios com coleta de lixo | 1,03 | 0,00 | 1,02;1,03 | 0,99 | 0,00 | 0,98;0,99 | ||||
Domicílios com abastecimento de água | 1,03 | 0,00 | 1,03;1,03 | |||||||
Domicílios com lixo em seu entorno | 1,07 | 0,01 | 1,05;1,08 | 1,02 | 0,00 | 1,01;1,02 | ||||
Domicílios com esgoto em seu entorno | 1,00 | 0,00 | 0,99;1,00 | |||||||
Socioeconômicas | ||||||||||
Taxa de analfabetismo (%) | 0,93 | 0,00 | 0,93;0,94 | |||||||
Expectativa de anos de estudo (anos) | 1,27 | 0,03 | 1,20;1,34 | 0,88 | 0,02 | 0,83;0,92 | ||||
Índice de desenvolvimento humano (IDH) (%) | 1,11 | 0,00 | 1,10;1,11 | |||||||
Índice de vulnerabilidade social (IVS) (%) | 0,96 | 0,00 | 0,96;0,97 | |||||||
População pobre (%) | 0,96 | 0,00 | 0,96;0,96 | |||||||
Renda per capita anual (moeda: Real) | 1,00 | 0,00 | 1,00;1,00 | |||||||
Taxa de desocupação (%) | 1,20 | 0,01 | 1,18;1,22 | 1,07 | 0,01 | 1,05;1,09 |
a) As associações estimadas foram ajustadas pela macrorregião geográfica de ocorrência do acidente; b) Razão de taxa de incidência (RTI); c) IC95%: intervalo de confiança de 95%. Nota: Todas as variáveis da regressão multivariável obtiveram significância estatística (p<0,05).
De acordo com os resultados da matriz de correlação entre os coeficientes da regressão binomial negativa (Tabela 3), não se identificou multicolinearidade entre as variáveis do modelo ajustado. O modelo final (AIC=58.766,11) apresentou melhor ajuste dos dados, frente ao modelo bivariado (AIC=59.978,13), formado pelo desfecho e a variável com maior associação na análise bivariada (percentual de mulheres ocupadas na construção civil). Adicionalmente, o resultado não estatisticamente significativo, no nível de 5% para o teste de goodness-of-link de Tukey-Pregibon (hatsq=0,004 - p-valor=0,707), indicou adequação do modelo ajustado ao modelo de regressão binomial negativo.
Variável | Ocupados na construção civil (%) | Ocupados no serviço doméstico (%) | Ocupados na agropecuária (%) | Domicílios com coleta de lixo (%) | Domicílios com lixo em seu entorno (%) | Expectativa de anos de estudo | Taxa de desocupação (%) | |||
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Homens | Mulheres | Homens | Mulheres | Homens | Mulheres | |||||
Homens ocupados na construção civil (%) | 1,00 | |||||||||
Mulheres ocupadas na construção civil (%) | -0,12 | 1,00 | ||||||||
Homens ocupados no serviço doméstico (%) | 0,09 | -0,20 | 1,00 | |||||||
Mulheres ocupadas no serviço doméstico (%) | 0,08 | 0,03 | -0,12 | 1,00 | ||||||
Homens ocupados na agropecuária (%) | 0,04 | 0,07 | 0,29 | 0,10 | 1,00 | |||||
Mulheres ocupadas na agropecuária (%) | 0,26 | 0,27 | 0,07 | 0,04 | -0,33 | 1,00 | ||||
Domicílios com coleta de lixo (%) | 0,03 | 0,19 | -0,02 | 0,12 | 0,30 | 0,51 | 1,00 | |||
Domicílios com lixo no seu entorno (%) | -0,05 | 0,01 | -0,03 | -0,06 | -0,03 | 0,14 | 0,11 | 1,00 | ||
Expectativa de anos de estudo | -0,01 | 0,06 | 0,02 | 0,03 | -0,04 | 0,15 | -0,14 | 0,07 | 1,00 | |
Taxa de desocupação (%) | 0,01 | -0,12 | -0,04 | 0,00 | 0,18 | 0,00 | -0,04 | -0,09 | 0,11 | 1,00 |
Discussão
Os resultados deste estudo demostram associação diretamente proporcional entre a incidência de escorpionismo no território nacional e os seguintes descritores municipais: percentual de domicílios com lixo em seu entorno; taxa de desocupação; e percentual de mulheres ocupadas nas atividades da construção civil, no serviço doméstico e na agropecuária. Associação inversamente proporcional foi observada entre incidência de escorpionismo e os seguintes descritores municipais: expectativa de anos de estudo; percentual de domicílios com coleta de lixo; e percentual de homens ocupados na construção civil, no serviço doméstico e na agropecuária.
No Brasil, o envenenamento escorpiônico é relatado com maior frequência nos ambientes domiciliar e peridomiciliar, predispondo a esse agravo as mulheres ocupadas em serviços domésticos.17 Por conta de influências históricas e sociais, o papel da mulher na sociedade continua ligado à execução de atividades domésticas,18 que vêm sendo relacionadas ao escorpionismo há mais de 50 anos, no país.17,19 Entretanto, apenas no presente trabalho, foi dimensionada, de forma agregada, a associação entre essa ocupação e o envenenamento escorpiônico.
O estudo evidenciou maior vulnerabilidade das mulheres ao escorpionismo, em todos os municípios brasileiros pesquisados: o acréscimo de 1% de trabalhadoras ocupadas no serviço doméstico esteve associado a um aumento de 21% na incidência de casos de escorpionismo. A vulnerabilidade dessas trabalhadoras já foi discutida em estudo realizado na cidade de Salvador, BA, com base nos casos de escorpionismo ocorridos entre 1982 e 2000.17 Apesar do frequente desfecho benigno nos adultos, esse agravo traz sofrimento, como dor intensa no local da picada, e pode levar a gravidade clínica, principalmente nos adultos de idade avançada ou portadores de comorbidades, a exemplo da diabetes mellitus e da hipertensão arterial.20,21
No ambiente extradomiciliar, foram identificadas outras ocupações relacionadas ao escorpionismo, como a construção civil e o trabalho rural.22,23 No presente estudo, a variável ‘percentual de mulheres ocupadas na construção civil’ apresentou associação direta com a incidência acumulada de casos de escorpionismo ocorridos nos municípios brasileiros. O mesmo não foi observado para o ‘percentual de homens ocupados na construção civil’, que apresentou relação inversa.
Nos locais destinados à construção civil, a presença de entulho é constante, e os trabalhadores do setor são suscetíveis à presença dos escorpiões que se utilizam desses restos de material como abrigo.24 Historicamente, o mercado de trabalho da construção civil é dominado por homens, preservando a influência, socialmente herdada, dos modos de trabalho destinados a cada gênero. Apesar da entrada das mulheres na construção civil, elas tendem a ocupar cargos de limpeza e alimentação, quando não apresentam a qualificação esperada para cargos de maior prestígio, como os de engenharia e arquitetura.25 É de se esperar que as mulheres estejam mais próximas de depósitos de entulho, local usado pelos escorpiões como abrigo.
Em determinadas regiões, caso do estado do Amazonas, o escorpionismo é relatado com maior frequência nas áreas rurais.26 O ambiente rural também é propício à proliferação de escorpiões quando dispõem de local para seu abrigo (e.g., acúmulo de matéria orgânica, entulho, lixo, depósitos e armazéns) e de alimento (e.g., barata, cupim, grilo, larva de inseto e aranha).6 A proximidade com esses abrigos e o não uso de equipamentos de proteção individual podem trazer risco de acidente ao trabalhador rural. No caso das trabalhadoras rurais, espera-se que o risco desse acidente seja superior, tendo em vista o somatório das exposições decorrentes da execução de atividades agrícolas e domésticas.27
Fatores socioeconômicos e de infraestrutura/saneamento também precisam ser considerados e incorporados às estratégias de proteção contra o envenenamento por escorpião, nos municípios brasileiros. De acordo com os achados desta investigação, o acréscimo de um ano à variável ‘expectativa de anos de estudo’ da população municipal esteve associado com uma redução de 12% na incidência de acidentes escorpiônicos.
A relação entre envenenamento escorpiônico e aspectos educacionais foi mencionada em outros estudos, segundo os quais o escorpionismo esteve diretamente relacionado com o analfabetismo - nos acidentes ocorridos no Brasil em 2001-2012 - ou foi mais frequente em indivíduos com menor escolaridade - também nos casos do Brasil, 2001-2012.5,7
A educação é um determinante social da saúde que contribui para a melhoria das condições de vida, pois, indiretamente, facilita a ocupação de cargos mais remunerados, garantindo o acesso a serviços de saúde de qualidade e uma habitação com boa infraestrutura/saneamento.13
Apoiando os achados para escolaridade, a incidência de acidentes escorpiônicos nos municípios brasileiros mostrou-se diretamente associada com a taxa de desocupação municipal. A ocupação é uma fonte importante de rendimento, implica acesso às necessidades mínimas para a sobrevivência e pode impactar as condições de saúde e nutrição.13 A dificuldade para se obterem bens e serviços de consumo, frequentemente, está relacionada a moradias com infraestrutura/serviço de saneamento precário, cenário favorável à aproximação do escorpião.13,28 É notório que o desemprego parental pode influenciar na má nutrição dos filhos e no aumento da incidência de baixo peso por idade, um dos fatores determinantes da ocorrência de sintomas graves e mortalidade por escorpionismo em crianças.28,29
A disposição ambiental de lixo domiciliar no município esteve relacionada com a ocorrência do escorpionismo. O acúmulo de lixo favorece o aparecimento de escorpiões, devido à disponibilidade de alimento e abrigo.2 Baratas e outros pequenos insetos fazem parte da dieta principal de escorpiões, sendo encontrados em abundância nos locais com acúmulo periódico de lixo orgânico, como costuma ocorrer em áreas com deficiente infraestrutura/saneamento.2,6 O estabelecimento de ambientes com boas condições biossanitárias, privação de fontes de alimento e água para insetos pode ser uma importante estratégia de redução da proliferação da espécie de importância médica T. serrulatus, que também se configura como praga urbana no Brasil.2,30
Esta investigação foi conduzida a partir de dados secundários do Sinan, sabidamente passíveis de erros de preenchimento, além de problemas de notificação. No entanto, há vantagens no uso de dados secundários, como o menor custo e a rápida execução do estudo. O desenho de estudo ecológico, adotado nesta investigação, impede a realização de inferências causais com os fatores associados identificados. Porém, seu caráter exploratório permite a formulação de hipóteses a serem investigadas. Ademais, por se tratar de um estudo ecológico que se utiliza de dados existentes, a indisponibilidade de informações relevantes, advindas de fontes secundárias, limitou a análise, inviabilizando a exploração de outros fatores, a exemplo da distribuição espacial, riqueza e abundância de espécies de escorpiões, o que poderia influenciar no registro de escorpionismo.
Conclui-se que o enfrentamento da ocorrência do acidente por picada de escorpião - em ascendência numérica, nos últimos anos - demanda melhorias nas condições de infraestrutura/saneamento, nos indicadores da educação e na oferta de emprego que, indiretamente, facilitem o acesso a boas condições biossanitárias nos domicílios. O estudo também traz evidências de que o acidente escorpiônico poderia estar relacionado ao tipo de trabalho/ocupação exercida por mulheres.
Este conjunto de informações deve ser utilizado na gestão municipal, como demanda da área da saúde, assim como nas pautas ligadas à educação e ao desenvolvimento econômico, pois aparenta ser intrinsecamente ligado à ocorrência do envenenamento escorpiônico.