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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.31 no.1 Brasília  2022  Epub 13-Abr-2022

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742022000100013 

Artigo Original

Leishmaniose visceral no Piauí, 2007-2019: análise ecológica de séries temporais e distribuição espacial de indicadores epidemiológicos e operacionais

Leishmaniasis visceral en Piauí, Brasil, 2007-2019: análisis ecológico de series temporales y distribución espacial de indicadores epidemiológicos y operativos

André Felipe de Castro Pereira Chaves (orcid: 0000-0002-5965-0011)1  , Igor Vinícius Soares Costa (orcid: 0000-0002-2024-4366)1  , Matheus Oliveira de Brito (orcid: 0000-0002-2203-0265)1  , Francisco Aragão de Sousa Neto (orcid: 0000-0003-2060-1324)2  , Márcio Dênis Medeiros Mascarenhas (orcid: 0000-0001-5064-2763)3 

1Universidade Federal do Piauí, Centro de Ciências da Saúde, Teresina, PI, Brasil

2Universidade Estadual do Piauí, Centro de Ciências da Saúde, Teresina, PI, Brasil

3Universidade Federal do Piauí, Centro de Inteligência em Agravos Tropicais Emergentes e Negligenciados, Teresina, PI, Brasil

Resumo

Objetivo

Analisar indicadores epidemiológicos e operacionais, a tendência temporal e a distribuição espacial da leishmaniose visceral (LV), bem como a coinfecção LV-HIV no estado do Piauí, Brasil, no período de 2007 a 2019.

Métodos

Estudo ecológico de séries temporais. Empregou-se a regressão de Prais-Winsten para analisar a tendência da incidência, letalidade e indicadores operacionais da LV.

Resultados

A incidência média de LV no estado foi de 6,03/100 mil habitantes, com tendência crescente na faixa de 40-59 anos [variação percentual anual (VPA) = 3,88; IC95% 0,49;7,40]; e nas regiões localizadas ao sul do estado: Tabuleiros do Alto Parnaíba (VPA = 14,19; IC95% 3,91;25,50); e Chapada das Mangabeiras (VPA = 12,15; IC95% 6,69;24,96). A letalidade média foi de 6,02%, mantendo-se estável. A taxa média de evolução para cura foi de 52,58%, com tendência decrescente (VPA = -5,67; IC95% -8,05;-3,23).

Conclusão

Houve tendência de aumento na incidência e de redução na taxa de cura da leishmaniose visceral.

Palavras-Chave: Leishmaniose Visceral; Epidemiologia; Indicadores de Morbimortalidade; Notificação de Doenças; Sistemas de Informação em Saúde; Estudos de Séries Temporais

Resumen

Objetivo

Analizar los indicadores epidemiológicos y operativos, la tendencia temporal y la distribución espacial de la leishmaniasis visceral (LV), así como la coinfección LV-VIH el estado de Piauí, Brasil, de 2007 a 2019.

Métodos

Estudio ecológico de series temporales ecológicas. Se utilizó la regresión de Prais-Winsten para analizar la tendencia en indicadores de incidencia, letalidad y operacional del LV.

Resultados

La incidencia media de LV em estado fue de 6,03/100 mil habitantes, con tendencia creciente en grupos de 40 a 59 años [variación porcentual anual (VPA) = 3,88; IC95% 0,49;7,40] y en regiones ubicadas al sur del estado: Tabuleiros do Alto Parnaíba (VPA = 14,19; IC95% 3,91;25,50) y Chapada das Mangabeiras (VPA = 12,15; IC95% 6,69;24,96). La letalidad promedio fue de 6,02%, permaneciendo estable. La tasa media de evolución a la cura fue 52,58%, con tendencia decreciente (VPA = -5,67; IC95% -8,05; -3,23).

Conclusión

Hubo tendencia de aumento en la incidencia y reducción en la tasa de cura de LV.

Palabras-clave: Leishmaniasis Visceral; Epidemiología; Indicadores de Morbimortalidad; Notificación de Enfermedades; Sistemas de Información en Salud; Estudios de Series Temporales

INTRODUÇÃO

Contribuições do estudo
Principais resultados A Leishmaniose Visceral (LV) predominou no sexo masculino e em crianças, esteve associada a condições de vulnerabilidade social e apresentau expressiva subnotificação. Além disso, foi identificada forte tendência de endemicidade na maior parte do estado do Piauí.
Implicações para os serviços Este estudo oferece aos serviços de saúde um panorama amplo do perfil da LV no Piauí, tanto em relação à população mais atingida pela doença como às localidades onde o poder público deve ser mais incisivo na promoção de ações em saúde.
Perspectivas Esperam-se maiores esforços do poder público para a mudança do cenário epidemiológico da LV no Piauí. Ações de combate à doença devem ser adotadas, focalizando as principais vulnerabilidades apresentadas neste estudo.

A leishmaniose visceral (LV) é uma doença infecciosa de distribuição mundial, tipicamente associada às más condições de vida. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 83 países ou áreas territoriais são atualmente considerados endêmicos, ou relataram casos de LV; apenas dez, incluindo o Brasil, concentram mais de 95% dos casos novos de LV no mundo. Estima-se que ocorram, a cada ano, 50 mil a 90 mil casos novos desse agravo, embora apenas 25% a 45% deles sejam reportados.1

Historicamente conhecida como uma endemia rural, a LV chegou a ocasionar epidemias em várias grandes cidades brasileiras nas últimas décadas, tornando a enfermidade um grave problema de saúde pública.2 Existe evidência da relação entre LV e aumento do processo de desmatamento e urbanização do país, juntamente com a interferência humana nos habitat dos animais silvestres, levando à rápida expansão da doença nas cidades.3 Alguns problemas, como baixa renda, falta de assistência médica e baixo conhecimento da população sobre a doença, consequências da falta ou ineficiência das políticas públicas adotadas, contribuem para a persistência da endemia.4 Outra relevante questão a abordar é a elevada frequência de coinfecção por LV e o vírus da imunodeficiência humana (HIV), devido à elevada prevalência deste quando associada ao aumento dos casos de leishmaniose visceral, motivo de preocupação dos profissionais de saúde, inclusive daqueles que atuam na vigilância epidemiológica, haja vista a gravidade dos casos e a rápida evolução clínica dos HIV- -positivos para a manifestação da síndrome da imunodeficiência adquirida, a aids.5

A LV é causada por parasitos do complexo Leishmania donovani, entre eles a espécie causadora da doença no Brasil, a Leishmania infantum. As espécies de mosquitos Lutzomyia longipalpis e Lutzomyia cruzi, ambos pertencentes à subfamília flebotomíneos, são os dois principais vetores da LV e transmitem a doença ao homem durante o repasto sanguíneo das fêmeas infectadas.6

Nas Américas, o Brasil concentrava 97% dos casos de LV em 2019, retratando a gravidade do problema para o país no que dizia respeito a sua vigilância e controle. No território brasileiro, durante o período de 2007 a 2017, o coeficiente de incidência de LV oscilou de 1,7 a 2,0 casos por 100 mil habitantes, enquanto a letalidade pela doença aumentou de 5,9% para 8,8%: os anos de 2015 e 2016 apresentaram maior letalidade, e o número de óbitos correspondeu a 9% do total de óbitos no decênio (2007-2016).7

Em 2017, foi aprovado o Plano de Ação de Leishmanioses nas Américas, visando reduzir a morbimortalidade por meio do fortalecimento do diagnóstico, tratamento, reabilitação, prevenção, vigilância e controle da infecção até o ano de 2022.7

A LV se encontra em expansão no Brasil, observando-se sua maior ocorrência na região Nordeste, onde foram registrados 56,7% dos casos diagnosticados em 2019, quando o Piauí respondeu por 9,6% das notificações dos casos no país.8 No estado, a taxa de incidência de LV foi de 5,9/100 mil hab. em 2018, nível três vezes maior que a média nacional, de 1,85/100 mil hab., para o mesmo ano.9

O objetivo deste estudo foi analisar indicadores epidemiológicos e operacionais, a tendência temporal e a distribuição espacial da LV, bem como a coinfecção LV-HIV no estado estado do Piauí, no período de 2007 a 2019.

MÉTODOS

Desenho e período do estudo

Estudo ecológico de séries temporais, com registros de casos novos confirmados de LV em residentes do Piauí, notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) no período de 2007 a 2019, tendo como unidade de análise o estado, dividido em 11 regiões de saúde, cada uma agregando municípios circunvizinhos a um polo considerado como referência em saúde.

Local do estudo

O Piauí contava com uma população estimada em 3.281.480 habitantes no ano de 2020, uma densidade demográfica de 12,4 hab. por km2 e índice de desenvolvimento humano de 0,646, ocupando a 24º posição entre as 27 unidades da Federação, abaixo da média nacional de 0,765.

Fonte de dados

Os dados do Sinan sobre notificação de casos confirmados de LV foram obtidos nos meses de setembro a outubro de 2020, enquanto os dados da população residente no mês de setembro, oriundos de projeções realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ambos os bancos de dados encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, acessados por meio da ferramenta TabNet.8

A definição de ‘caso novo de LV’ consiste na confirmação da doença, seja por critério laboratorial ou clínico-epidemiológico, referido pela primeira vez em um indivíduo, seja pela exacerbação dos sintomas após 12 meses da cura clínica, desde que não haja evidência de imunodeficiência.10 Foram selecionados os casos novos e confirmados de leishmaniose notificados no período de 2007 a 2019. Os indicadores foram calculados segundo definições constantes do Caderno de Indicadores, elaborado pelo Grupo Técnico de Leishmanioses do Ministério da Saúde.11

Indicadores epidemiológicos

A taxa de incidência de LV foi calculada dividindo-se o número de casos novos de leishmaniose visceral pela população residente no período de estudo vezes 100 mil hab. A letalidade foi calculada dividindo-se o número de óbitos por leishmaniose visceral pelo total de casos novos de leishmaniose visceral vezes 100. O percentual de confirmação laboratorial foi calculado a partir da divisão entre o número de casos de leishmaniose visceral confirmados por critério laboratorial e o total de casos novos vezes 100.

Variáveis

As variáveis sociodemográficas analisadas foram: sexo (masculino; feminino); faixa etária (em anos: 0 a 4; 5 a 9; 10 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 ou mais); raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena; sem informação); escolaridade (analfabeto/ensino fundamental; ensino médio; ensino superior); zona de residência (urbana; rural/periurbana; sem informação); e região de saúde do estado (Carnaubais; Chapada das Mangabeiras; Cocais; Entre Rios; Planície Litorânea; Serra da Capivara; Tabuleiros do Alto Parnaíba; Vale do Canindé; Vale do Rio Guaribas; Vale do Sambito; Vale dos Rios Piauí e Itaueiras).

As variáveis clínicas analisadas foram: coinfecção por LV e HIV (sim; não; sem informação); critério de confirmação (laboratorial; clínico-epidemiológico); diagnóstico parasitológico (positivo; negativo; não realizado); diagnóstico por imunofluorescência indireta (positivo; negativo; não realizado); e evolução clínica (cura; óbito por LV; transferência; óbito por outra causa; abandono; sem informação).

Indicadores operacionais

A proporção de casos de leishmaniose visceral coinfectados pelo HIV foi obtida dividindo-se o número total de casos novos de leishmaniose em coinfectados com HIV pelo número total de casos novos de leishmaniose visceral vezes 100. A evolução para cura clínica foi calculada com a divisão do número total de casos novos de leishmaniose visceral que evoluíram para cura clínica pelo número total de casos novos de leishmaniose visceral vezes 100. A proporção de casos de leishmaniose visceral com evolução ignorada foi calculada pelo quociente entre o número total de casos de leishmaniose visceral (novos e recidivas) com evolução ignorada e o número total de casos de leishmaniose visceral (novos e recidivas) com evolução ignorada vezes 100.

A caracterização dos casos foi apresentada por meio de frequências absoluta e relativa, com a verificação de associação segundo sexo pelo teste qui-quadrado de Mantel-Haenszel. Para a análise de tendência, aplicou-se o modelo de regressão linear de Prais-Winsten, pelo qual foi calculada a variação percentual anual (VPA) e seus intervalos de confiança a 95% (IC95%), utilizando-se o programa Stata em sua versão 14 (StataCorp LP, College Station EUA). A tendência dos indicadores analisados foi interpretada como crescente (p-valor<0,05 e coeficiente da regressão positivo), decrescente (p-valor<0,05 e coeficiente da regressão negativo) e estável (p-valor>0,05); em todos os casos, foi atestada significância estatística quando p-valor<0,05. Os indicadores foram desagregados por região de saúde e apresentados em mapas, elaborados utilizando-se o programa Tabwin.

Considerações éticas

Como se trata de pesquisa com dados secundários de acesso público, sem identificação dos casos, não houve necessidade de submissão à aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

Foram notificados 2.521 casos novos confirmados de LV no Piauí, no período de 2007 a 2019. Na série temporal analisada, o ano com maior número de casos foi 2007, ao contabilizar 237 casos de LV registrados, enquanto o ano de 2019, com 145 casos registrados, foi o de menor número de ocorrências. A média anual de casos registrados foi de 193,9, havendo incremento ou redução das notificações de um ano para outro, com maior variação positiva observada no biênio 2013-2014 (+66 casos), e maior variação negativa no biênio 2007-2008 (-47casos).

Entre os menores de 9 anos de idade, a maioria dos casos foram do sexo feminino (62,4%), ao passo que, na faixa etária de 20 a 59 anos, houve maior proporção de casos do sexo masculino (50,9%) (p<0,001). Verificou-se predomínio de pessoas da raça/cor da pele preta/parda (91,7%), analfabetas ou com ensino fundamental (80,1%) e residentes na zona urbana (67,9%). Quanto aos aspectos clínicos, prevaleceram os casos de LV confirmados laboratorialmente (87,4%), sendo o percentual de exames parasitológicos positivos maior entre o sexo masculino (56,2%). Entre os resultados do diagnóstico pelo teste da imunofluorescência indireta, encontrou-se maior proporção de soropositivos no sexo feminino (27,0%), comparado ao sexo masculino (21,5%), além de ter chamado a atenção o percentual desses exames não realizados, tanto para o sexo masculino (67,8%) (p=0,002) como para o sexo feminino (62,1%) (p=0,002). A proporção dos casos de coinfecção LV-HIV foi de 12,4% (p<0,001) no sexo masculino, superior à observada no sexo feminino (6,1%). Finalmente, a proporção de indivíduos com registro de evolução para cura clínica foi de 52,4% entre ambos os sexos. Todavia, houve considerável percentual de registros sem informação sobre essa variável (35,9%) (Tabela 1).

Tabela 1 – Características sociodemográficas e clínicas dos casos novos de leishmaniose visceral (n=2.521), Piauí, 2007-2019 

Variáveis Total Masculino Feminino p-valora
n % n % n %
Faixa etária (em anos)             <0,001
0-9 1.077 42,7 557 33,0 520 62,4  
10-19 212 8,4 143 8,5 69 8,3  
20-39 646 25,6 529 31,3 117 14,0  
40-59 415 16,5 331 19,6 84 10,1  
≥60 171 6,8 128 7,6 43 5,2  
Raça/cor da pele             0,150
Preta/parda 2.311 91,7 1.562 92,5 749 89,9  
Branca 115 4,6 67 4,0 48 5,8  
Amarela 18 0,7 10 0,6 8 1,0  
Indígena 7 0,2 6 0,4 1 0,1  
Sem informação 70 2,8 43 2,5 27 3,2  
Escolaridadeb             0,678
Analfabeto/ensino fundamental 1.065 80,1 825 79,8 240 81,1  
Ensino médio 246 18,5 200 19,3 46 15,5  
Ensino superior 19 1,4 9 0,9 10 3,4  
Zona de residência             0,438
Urbana 1.713 67,9 1.149 68,1 564 67,7  
Rural/periurbana 726 28,8 492 29,1 234 28,1  
Sem informação 82 3,3 47 2,8 35 4,2  
Critério de confirmação             0,603
Laboratorial 2.203 87,4 1471 87,1 732 87,9  
Clínico-epidemiológico 318 12,6 217 12,9 101 12,1  
Diagnóstico parasitológico             0,002
Positivo 1.374 54,5 949 56,2 425 51,0  
Negativo 464 18,4 315 18,7 149 17,9  
Não realizado 683 27,1 424 25,1 259 31,1  
Diagnóstico por imunofluorescência indireta             0,002
Positivo 588 23,3 363 21,5 225 27,0  
Negativo 271 10,7 180 10,7 91 10,9  
Não realizado 1.662 65,9 1.145 67,8 517 62,1  
Coinfecção LVc-HIVd             <0,001
Sim 261 10,4 210 12,5 51 6,1  
Não 1.906 75,6 1.265 74,9 641 77,0  
Sem informação 354 14,0 213 12,6 141 16,9  
Evolução clínica             0,071
Cura 1.321 52,4 873 51,7 448 53,8  
Óbito por LVc 153 6,1 95 5,6 58 7,0  
Transferência 110 4,4 68 4,0 42 5,0  
Óbito por outra causa 23 0,9 17 1,0 6 0,7  
Abandono 9 0,3 8 0,5 1 0,1  
Sem informação 905 35,9 627 37,2 278 33,4  

a) Teste qui-quadrado de Mantel-Haenszel; b) Excluídos os registros preenchidos como ‘não se aplica’ (n=990) ou ‘sem informação’ (n=201); c) LV: Leishmaniose visceral; d) HIV: Vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus - HIV).

A taxa média de incidência de LV no período do estudo foi de 6,03/100 mil hab., variando de 7,57 em 2007 a 4,43 em 2019. Observou-se tendência de aumento desse indicador nas regiões da Chapada das Mangabeiras (VPA = 12,15; IC95% 6,69;24,96;) e Tabuleiros do Alto Parnaíba (VPA = 14,19; IC95% 3,91;25,50), localizadas ao sul do Piauí. Houve tendência de redução apenas na região da Planície Litorânea (VPA = -8,77; IC95% -14,45;-2,71). A média de letalidade foi de 6,02%, com variação de 6,33% em 2007 a 4,14% em 2019, observando-se estabilidade na tendência (Tabela 2; Figura 1).

Tabela 2 – Tendência da taxa de incidência (por 100 mil habitantes), da letalidade (%) e de indicadores operacionais (%) da leishmaniose visceral, Piauí, 2007-2019 

Variáveis Variação percentual anual (%) IC95%a p-valor Tendência
LI LS
Indicadores epidemiológicos
Taxa de incidência geral -1,16 -4,47 2,27 0,468 Estável
Taxa de incidência por região de saúde
Carnaubais 3,52 -5,81 13,77 0,437 Estável
Chapada das Mangabeiras 12,15 6,69 24,96 0,040 Crescente
Cocais -2,47 -6,76 2,01 0,246 Estável
Entre Rios -1,99 -5,61 1,76 0,263 Estável
Planície Litorânea -8,77 -14,45 -2,71 0,009 Decrescente
Serra da Capivara -1,90 -12,15 9,54 0,709 Estável
Tabuleiros do Alto Parnaíba 14,19 3,91 25,50 0,010 Crescente
Vale do Canindé 2,15 -11,21 17,53 0,745 Estável
Vale do Rio Guaribas -1,85 -6,83 3,40 0,448 Estável
Vale do Sambito -2,56 -21,26 20,59 0,794 Estável
Vale dos Rios Piauí e Itaueiras -4,14 -11,50 3,82 0,268 Estável
Letalidade (%) -2,62 -6,72 1,66 0,202 Estável
Indicadores operacionais (%)
Confirmação laboratorial 0,58 0,29 0,87 0,001 Crescente
Realização de sorologia para HIVb,c 0,66 -0,20 1,53 0,120 Estável
Realização de exame parasitológico -1,48 -2,94 0,00 0,050 Estável
Realização de exame imunológico -10,69 -18,59 -2,03 0,021 Decrescente
Coinfecção LVd-HIVb,c 1,90 -2,34 6,33 0,347 Estável
Evolução para cura clínica -5,67 -8,05 -3,23 <0,001 Decrescente
Evolução ignorada 7,02 2,18 12,09 0,008 Crescente

a) IC95%: Intervalo de confiança de 95% (LI = limite inferior; LS = limite superior); b) Dados a partir de 2008; c) HIV = Vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus - HIV); d) LV: Leishmaniose visceral.

Figura 1 – Evolução da taxa de incidência de leishmaniose visceral total e segundo sexo, Piauí, 2007-2019 

Em relação aos indicadores operacionais da LV, verificou-se incremento no percentual de casos com confirmação laboratorial (VPA = 0,58; IC95% 0,29;0,87) e no percentual de casos com informação ignorada sobre a evolução clínica (VPA = 7,02; IC95% 2,18;12,09). Houve tendência de redução no percentual de casos com realização de exame imunológico (VPA = -10,69; IC95% -18,59;-2,03) e na evolução para cura clínica (VPA = -5,67; IC95% -8,05;-3,23) (Tabela 2; Figura 2).

Figura 2 – Evolução nas proporções dos indicadores operacionais da leishmaniose visceral e dos casos de coinfecção LV-HIV, Piauí, 2007-2019a) Dados a partir de 2008; b) LV: Leishmaniose visceral; c) HIV: Vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus - HIV). 

A Figura 3 apresenta a distribuição espacial dos indicadores epidemiológicos e operacionais de LV segundo regiões de saúde do estado do Piauí. As regiões com as maiores taxas de incidência média de LV foram Entre Rios, onde se localiza a capital Teresina (7,33/100 hab.), Chapada das Mangabeiras (7,11/100 hab.) e Serra da Capivara (6,84/100 hab.) mais ao Sul, e Cocais (6,51/100 hab.) na região norte do estado. A maior proporção de casos confirmados laboratorialmente correspondeu à Planície Litorânea (93,2%), havendo somente duas regiões com confirmação laboratorial inferior a 80%: Serra da Capivara e Vale do Canindé. As maiores médias de letalidade foram observadas nas regiões do Vale dos Rios Piauí e Itaueiras (8,0%) e Entre Rios (7,7%), correspondendo a menor à região da Serra da Capivara (2,3%). A evolução para cura foi observada, em maior proporção, na região norte do estado, principalmente na área da Planície Litorânea (66,7%) e na região Entre Rios (61,6%). Tabuleiros do Alto Parnaíba foi a região de saúde do Piauí com a menor taxa de cura (6,3%).

Figura 3 – Distribuição espacial da taxa média de incidência e dos indicadores operacionais da leishmaniose visceral, Piauí, 2007-2019 

DISCUSSÃO

O estudo analisou o contexto epidemiológico da LV no Piauí em 13 anos selecionados. O estado apresenta alta ocorrência de casos de LV, e fatores como desigualdades socioeconômicas e condições ambientais têm contribuído para o aumento dos casos da doença.12

Observou-se maior proporção de LV no sexo masculino e em pessoas na idade entre 20 e 59 anos. Estes dados corroboram resultados de estudos realizados na cidade de Teresina13 e na região norte do estado de Minas Gerais,14 onde foram identificadas maiores proporções de LV, 67% e 64% respectivamente, no sexo masculino e em pessoas dessa faixa etária. Em relação à maior ocorrência de LV entre o sexo masculino, existe a hipótese de a doença estar relacionada a fatores hormonais.15 Porém, outros autores sugerem que a ocorrência de LV possa se associar a riscos ocupacionais.12Vale ressaltar que ambos os sexos podem ser acometidos pela LV, e que, a partir da análise feita, não se pode chegar à conclusão sobre o sexo masculino ser um fator de risco para a infecção.

Pessoas de raça/cor preta/parda foram as mais acometidas pela doença, corroborando dados de mais um estudo realizado em Teresina, onde os autores atribuíram esse resultado (i) à dificuldade de definição de raça/cor da pele na população brasileira e (ii) ao fato de o maior contingente local ser de baixa renda, coincidentemente o grupo mais acometido pela doença, de raça/cor preta ou parda.15

A maioria (80%) dos casos ocorreu em indivíduos analfabetos ou com nível de escolaridade fundamental, confirmando a pobreza como um dos determinantes da maior ocorrência de LV, uma vez que (i) a baixa escolaridade constitui um marcador de baixa renda e (ii) o estado do Piauí apresenta elevada desigualdade socioeconômica. Além disso, os resultados do trabalho em tela ratificam as evidências de que indivíduos com baixa escolaridade tendem a apresentar menor nível de conhecimento sobre as medidas de prevenção da doença, o que favorece a maior incidência de casos de LV.16

Houve maior proporção de ocorrências da doença na zona urbana, responsável pelo maior crescimento de casos em relação às demais zonas. A subnotificação na zona rural, como consequência da falta de recursos, de infraestrutura e de disponibilidade de testes diagnósticos, juntamente com o processo migratório, a precária condição socioeconômica e o desmatamento crescente para construção de moradias, estradas e fábricas, são os fatores que, possivelmente, contribuíram para o aumento de casos nas regiões urbanas.17As falhas nas atividades de vigilância, como a busca ativa e a identificação de casos suspeitos, somadas à escassez de recursos financeiros e humanos qualificados, são fatores importantes para a falta de controle da doença nos centros urbanos.18

Parcela dos casos registrados apresentaram coinfecção LV-HIV, com maior ocorrência no sexo masculino. A terapia antirretroviral (TARV) leva ao aumento da resposta imune da pessoa vivendo com HIV, reduzindo as infecções oportunistas e complicações decorrentes da infecção. No entanto, a baixa adesão da população HIV-positiva à TARV e a baixa procura por assistência são fatores que, possivelmente, explicam a elevada frequência de pessoas com essa coinfecção.19 Assim, torna-se importante realizar a investigação detalhada dos casos para confirmação e/ou descarte da coinfecção LV-HIV, com a realização da testagem para HIV nas pessoas com suspeita ou confirmação de LV. Igualmente importante é a instituição do tratamento de ambos os agravos, considerando-se que a leishmaniose favorece o agravamento da infecção por HIV em indivíduos com LV.9

Segundo este estudo, das 11 regiões de saúde do Piauí, Chapada das Mangabeiras e Tabuleiros do Alto Parnaíba são as que apresentam tendência de crescimento, enquanto regiões de expansão agrária localizadas na porção sul do estado. Estes resultados, possivelmente, relacionam-se ao fato de essa população rural possuir maior vulnerabilidade social e menores níveis de conhecimento sobre medidas de prevenção.12

Estudo realizado em um município do estado sugeriu que a expansão da LV nas áreas de transição urbano-rural sugere que a expansão de bairros periféricos nas cidades pode ser um fator determinante para a persistência da doença nas áreas urbanas.20 Outrossim, a ocupação de locais recém-desflorestados permite o contato mais estreito do homem com o ambiente de reprodução do vetor causador da doença e com os reservatórios selvagens portadores do parasita.21

Os índices elevados de LV em diferentes regiões do estado do Piauí também podem ser explicados pela ausência das medidas preventivas e de controle de parte dos municípios, preconizadas pelo Ministério da Saúde, além da carência de recursos humanos capacitados no nível local.14 Sousa et al.22 enfatizaram que as medidas oriundas dos estudos realizados foram incapazes de eliminar a transmissão da doença e impedir a ocorrência de novas endemias.

As regiões de saúde Vale dos Rios Piauí e Itaueiras e Entre Rios apresentaram maior letalidade por LV. No Brasil,18 em 2019, observou-se a maior letalidade por LV dos últimos dez anos, de 9%. Um estudo conduzido no Piauí,12 no período de 2015 a 2017, que encontrou letalidade acima de 7%, ratifica esse dado. A letalidade na macrorregião de saúde Norte de Minas,3 entre 2011 e 2015, de cerca de 8%, foi igualmente elevada. O diagnóstico tardio e a elevação do número de casos na população com comorbidades são fatores capazes de explicar a alta letalidade encontrada, sendo as complicações infecciosas e as hemorragias as principais causas de morte por LV.14

Observou-se redução de casos que evoluíram para cura, ao longo dos anos estudados, atingindo o menor percentual (33,1%) em 2019. Em contrapartida, houve aumento da frequência de notificações com informação sobre o desfecho ignorada, que também atingiu maior percentual em 2019. Estes dados sugerem ser a distorção desse parâmetro a causa dessas perdas de informação. Mais um estudo conduzido no Piauí,12 entre 2015 e 2017, encontrou resultados semelhantes aos da presente pesquisa, tendo reportado um percentual de cura acima de 39%. Outro estudo aponta que a evolução para cura possui tendência de redução em crianças menores de 1 ano de vida e é significativamente baixa em indivíduos acima de 60 anos.24 Ademais, o aumento proporcional de informação ignorada pode contribuir para a redução do índice de cura clínica.

As limitações do estudo referem-se à natureza dos dados utilizados, de fontes secundárias, sujeitas a imprecisão de informações e subnotificação, duplicidade de registro e/ou erros de preenchimento dos formulários.

Com base nos resultados apresentados, conclui-se que a LV se mantém como uma doença negligenciada no Piauí, com preocupante tendência crescente da incidência e elevado percentual de casos em tratamento com evolução ignorada, sugerindo falhas nas ações de assistência, vigilância e controle da doença no estado.

Ainda são escassos os estudos que analisaram a LV no Piauí. Nesse sentido, esta análise contribui para o maior conhecimento da situação epidemiológica da LV no estado e, consequentemente, para as ações de identificação de áreas de risco de transmissão vetorial, vigilância entomológica e zoonótica. Tendo em vista a tendência crescente da LV em algumas regiões de saúde do estado, faz-se necessário o desenvolvimento de mais estudos nessas regiões, de maneira a se identificarem os fatores condicionantes desse agravo e, finalmente, de se eliminar a transmissão da doença.

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Recebido: 17 de Junho de 2021; Aceito: 15 de Dezembro de 2021

Correspondência: André Felipe de Castro Pereira Chaves. E-mail:andre_cchavez14@hotmail.com

Editora associada: Lúcia Rolim Santana de Freitas - https://orcid.org/0000-0003-0080-2858

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Chaves AFCP contribuiu na concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do manuscrito. Costa IVS, De Sousa Neto FA e Brito MO contribuíram na análise e interpretação dos dados, e elaboração das versões preliminares. Mascarenhas MDM contribuiu no delineamento do estudo, análise dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declararam não haver conflitos de interesse.

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